Capítulo 24 - Amigos por conveniência.
ー Quentin, eu estou cansado de ser um inútil.
Quentin estava terminando seu prato de sopa quando Fowillar, usando calças formais apertadas e uma blusa branca limpa, se prostrou de frente a ele com estes dizeres. Parecia pronto para sair em busca de alguma coisa, como se arrumado para alguma missão. O ruivo engoliu sua última colherada de sopa e ergueu as sobrancelhas
ー O que você quer dizer com isso? ー Questionou ele.
ー Eu gastava meus dias aprimorando meus conhecimentos e me tornando um homem sábio e culto. ー Afirmou Fowillar. ー Agora o que eu faço? Gasto meus dias me lamentando e torcendo para que a irmã de meu namorado, a qual não gosta de mim, forneça o básico para minha subsistência. Não, Quentin, eu já estou farto disso. Eu quero me sentir útil. Por isso... Estou indo aos Eran pedir a eles um humilde emprego para a minha pobre pessoa.
ー Você... ー Quentin piscou. ー Você pretende trabalhar para os Eran?
ー Sei que eles terão um emprego para mim. ー Fowillar estava extremamente autoconfiante. ー Sou culto e tenho bagagem cultural o suficiente para ser útil de uma maneira que poucos podem. Não quero servir a eles, mas... Não tenho escolha. São os únicos que arranjarão serventia para os meus dotes.
ー Fowi... ー Quentin mordeu os lábios. ー Os Eran não vão querer alguém como você dentro de suas casas.
ー Ora, e o que sabem sobre a minha pessoa? ー Fowillar bufou. ー Meu comportamento sexual diz respeito somente a mim. Aos Eran, forneço apenas a minha criação.
ー Não foi isso que eu quis dizer. Você é um Saphira, marcado como tal. ー Disse Quentin. ー Não acredito que os Eran aceitarão alguém de uma família rival como seu empregado.
Fowillar piscou algumas vezes. Tentou contra-argumentar, mas as palavras pareciam escapar de sua boca. Frustrado, se jogou no chão seco da caverna, envolvendo o próprio rosto com as mãos.
ー Então o que irei eu fazer? ー Aos apontamentos de Quentin, sua única argumentação se resumia às lamúrias. ー Eu só queria deixar de ser um inútil. Sou um intelectual, mas agora as informações que tenho servem para o mais absoluto nada. Não posso viver mais de parasitismos e do dinheiro vermelho de sua irmã. Me diga, Quentin, o que eu devo fazer?
Quentin murchou. Não sabia responder, as indagações do namorado eram perfeitamente válidas. Fowillar, como de hábito, limitou-se a puxar um cigarro do bolso e acendê-lo com seu isqueiro; Era o que ele fazia para segurar as lágrimas dentro dos olhos.
ーTalvez... ー Ponderou Quentin. ー Talvez você possa ser um artista de rua, como eu.
Fowillar soprou a fumaça do cigarro. Não parecia convencido da ideia.
ー Eu? Um palhaço? ー E fez uma careta. ー Você consegue me imaginar como um palhaço, Quentin?
ー Ora, antes de me tornar um palhaço, eu era um cozinheiro! ー E abriu um imenso sorriso. ー Sempre há como se reinventar, Fowi.
ー Você não está entendendo. ー Fowillar era irredutível. ー Você foi um cozinheiro, mas é divertido e otimista. Eu sou reclamão, ranzinza e chato. Exatamente o oposto do que um palhaço precisa ser.
ー Ora, vamos... ー Quentin deu-lhe um selinho nos lábios. ー Você não é tão chato assim. Eu gosto de você, hum?
ー Porque você tem um péssimo gosto. ー Murmurou Fowillar, por entre os dentes, sem tirar o cigarro da boca.
ー Ah, podemos tentar. ー Nada iria tirar aquela ideia da cabeça de Quentin. ー Não digo que é uma área muito promissora, mas é divertida. Vamos, o que acha?
Fowillar suspirou fundo. Não queria dar uma resposta negativa à Quentin, mas também não parecia disposto a seguir sua sugestão; Antes que pudesse dizer qualquer coisa, porém, notou uma figura se aproximando da caverna. Apertou os olhos, focalizou sua imagem, e...
ー Loenna. ー Concluiu ele. Quentin franziu a testa.
ー O que tem a Loenna? ー O namorado parecia um pouco frustrado com a súbita mudança de assunto.
ー Ela está ali, não está? ー Fowillar apontou para a frente.
Quentin virou-se de costas e, de fato, sobre o capuz sujo e maltrapilho e as saias surradas, era sua irmã gêmea que se dirigia à entrada da caverna. Ela parecia abalada com alguma coisa, algo que Quentin não conseguia identificar de imediato.
ー Loenna! ー Suas atenções imediatamente se voltaram para a irmã. ー Você por aqui, e tão cedo!
E correu a dar uma abraço em sua irmã, claramente fragilizada. Loenna retribuiu o abraço e bagunçou os cachos mal arrumados de Quentin.
