Capítulo 14 - Adeus, Gehl! (Flashback)
A ferida no lábio inferior já havia cicatrizado, a perna não mais mancava e os pulmões, antes em chamas, já funcionavam perfeitamente. Loenna estava recomposta novamente; A única coisa que ainda não havia se curado era a dor do fracasso.
Quentin me pediu para não seguir esse caminho. Ele sabia que eu não conseguiria
Loenna já não tinha lágrimas para soltar — Elas já haviam se esgotado há muito tempo —, mas praguejava baixinho. Talvez fosse a pior de seu grupo. Consideraria que aquilo tudo era em vão, talvez?
Não. Eles mataram minha mãe. Eles matam milhares dos meus, dos nossos, todos os dias.
Mas de que adiantaria se o destino final fosse o fracasso? De que adiantaria toda a sua luta, o seu juramento de vingança, se o seu trágico fim fosse uma morte patética sobre aquelas mãos imundas, sem que Loenna tivesse a chance de cortar as vísceras de sequer um deles, os desgraçados que tiraram a vida daquela que lhe permitiu nascer?
Os golpes de adaga no ar pareciam artificiais. Ela obedecera ao treinamento, fazia tudo conforme ensinado... Mas ainda era tão medíocre. Não derrotaria o mais fraco daqueles nobres malditos. Suas mãos eram trêmulas e seu corpo era pouco ágil; Não tinha força, equilíbrio ou velocidade o suficiente para ser uma ameaça a alguém. Só o que tinha eram seus olhos cheios de fúria. E eles não eram o suficiente.
Num ímpeto de raiva, Loenna enfureceu-se e lançou a adaga para longe; O artefato sequer obteve velocidade o suficiente. Rodopiando em torno de si mesma, a arma seguiu uma trajetória curva e desajeitada, antes de colidir com o chão em um ruído seco, quase abafado. Patética, pensou ela. Eu sou simplesmente patética.
— Você está fazendo errado.
Loenna virou-se de prontidão. Acreditava estar sozinha; Na verdade, empenhara-se para estar sozinha. Quem? Por que? De quem era aquela voz, tão persistente e firme?
Às suas costas, prostrava-se uma mulher misteriosa. Alta, esguia; Não menos que um metro e setenta. Aparentava ter cerca de 25 anos, talvez um pouco menos.
Seus cabelos eram encaracolados, longos, volumosos e bem escuros; Possuía a pele marrom clara, olhos tão negros quanto a noite e lhe lançava um meio sorriso travesso dentre seus lábios cheios, quase que sarcástico. Vestia-se exclusivamente de preto e carregava um punhal na cintura, era um misto de ameaçadora e misteriosa.
— Quem... — Loenna gaguejava, estava nervosa. Não sabia se por medo ou deslumbre com a figura misteriosa que se punha de pé, tão silenciosa e discreta quanto as sombras. — Quem é você?
A jovem abriu o sorriso, como se achasse graça, e naquele exato momento Loenna compreendeu; Um zunido invadiu suas orelhas e suas pernas pareciam ter ficado mais fracas.
— Eu? — Respondeu a mulher. — Meu nome é Gillani Gaspez, mas por aqui eu sou mais conhecida por...
— Serpente... — Disse, incrédula. A moça fez que sim com a cabeça.
— Exato. — Respondeu, aproximando-se da adaga caída no chão. — Peço desculpas em atrapalhar seu treino. Eu estava entediada, veja bem. É tudo tão monótono por aqui...
— Eu... — Loenna jamais havia se sentido tão nervosa em toda sua vida. A voz falhava, o chão parecia tremer. Estava diante de uma lenda. — Eu jamais pensei que a conheceria pessoalmente... É uma honra...
Serpente ergueu a sobrancelha. Seu sorriso era brincalhão e parecia divertir-se com aquela situação. É possível que dispensasse tamanha devoção, mas Loenna não conseguia esconder o seu deslumbre.
— Já ouviu falar de mim, então? — Talvez fosse um deboche, porém não importava; O maior exemplo de talento com armas brancas estava ali, na sua frente.
— ...Já. — E quem não? Pensou Loenna. Mas a sua mente pouco formulava além de algumas palavras curtas. Seu raciocínio quase não se conectava; Se antes Serpente materializava-se apenas no seu imaginário, como uma figura inatingível e praticamente mitológica, agora ela era real. — Já ouvi sim.
— Que bom. — E ela não abandonava o tom gozador. — Bem ou mal? Espero que bem. Odeio que falem mal de mim pelas costas...
— Sempre.... Sempre te descreveram como uma lutadora de outro mundo. — Respondeu ela. — Dona de uma habilidade e talento inigualável. Alguns boatos dizem que...
E, quase que imediatamente, se calou, temerosa de que estivesse falando mais do que deveria. Boatos estúpidos, apenas boatos. Claro... Quem iria querer ouvir as histórias fantásticas e ridículas que corriam entre os novatos, que mal haviam completado dezoito anos e ainda fediam à leite? Certamente Serpente não tinha tempo para aquelas bobagens.
