Capítulo 19 - Uma noite no bar (flashback)
— Moço, me vê mais uma, por favor?
Se você pretende procurar Serpente durante a noite, o lugar mais provável de encontrá-la é em algum bar barato nos subúrbios de Carmerrum; De preferência, aqueles que são frequentados pelos menos afortunados da sociedade: Os mendigos, as prostitutas, os ladrões e, é claro, os bêbados.
Ao fundo, um grupo de homens musculosos e mal encarados jogava sinuca. O balcão do bar era velho e carcomido, as mesas quase nunca estavam inteiras e as cadeiras mancas rangiam; O ambiente fedia cigarro e cachaça barata. Ainda assim, Serpente parecia satisfeita com sua solitude e sua cerveja. Já era a terceira da noite e provavelmente seguiria além, sozinha com seus pensamentos.
— Está sozinha?
Fora o chamado que quebrou seu momento de reflexão.
Serpente virou-se para trás: Era uma moça de cerca de 25 anos, tinha uma cicatriz cobrindo o olho direito; Seus cabelos eram escuros, encaracolados e terminavam-se na altura do ombro; Seus lábios eram vermelhos e grossos, o seu único olho era cor de âmbar. Vestia uma jaqueta de couro surrado com vários bolsos, uma calça jeans claramente envelhecida e bota, e prendia os cabelos com um lenço dourado cuja borda já desfiava.
Serpente sorriu; Era uma moça particularmente atraente.
— Minha companheira é sempre a noite. — Disse, zombeteira. — Mas você pode se juntar a nós, se quiser.
A moça abriu o sorriso e puxou uma cadeira.
— Como posso lhe chamar? — Perguntou Serpente, lançando à moça um olhar suave e misterioso.
— Nag é o meu nome. — Respondeu a moça. — E a você, como posso me dirigir?
— Ah... Costumam me chamar de Serpente. — Disse-lhe. — É a primeira vez que vêm por aqui?
— Ficarei por aqui por uma noite, eu acredito. — Respondeu ela. — Ou o quanto o destino me prender...
— Interessante. — Serpente passou a mão pelos cabelos. — E de onde você é?
— Sou das Ilhas Jurrajir, ao norte. — Disse.
Obviamente, Serpente não fazia a menor ideia de onde era aquele lugar, mas isso não faria muita diferença.
— E o que te leva para cá, a tão longe de casa?
Nag lançou um sorrisinho.
— Sou uma pirata. Viajo o mundo inteiro atrás de riquezas para saquear. Vivo entre idas e vindas, parando em terras diferentes a todo momento. É divertido.
Serpente levantou uma sobrancelha
— Seria muita ousadia da minha parte... — E em seus lábios formava-se um sorriso malicioso. — Perguntar se a senhorita teria local para passar a noite?
Nag retribuiu o sorrisinho malicioso.
— Nada é ousadia vindo de uma mulher como você.
Serpente soltou uma risadinha e, mais audaciosa, tocou o rosto de Nag com uma das mãos; Seus dedos perpassavam por cada um dos cachos que desciam pelo seu rosto.
— Então, minha querida... — A voz de Serpente era mansa e até mesmo entorpecida. — Você tem local para passar a noite?
Nag estava prestes a responder, quando um chamado sonoro e nítido invadiu a cena:
— Gi. — Disse a voz, que vinha detrás de Serpente.
Imediatamente seu sorriso se desfez e cerca de 87 xingamentos diferentes passaram por sua mente naquele momento. A voz não havia se identificado, mas ela sabia que não precisava nem olhar para trás; Apenas uma pessoa a chamava daquela maneira.
— Foi para você? — Nag parecia confusa. O clima estava desfeito.
— Não. — Era para ela, sim. Mas Serpente esperava que, se o ignorasse, ele a deixaria em paz.
— Gi. — Tornou a repetir a voz. — Não tente me evitar. Eu não vou embora tão cedo.
E, novamente, mais uma safra de palavrões retornou ao seu pensamento. Como pode ser tão inoportuno?
— Com licença. — Serpente se levantou e tentou forjar delicadeza. — Eu volto logo.
Virou-se para trás e ele estava lá; Careca, baixinho, usava óculos e longos robes escuros. A marca Saphira não estava visível, mas Serpente sabia que ela latejava no braço esquerdo.
Bufando, pegou o braço do rapaz e o conduziu para fora do bar; O barulho da mesa de sinuca e dos cavalos passando pelas ruas abafariam suas palavras, ou era o que ela pensava.
— Me diz, Rhemi... — Disse. — Além de ser um grandessíssimo empata-foda, que outros talentos você tem?
— Sinto muito que tenha te encontrado em um momento ruim. — Rhemi deu de ombros. — Você nunca vai ao meu encontro, então eu tive que ir ao seu.
— Tem uma razão para eu te evitar. — Disse ela, incisiva. — Principalmente se for para tratar daquele assunto de novo. Não é ele, é?
Rhemi não disse nada, apenas levantou as sobrancelhas. Serpente já tinha sua resposta.
— Bom, — A jovem deu meia volta e já se preparava para partir. — Então não temos mais o que falar. Vá embora.
— Gi. — O rapaz repousou-lhe uma mão pelos ombros. — Por favor...
Serpente bufou.
— Por que diabos você ainda insiste nesse assunto? — Se ela evitasse o assunto mil vezes, Rhemi a procuraria mil e uma. Nada iria mudar a mente dele, nada. — Não percebe que é uma causa perdida? As coisas não são assim tão fáceis quanto você crê no seu mundinho do arco-íris.
— Pode dar certo. — Insistiu Rhemi.
— Ou pode dar errado. — Retrucou Serpente. — Você ainda não percebeu que as chances de dar errado são muito maiores?
