Capítulo 3 - Uma proposta irrecusável (Flashback)
ーTem homens batendo na porta.
Já eram cerca de onze da noite. Os pacatos se preparavam para dormir e despertavam apenas os vagabundos e aqueles que vivem da noite. Gara já havia encerrado suas atividades, recolhido seus unguentos e emplastros e se retirado para dormir; Resmungou baixinho quando Quentin lhe avisou das visitas inesperadas tão tarde da noite.
ー Deixe eles baterem. ー Afirmou Loenna, com convicção. Eram alguns ricos desocupados, de certo. Não servem para nada além de matarem-se uns aos outros.
Gara sorriu. Beijou a testa da filha com ternura e bagunçou seus cachos arruivados até que eles cobrissem seu cenho franzido.
ー Eu já volto.
E partiu numa despedida interrompida, deixando a porta entreaberta numa fresta mal sucedida em abafar os ruídos da sala.
Quentin agarrou o seu ursinho de pelúcia surrado e em menos de dez segundos já estava entregue ao mais profundo dos sonos. Mas para Loenna as coisas não eram tão simples; iria ela deixar sua mãe nas mãos de algum rico infame que não respeitava sequer as sagradas horas de descanso do fim do dia?
Levantou-se num impulso e em cerca de poucos segundos já se esgueirava detrás do sofá, encarando desconfiada o senhor barbado e grisalho que conversava com Gara. Era magrelo e esquálido, usava um terno fino e elegante, mas havia empáfia no seu olhar; Carregava uma maleta na mão esquerda e no braço direito brilhava o desenho de uma águia.
— Entre! — Convidou Gara, gentilmente. O senhor não parecia nem um pouco amigável, julgou Loenna, mas a mãe costumava ser simpática até com aqueles que não mereciam. — Minha casa é humilde, mas sempre está aberta a receber visitas!
O senhor não parecia amigável. Apenas acenou com a cabeça, não desmanchou em nenhum segundo seu olhar de superioridade. Analisou minuciosamente cada detalhe da humilde casa de Gara: O bolor na parede, o ranger da porta, os móveis carcomidos por cupins, o chão encardido....
Por fim, optou por sentar-se no sofá; Abaixou-se lentamente, pôs a maleta no colo e, com uma voz rouca e serena, pôs-se a falar:
ー Muito bem, senhorita...
ー Gara. ー Respondeu a mãe.
ー Gabra. ー Disse o senhor, em tom de desprezo, mas Gara não se ateve a corrigir. ー Você sabe por quê estou aqui?
Gara fez que não com a cabeça. O senhor limpou a garganta e, pela primeira vez, a olhou nos olhos.
ー Bem, recebemos informações de que a senhorita estaria... Realizando atividades curativas por aqui. ー E acariciou a barba. ー Há cerca de uma semana, um Kantaa à beira da morte foi salvo por aqui. Isto nos chamou a atenção porque ele havia sido... Digamos... Neutralizado pelos nossos subordinados. A senhorita praticamente trouxe o rapaz de volta da morte.
ー Eu jamais seria capaz de negar ajuda a um homem ferido. ー Pôs-se Gara a se defender. ー Curei ele porque veio pedir por minha ajuda, e eu não teria razão para....
ー Acalme-se... ー Interrompeu o senhor barbudo. ー É muito nobre de sua parte, senhorita. Nós, Eran, ficamos estarrecidos com vossas habilidades. Por isso venho aqui fazer-lhe uma proposta.
Gara ergueu a sobrancelha.
ー Proposta?
Pela primeira vez, o senhor esboçou um sorrisinho. Seu olhar era perverso; Certamente tal proposta não seria uma boa ideia.
ー Estamos com planos... Apenas planos... De montar uma enfermaria na capital. ー Disse. ー Um estabelecimento de grande porte, que atenderia pessoas de todos os lugares. Temos o dinheiro, só precisamos de alguém para cuidar dos enfermos... A senhora estaria interessada?
Os olhos de Gara brilharam; Era como se alguém viesse lhe trazer a proposta de sua vida. Quase como um sonho. Ainda assim, escondida detrás do sofá, Loenna franziu a testa. Aquilo não cheirava bem; Os ricos não eram amigos. Eles jamais seriam. Nada de bom viria deles.
ー Você está querendo me dizer... Que poderei atender a enfermos de todo o país? ー O sorriso em seu rosto era enorme. Estava prestes a dizer que sim.