— Boatos, é? — ...Ou talvez a moça seja mais espirituosa do que Loenna pensara, e estivesse ligeiramente interessada nas narrativas ridículas de seus colegas. — Já ouvi alguns deles. São divertidos. Que tipo de boatos?
— Você... — Sua voz falhava. — Me disseram uma vez que você tem lâminas no lugar dos dedos.
Serpente não pôde evitar uma pitoresca risada. Era evidente a maneira como ela se divertia com as histórias mirabolantes inventadas a respeito de si própria. Se pôs a analisar as próprias mãos, talvez entretendo-se com a possibilidade.
— Acho que não. — E ergueu as mãos na direção de Loenna. — Você pode tirar a prova por si mesma. Seria um tanto quanto inconveniente se fosse o caso.
— Também me disseram que você é mais rápida que um guepardo. — Continuou. — Que é capaz de voar e de ficar invisível. E que seu cabelo é feito de fogo.
— Isso seria mais interessante. — Comentou Serpente, entre curtas risadas. — Mas infelizmente não é verdade. O que é uma pena para mim...
— Também dizem que você se banha no sangue de seus inimigos. - Agora, a atenção de Serpente parecia dividida entre Loenna e a adaga ao chão. Analisava ambas com um ar cômico e crítico. — Todas as sextas-feiras. Às três da madrugada.
— Uau. São detalhistas. Isso seria possível... E divertido. Mas não, não é verdade. Ainda... — E lançou-lhe uma piscadela, sem desmanchar o sorriso malandro. Em seguida, abaixou-se e tomou a adaga de Loenna em mãos. — Não é nenhum mistério que sua dinâmica de arremesso seja tão ruim. Olha para isso! — Agitou a adaga de cima a baixo. — É velha, lascada e mal projetada. Parece que tiraram direto do lixo. — Loenna concordava com a cabeça, mas a verdade é que não entendia muito sobre adagas. — Se me permite...
E, em um só gesto, lançou a adaga em linha reta, tão rápido que Loenna quase não pôde vê-la; A arma cortou o ar com maestria, um tiro fatal e silencioso no ar, imperceptível a qualquer inimigo. A lâmina fincou-se de forma precisa, vigorosa e profunda no tronco de uma árvore às suas costas, tudo isso em uma fração de segundo.
Para uma novata de desempenho abaixo da média, aquele era um feito assombroso, quase que sobrenatural. Mas Serpente claramente não estava satisfeita, movendo a cabeça de um lado para o outro em reprovação.
— Não... Definitivamente, é uma péssima adaga. — Deu de ombros. — Posso te arranjar outra melhor, se preferir.
— Não precisa. — A garota encarou o chão, decepcionada consigo mesma. — Eu sou péssima. Não vale a pena desperdiçar armas de qualidade em alguém como eu.
— Bobagem. — Disse Serpente, recolhendo a adaga do tronco da árvore. — Todos nós fomos péssimos um dia. E você é bem jovem, tem tempo para aprender. Quantos anos você tem, afinal?
— Dezoito. — Ainda assim, Loenna temia que Serpente estivesse sendo muito otimista.
— É novata. Completamente normal. — E devolveu a adaga para suas mãos, que agora parecia um pouco mais lascada que antes. — Eu também era péssima quando comecei. Tinha sete anos, era uma criança imbecil...
— Sete? — Indagou Loenna. — Achei que a idade mínima para o treinamento era dezoito.
— E é. — Retrucou. — Agora é. Naquela época, não exatamente. Os recrutas iniciavam aos doze, treze, catorze anos... Mas eu de fato fui precoce. Era divertido. — E sorriu, como se tivesse boas lembranças de seus anos iniciais de treinamento. — É divertido. Vai ser divertido para você também. Não se cobre tanto.
Loenna concordou com a cabeça, mas não estava tão confiante assim. Ela era pouco habilidosa com as mãos, pouco habilidosa com as pernas, pouco ágil e pouco graciosa. Seu corpo era desengonçado e seu jeito era bruto; Seus únicos pontos fortes eram, talvez, a força bruta, mas ainda assim Loenna não extrapolava a média.
Pensou até em responder alguma coisa, apenas para agradecer a gentileza de Serpente, mas no mesmo momento ouviu uma voz esganiçada chamando por ela ao fundo:
— Soldado 207? Soldado 207? Cadê você, pirralha infernal?
Serpente apenas torceu a boca, como se conhecesse o autor daquela voz e tivesse as mesmas impressões que Loenna sobre ele.
— 207 é o seu número? — Questionou, e era quase uma pergunta retórica. Loenna fez que sim.
— Soldado duzentos e... — E, em meio ao matagal, Mestre Eriwan Gehl abriu caminho. Sua careta estava mais feia que de costume. — Ah, aí está você, satanás. Por Deus, porque os novatos são tão rebeldes hoje em dia? Você está atrasada. Quinze minutos atrasada, para ser mais exato.
E, novamente, Loenna se limitou a abaixar a cabeça e pedir desculpas.