— Gi, por favor... — Rhemi suplicou. — Você é filha de Monvegar Eran. Não pode desistir do reconhecimento que você merece tão facilmente...
— Eu não sou filha de ninguém. — Disse. — A nossa mãe era prostituta, se lembra? Eu posso ser filha de literalmente qualquer um. E isso não importa para mim.
— Se lembra de quando perguntávamos? Eu me lembro, já tinha meus oito anos. — Rhemi era deveras insistente. — Ela dizia que teve um romance com Monvegar Eran. Ela o amava, sempre teve certeza de que você era filha dele. Gi, você é filha de Mon...
— Ela dizia para eu me manter longe dele! — Respondeu Serpente, num ímpeto. — Não sei por que você insiste nisso, a mãe sempre parecia receosa em falar sobre minhas origens. Volto a dizer que meu pai pode ser qualquer um. Pode ser o Eran, assim como pode ser qualquer outra pessoa. E eu, a propósito, prefiro que seja qualquer outra pessoa.
— Mas pode ser ele, Gi! — Toda vez que Rhemi falava daquele assunto, seus olhos brilhavam. — Você não pode perder a chance!
Serpente fez que não com a cabeça.
— Uma desconhecida aparece aos vinte e cinco anos de idade e afirma ser filha do homem mais rico do país com uma prostituta? Rhemi, isso jamais vai funcionar. Monvegar não vai me assumir, sequer me reconhecer como filha. Desista.
— Lohun Saphira não me assumiu? — Rhemi abriu um grande sorriso. — Por que não aconteceria com você?
— Um, porque Lohun Saphira é apenas um Saphira qualquer e não O Saphira; Dois, porque ele queria herdeiros, e Monvegar Eran está satisfeito com os seus; Três, ele é um Saphira, não um Eran; Quarto, meu pai pode ser qualquer um e, quinto, eu não quero. — Disparou. — É o suficiente pra você, caro irmãozinho?
— Mas Gi, — Rhemi parecia irredutível. — Imagine como as coisas seriam se ele te reconhecesse!
E, naquele momento, Serpente quis socar a cara de Rhemi como se ela fosse uma massa de pão.
— Exatamente. — Respondeu ela. — Ele me assume, eu fico rica, abandono tudo o que eu sou e o que eu construí. Abandono a única família que formei e a única coisa de que me orgulho, me tornando tudo o que eu jurei destruir. Não adianta, Rhemi. Eu sou uma moribunda sem lar que vive de saques e pequenos furtos; Eu sou parte de uma organização criminosa destinada a enfrentar o sistema em que vivemos; Eu sou o que eu sou, eu não sou uma Eran. Mesmo que, e provavelmente não é o caso, mas mesmo que eu compartilhe sangue com Monvegar Eran, não somos parentes e jamais seremos. Ele é tudo o que eu quero destruir, ele faz parte desse sistema podre que não se importa com os pobres e com os miseráveis e só se importa em alimentar o próprio ego e mordomias; O mesmo sistema que não deu a mínima bola quando a mãe foi morta porque, afinal, ela era só uma prostituta. Se lembra? É desse sistema que eu estou falando. E eu não quero me tornar parte dele.
Rhemi encarou o chão. Passou alguns segundos mordendo o lábio, como se não tivesse nada a dizer além.
— Você pode mudar o sistema. — Alegou. — Pode ser o pilar da mudança que o mundo precisa.
Serpente soltou uma risada debochada.
— Não, eu não posso. Sabe por quê? — Rhemi agora parecia menos convicto de seu plano brilhante; As espinhas já começavam a despontar. — Porque eu sou apenas uma engrenagem e o sistema é uma maquinaria complexa. Eu sou apenas aquela peça que deu defeito, que os operadores da fábrica podem descartar com facilidade. Isso é, se eu for a peça defeituosa; As pessoas são corruptas porque o sistema as corrompe, e pessoas corrompidas constroem sistemas corrompidos. É uma equação termodinamicamente balanceada que funciona em pleno equilíbrio e dificilmente será desfeita. Quem garante que eu não me torne um deles também? Quem garante que o sistema não me corromperá?
— Eu... Eu... — Rhemi gaguejou.
— Pois é. Ninguém garante. Então, se me permite... — E virou-se de uma só vez, dando as costas para o irmão. — Eu não vou perder a única família que tenho por conta de dinheiro.
— Eu sou sua família.
Naquele momento, Serpente interrompeu seus movimentos. Olhou para Rhemi com o canto do olho, levantando uma sobrancelha e esboçando um sorriso desconfiado.
— Você não é minha família, Rhemi. — Disse ela. — Minha família são eles. Todos aqueles jovens guerreiros rebeldes que lutam contra o sistema. Eles sim, são do meu sangue. Não você, que sucumbiu ao sistema. Você é, para mim, apenas um conhecido. E um conhecido bem inconveniente.
E, dito isso, se recusou até mesmo a olhar para trás; Retornou às mesas velhas e carcomidas do bar, de onde não deveria ter saído. Rhemi era nada mais que uma sombra. Uma sombra que jamais seria relevante na vida de Serpente.
***
Considerações finais: Esse foi o capítulo de hoje, pessoal! Espero que tenham gostado! Fico feliz que estejam acompanhando até aqui e queria dizer que fico muito feliz com o retorno de vocês, seja com estrelinhas ou com comentários.
Uma notícia boa àqueles que estão acompanhando: Eu já terminei de escrever Caos e Sangue (e ela fechou com 50 capítulos certinho! Meu TOC agradece), o que significa que vocês podem ficar tranquilos, a história não será abandonada! Uhul!
Abraço em todos vocês e até quarta que vem!
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