ー Bem... ー O senhor barbudo ajeitou o terno. ー É o que você dirá.
O sorriso imediatamente sumiu do rosto de Gara. Parecia confusa, não entendendo muito bem em que ponto aquela conversa ia chegar. Loenna tampouco sabia, mas tinha certeza de que não ia acabar bem.
ー O que eu direi? Como assim?
O senhor barbudo sorriu por entre os fios grisalhos da barba espessa.
ー Se sabe como curar os enfermos, sabe também como matá-los. ー Disse. ー Você sabe como é, temos Kantaa demais por aqui...
Imediatamente, Gara ficou pálida, sem reação. Poucas coisas eram mais significativas que a expressão dela naquele momento.
ー Quer que eu use de meus talentos para matar pessoas?
ー Foi exatamente o que eu disse. ー Reforçou o barbudo maligno. ー Mas não se preocupe, não somos tão ingênuos assim. Você não matará todos os Kantaa que vierem atender com a senhora, e para os que forem mortos, temos instrução e treinamento para fazer com que pareça um acidente. Garantiremos que seu nome não ficará comprometido. Só precisamos de alguém para fazer o trabalho sujo. E então, o que me diz?
Perplexa e visivelmente ofendida pela proposta, Gara balançou a cabeça horizontalmente, incrédula pelas palavras sujas que acabara de ouvir.
ー Jamais. ー Afirmou, categoricamente. ー Eu tenho princípios, e usar meus conhecimentos para o mal contraria a todos eles. Vou ter que recusar, e o senhor por favor, vá embora da minha casa...
O barbudo imediatamente abriu a maleta que carregava consigo. Estava lotada de dinheiro vivo, todo seu interior preenchido por notas e mais notas, mais do que Gara conseguiria ganhar em sua vida inteira. Era um gordo e polpudo suborno.
ー Se aceitar minha proposta, terá uma destas por mês. ー E a lançou um olhar gélido, ainda sem perder a empáfia. ー Mais dinheiro do que você jamais poderá gastar, nem mesmo se quiser. O que me diz?
ー Meus princípios não estão a venda. ー Gara levantou-se do sofá de uma só vez, encarou a maleta de dinheiro por milissegundos e ela sequer chegou a ameaçar sua decisão. Estava convicta. ー Agora, por favor, vá embora da minha casa. Você já disse o que tinha para dizer, não tinha? Então vá. O senhor não é bem vindo.
E abriu a porta da sala, fazendo um gesto para que o magrelo da barba espessa fosse embora. Ele não parecia surpreso e nem mesmo frustrado, apenas cansado.
ー Bom... ー Como se não tivesse sido praticamente expulso há dois segundos atrás, o senhor se recompunha lentamente, fechava a maleta vagarosamente, ajeitava o terno. Parecia se demorar de propósito. ー Terei que procurar outra enfermeira que aceite meus serviços. E garanto que muitas aceitarão. A senhorita vai se arrepender.
ー Isso não é problema meu. ー E prostrava-se impaciente diante da porta, num claro desagrado com a presença do senhor maligno. ー Garanto que não me arrependerei. Agora, por favor...
ー Já entendi. Vou embora. ー Disse o senhor, levantando-se e enfim dirigindo-se à porta. No entanto, ele caminhava um pouco estranho, observou Loenna; Era quase como se tivesse algo o incomodando perto da costela.
ー Faz bem. ー Disse Gara, impaciente.
O senhor, como se não tivesse terminado, se pôs entre Gara e a porta. Gara bufava de impaciência, mas o senhor não esboçava o menor vislumbre de pressa.
ー Apenas lhe digo mais uma coisa, Senhorita Gora. ー E pôs a mão dentro do terno. ー Este plano é um plano secreto. Esperamos que a senhorita não comente sobre ele. Afinal, ele ainda acontecerá... Independente de sua aprovação.
ー Certo, não vou dizer nada. ー A este ponto, Gara só queria que o senhor barbudo fosse embora. ー Tcha...
ー Que pena. ー Disse o senhor barbudo mais uma vez. Não parecia disposto a ir embora. ー Não acreditamos em você.
E foi quando ele puxou da cintura um revólver.
Loenna quis gritar.
Gara esbugalhou os olhos.
Mas sequer teve tempo de gritar porque, antes mesmo que o vislumbre da arma chegasse em sua mente, o senhor barbudo já havia disparado três tiros contra a mãe de Loenna.