ー Oi, Quentin. ー Sua voz era carregada de dor. ー Eu resolvi te visitar. Estou um pouco... Chateada hoje.
ー Eu notei. ー Sua sensibilidade o permitira sentir as aflições da irmã. ー Tem algo que você queira me contar?
Loenna tinha mil coisas para contar. Em sua mente, se passava desde a morte de Marcus até o fato de estar sendo procurada pelos Kantaa, mas nada deixava seu coração mais apertado do que Aya. Agora, a enfermeira voltaria para sua casa e deixaria Loenna sozinha, sem o aconchego de seu abraço, apenas porque a garota lhe dirigira algumas palavras erradas. Talvez, e apenas talvez, se Loenna houvesse lhe dito as coisas certas, poderia haver um futuro para ela e Aya. Sim, porque Loenna apenas precisava de algum tempo para apagar a imagem de Serpente de sua cabeça.
Mas ela era impulsiva, disse a primeira frase malformada que aparecera em sua cabeça e perdeu a enfermeira. Droga.
ー Prefiro manter minhas aflições comigo. ー Suspirou Loenna. ー Não há nada que você possa fazer, Quentin. E eu não quero ficar remoendo o que aconteceu. Só gostaria de ficar um tempo com você, ficar junta com aquele que esteve presente durante toda a minha vida.
ー Eu entendo. ー Quentin era capaz de absorver os sentimentos da irmã apenas pelo olhar. Eles eram praticamente conectados. ー Bem, eu estou aqui para você. Eu e Fowillar, meu namorado.
Fowillar soprou a fumaça do cigarro e encarou Loenna com os olhos mirrados. A retribuição da garota não foi mais amigável; Por entre seus olhos espremidos, a sua mensagem era clara: Loenna não gostava dele. Jamais seria amiga de um Saphira.
ー Eu não gosto dele. ー Disse Loenna, incisiva. ー Não gosto dos Saphira.
Fowillar levantou uma sobrancelha e Quentin olhou feio para ambos.
ー Bem, eu não fiz nada. ー Fowillar tornou a levar o cigarro aos lábios. ー Você que me isente dessa vez, Quentin.
ー Pois é, você não fez nada. ー Continuou Loenna. ー Se tem uma coisa que os Saphira sabem fazer é nada. Vocês veem as pessoas passando fome e não fazem absolutamente nada.
ー E o que diabos eu posso fazer? ー Agora, Fowillar já havia elevado o tom de sua voz. ー Eu passo fome tanto quanto você, querida. Eu sou um pederasta que desonra o sobrenome Saphira e, por isso, não mereço ser associado a eles mais. Ainda que eu continuasse nessa família de imundos, o que poderia eu fazer? Pedir para Triard, meu pai, que assistisse todos os pobres de Carmerrum? Ele certamente não me ouviria. Você está direcionando seu ódio à pessoa errada, garota.
ー Eu não confio em você. ー Loenna transparecia desprezo em seu olhar. ー Pouco me importa se foi expulso, ou se é namorado de meu irmão. Não confio, não gosto e não quero por perto.
ー Se acha que eu faço qualquer questão de sua amizade... ー Fowillar tampouco parecia querer dar o braço à torcer. ー Você vai se frustrar. Porque eu não estou aqui para agradar ninguém, quanto mais a uma assassina.
ー Pois deveria. ー Lançou Loenna. ー É desta assassina que parte o seu sustento, não é?
E foi naquele exato momento que Fowillar sentiu Loenna tocar em sua questão mais sensível. Ele, de um intelectual, fora reduzido a um mais completo nada que depende de terceiros. Quentin, sensível como era, percebera seu incômodo; O ex-Saphira encheu a boca para responder Loenna com alguns palavrões mal-educados, mas o namorado interveio antes de qualquer coisa.
ー Sinceramente, já chega, né? ー Repreendeu Quentin. ー Vocês são dois adultos. Já não estão na idade de trocarem ofensas pessoais como se fossem duas crianças.
ー Veja bem, Quentin, ela me... ー Pôs-se Fowillar a falar.
ー Não interessa. ー Algumas poucas vezes, Quentin conseguia ser um tanto quanto incisivo. ー Você e a Loenna vão se acertar, custe o que custar.
ー Não vamos. ー Disse Loenna, inflexível.
ー Ah, vão. ー Persistiu Quentin. ー E sabe por quê?
Quentin pôs-se atrás de Loenna e a empurrou para fora da caverna; A irmã, sem entender o que estava acontecendo, não ofereceu resistência. Em seguida, Quentin voltou-se a Fowillar e o puxou pelo braço para a mesma saída de onde havia levado a irmã.