E foi apenas ao ver o corpo da mãe atingir o chão, já sem vida, que Loenna acreditou no que estava acontecendo.
Gara estava morta.
Saía fumaça da arma do senhor barbudo.
E ele caminhava em frente e em silencio, quase como se explorando a humilde casa de Gara.
Mas o que ele poderia querer daqui? Pensou Loenna. Ele já é rico...
Novas vítimas! Concluiu ela num impulso. Foi quando correu em direção ao quarto, tentando não fazer barulho, mas talvez não conseguindo. Só pensava em salvar Quentin. Ela poderia morrer, mas não Quentin. Quentin tinha que viver. Quentin era o único pedaço que ainda restava de sua mãe.
O garoto estava sentado, já acordado, com os olhinhos abertos. Ele punha as duas mãos nos ouvidos, e parecia atemorizado; Tinha ouvido os disparos.
ー Quentin! ー Disse ela, mexendo o corpo do irmão. ー Vem comigo, Quentin!
Quentin, ainda sonolento, piscou os olhos duas ou três vezes. Poderia estar amaldiçoando o universo naquele exato momento, mas provavelmente era bom demais para isso.
ー O que está acontecendo? ー O menino parecia perdido. Loenna se desesperava, ao ouvir os passos do senhor maligno se aproximando. ー O que você...
ー Eu te explico depois. ー Loenna pegou o braço do irmão e apontou para a janela. ー Por favor, Quentin, confie em mim!
Quentin fez que sim. Levantou-se com dificuldade e Loenna arrastou-o até a fresta da janela do quarto, pedindo para que o garoto escapasse por ela. Assim ele fez e a menina foi atrás; Os passos do senhor maligno se tornavam cada vez mais altos.
Loenna, agarrada com Quentin, correu até o esconderijo mais próximo, que era um espesso arbusto que havia ali perto. Havia espaço para os dois gêmeos ali dentro; A garota mergulhou no verde das folhas, puxou um confuso Quentin para cima de si e, levando o dedo aos lábios, fez um sinal de silêncio para o irmão. O ruivinho prontamente obedeceu e calou-se, temeroso do que estava por acontecer.
O barbudo adentrou vagarosamente o quarto dos gêmeos. Estudou a área, deu um tiro embaixo da cama. Nada. Então esgueirou-se pela janela e procurou alguém que certamente deveria estar ali dentro escondida em meio às sombras das árvores. Nada, ninguém. Por fim, o senhor deu de ombros.
ー Devem ser duas crianças. ー Grunhiu ele. ー Não irão nos causar problemas.
E foi embora. Mas Loenna não permitiu que Quentin falasse até ouvir os sons da carroça seguindo seu caminho e dos cascos do cavalo no chão de terra; Era seu veredito final de que estavam salvos.
ー O que aconteceu? ー Finalmente, Loenna havia deixado Quentin se manifestar. ー Quem era ele? Cadê a mamãe?
ー Quentin... ー O olhar de Loenna era obscuro. Não havia modo delicado de dizer aquilo. ー A mamãe está morta.
Quentin arregalou os olhos. Loenna sentiu seu lábio inferior tremer.
ー Você está... ー Ele se segurava para não chorar. ー Você está brincando, não está?
Loenna balançou a cabeça horizontalmente e as lágrimas deslizaram pelo rosto pálido de Quentin. Seu nariz estava vermelho como uma cereja e seu corpo todo tremia.
ー Como foi isso? ー O pranto do menino gotejava em seu pijama azul de nuvens. ー Quem era esse cara?
ー Ele é mau. ー Afirmou Loenna com veemência. ー Ele matou a mamãe.
ー Mas por quê? ー Quentin estava incrédulo. ー Por que, Loenna?
ー Porque ele é mau. ー Reforçou ela. ー Assim como todos os Eran. E agora mamãe se foi.
ー Isso significa que... ー Quentin fungava. ー Que...
ー Estamos por conta própria agora. ー Loenna não estava tão chorosa quanto Quentin; Em seu olhar, se via apenas o mais profundo ódio. ー Não temos pai... Não temos mãe... E, agora, teremos que lutar para sobreviver sozinhos. Eu só tenho você. E você só tem a mim.
Trêmulo, Quentin tomou a mão de Loenna na dele. Os irmãos sequer haviam completado onze anos, por que haviam de presenciar uma tragédia em tão tenra idade?
Talvez o destino houvesse reservado algo para eles. E Loenna tinha a sensação de que descobriria isso em breve.
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