ー Porque nenhum dos dois vai voltar a entrar aqui até serem amiguinhos ー E Quentin estava visivelmente falando a verdade. ー Se alguém pisar aqui antes de se acertarem, quem vai embora sou eu. E acredito que nenhum dos dois me quer andando sem rumo por aí, quer? ー Loenna e Fowillar fizeram que não. ー Foi o que pensei. Então os senhores façam o favor de resolver as rusgas que têm aí fora, porque EU não quero ver as duas pessoas que mais amo brigando feito crianças mimadas.
E foi embora, adentrando a caverna e deixando Loenna e Fowillar com a companhia apenas de si mesmos.
ー Eu estou duvidando que Quentin realmente me ama. ー Murmurou Fowillar, por entre os dentes. ー Já que está me deixando na companhia de uma assassina.
Loenna não respondeu à provocação. Sua única reação foi fuzilar o rapaz com o olhar e soltar as seguintes palavras, cheias de ódio:
ー Eu não gosto de você.
Fowillar também não ficou por trás:
ー Saiba que é recíproco, minha querida.
ー Ótimo. ー Respondeu Loenna. ー Então já temos a resposta que Quentin precisava. Não gostamos um do outro, e jamais iremos nos gostar. Eu vou voltar para a minha casa.
E Loenna pôs-se a caminhar, pé ante pé, até sua cabana mal cuidada, de onde não deveria ter saído. Fowillar apenas observava a tudo com o cigarro em mãos, soprando a fumaça, fingindo não estar abalado com o tratamento de Loenna, mas claramente bastante abatido. Eram dois frustrados negando suas frustrações.
Mas, contudo, Loenna ainda era uma assassina procurada pelos Kantaa.
Quando a garota se afastou suficientemente de Fowillar, um homem Kantaa surgiu das sombras para agarrá-la. Loenna berrou, apavorada, mas já era tarde demais; Era um gigantesco brutamontes envolvendo seu corpo todo, a força do homem a imobilizava. Não tinha armas, mas tampava seu nariz e sua boca, impedindo que a garota respirasse; Ele iria matá-la, e então seria seu fim. Era o fim de Loenna, a hora de se despedir mentalmente de todos aqueles que conhecia.
Fowillar, do outro lado, observava a cena atemorizado. Era um homem imenso imobilizando uma garota que sequer tivera a chance de se defender. Ele não deveria, obviamente não deveria, mas sentiu-se mal por aquilo. E percebeu que teria que usar as armas que tinha para agir.
Correu em direção ao Kantaa distraído e, antes que o musculoso percebesse, Fowillar levou a ponta de seu cigarro ao antebraço do brutamontes.
O homem berrou com a queimadura e soltou o braço que envolvia a assassina por cerca de meio segundo, mas foi o suficiente para Loenna se armar em posição de ataque, puxar a faca que tinha na cintura e investir contra o Kantaa; Em um só golpe, fincou a arma na jugular do soldado, fazendo-o gritar num lamento final e cair mole no chão já sem vida, apenas um corpo grande e forte.
Loenna ofegava, assustada. Fowillar também respirava freneticamente. Ambos se entreolharam.
ー Você... ー Seu rosto estava todo melado de sangue. ー Você salvou minha vida.
Fowillar tremia. Fez que sim.
ー Eu apenas... ー Nem mesmo ele acreditava que havia sido capaz de salvar a vida de Loenna. ー Fiz o que estava ao meu alcance...
ー Eu estou em perigo. ー Ela se deu conta. ー Os Kantaa vão vir atrás de mim. Eu não posso ficar sozinha mais.
Fowillar mordeu o lábio. Não entendia porque ou o que havia feito os Kantaa se mobilizarem contra Loenna, mas concordou com a cabeça.
ー Eu vou precisar da sua companhia, Fowillar. ー Disse ela. ー E de Quentin.
Fowillar abriu um grande sorriso. Eram exatamente essas palavras que ele queria ouvir.
ー E como é que se fala? ー Ele estava realmente empolgado.
ー Desculpe. ー Murmurou Loenna, amarga. ー Eu o julguei mal.
ー Ah, querida, eu não ouvi. ー Disse o ex-Saphira. ー Como é que se diz, hein?
ー DESCULPE, FOWILLAR. ー Berrou Loenna. ー Você está satisfeito agora?
ー Ah sim, agora estou. ー Seu sorriso era verdadeiramente triunfante. ー Mas eu acho que podemos formar uma boa dupla agora. Eu preciso do seu dinheiro, e você precisa da minha companhia. O que acha?
Loenna lambeu os lábios. Odiava ter que concordar com um Saphira, mas Fowillar tinha razão. Não havia como estar atenta 24 horas por dia e, quando não estivesse, iria precisar de alguém que a protegesse de ataques inoportunos.
ー Certo. ー E ergueu sua mão para Fowillar. ー Temos um trato agora?
Fowillar tomou a mão de Loenna na sua.
ー Temos. ー Sorriu. ー Acho que Quentin conseguiu o que queria, no fim das contas.
***
Considerações finais: Quentin e Fowillar estão de volta, pessoal! Espero que gostem da presença deles. Também torço para que tenham apreciado o capítulo de hoje e até sábado!
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