— Eu não aguento mais esses descuidos de vocês. Específicamente de VOCÊ, 207. — E apontou o dedo peludo para Loenna. — E não é como se você estivesse tão bem a ponto de ser inconsequente assim, não é? Não, você não está. Por favor, venha logo antes que eu desista de ser tão bonzinho e resolva lhe aplicar uma punição. Merda, eu odeio ser treinador de nível básico. Eu odeio vocês. O QUE ESTÁ ESPERANDO, PESTE?
Loenna se apressou para juntar-se ao mestre, temendo sofrer alguma represália. Talvez jamais voltasse a ver Serpente, mas aquelas poucas palavras trocadas já lhe eram o suficiente. Sim, talvez aquele fosse o adeus absoluto...
— Quanto tempo, Gehl.
O mestre levou um susto. Arregalou os olhos, recompôs a postura e só então pareceu notar a presença da maior lenda daquela organização. Serpente, tão silenciosa e misteriosa quanto a noite, era capaz de se fundir às sombras; Sua presença jamais seria notada sem sua manifestação espontânea.
— Grandiosa! — E fez uma reverência. — Que honra ter vossa ilustre presença!
Serpente revirou os olhos. Talvez ela não gostasse de um tratamento tão cordial; Talvez simplesmente não gostasse do mestre Gehl. Ou, o que era mais provável, ambos.
— Agora, se me permite... — O tom de voz do mestre era bem mais suave que anteriormente. — Preciso levar a garota. O seu treinamento está para começar. Agradeço infinitamente por dar-me a honra...
— Não.
Gehl franziu as sobrancelhas. Estava confuso.
— Não? — E coçou a careca. — Não o que?
— Não permito, Gehl. - Respondeu, seca. — A novata fica aqui.
A este ponto, nem mestre e nem Loenna estavam entendendo alguma coisa.
— Mas eu preciso levá-la. — E uniu as sobrancelhas, num ato de clara confusão. — Não que eu queira, veja bem. Fiquei responsável pelo treinamento de seu grupo. Os restantes estão esperando por mim, e pelo visto são mais disciplinados que essa...
— Então hoje é seu dia de sorte. — Serpente lançou um sorriso desafiador. — Você está dispensado, Gehl. Quem vai treinar a moça sou eu.
E, bem, aquela era uma notícia e tanto. Loenna não podia negar que estava estupefata, surpresa, chocada, entre tantas outras coisas, mas a reação do mestre(ou o ex-mestre?) Gehl era simplesmente inconcebível; Estava transtornado, desarranjado, praticamente um protesto silencioso.
— Mas, Grandiosa... — Disse, ainda perplexo. — Eu recebi ordens.
— Bom, pois eu reverto as ordens. — Afirmou, na mais absoluta calma. — Pode ir treinar os seus pupilos disciplinados, Gehl. Ela fica comigo.
— Com todo o respeito, Magnífica... — Gehl estava ligeiramente alterado, mas ainda não abandonava a reverência. — Mas a senhorita não pode fazer isso. As ordens que eu recebi foram superiores... Euler designou a mim o treinamento da 207 e assim deve ser.
— Na teoria, não. Mas na prática eu posso. E você sabe que eu posso, Gehl. — Havia alguma espécie de prazer sádico no seu sorriso, ou algo parecido. — Diga a Euler que eu decidi que vou treinar essa jovem e que portanto a responsável por ela sou eu. Escrevo uma carta, se for necessário.
— Mas, Extraordinária, Vossa Grandiosidade não tem discípulos.
— Agora eu tenho. — Retrucou. — É o suficiente para você?
— Mas... Por que, Vossa Grandiosidade? — Respondeu Gehl, desnorteado. Parecia ter se sentido humilhado, uma faca em seu ego. — A garota é novata. Além disso, mesmo para uma novata, é medíocre e pouco talentosa. Não acredito que tenha a possibilidade de evoluir além do básico. Estou com ela há quase três meses, ela quase morreu em seu primeiro teste. Estou convencido que é a pior do grupo. Tem certeza que pretende instruí-la?
— Tenho. Eu vi potencial na garota. — E deu de ombros. — Alguma objeção?
— Nenhuma, Esplendorosa, nenhuma! — Bom, ele parecia estar repleto de objeções. - Mas por que ela, Vossa Grandiosidade? Com todo o respeito... Temos guerreiros que treinam há muito mais tempo, e são muito mais competentes. Temos guerreiros que treinam aos mesmos três meses e têm uma evolução deveras impressionante. Todos eles ficariam eternamente gratos em serem agraciados com a atenção de vossa ilustre figura. Posso te dar alguns nomes, inclusive, é o sonho de vida de muitos!
— Isso é problema deles. — Serpente estava absolutamente convicta. — Eu vou treinar a 207 e somente a 207. Avise Euler, por favor. E, se for possível, eu gostaria de encerrar essa conversa por aqui. Estamos acertados?
Por mais arrasado que estivesse, Eriwan Gehl não tinha outra opção. Sua têmpora brilhosa parecia prestes a explodir, mas ainda assim acatou a decisão de Serpente. Fez que sim com a cabeça e, após uma reverência atrapalhada, sumiu dentre a imensidão verde e após alguns segundos não se via mais o brilho de sua careca.
Loenna seguia aturdida, com a mente repleta de dúvidas. Por que ela? Justamente ela?
— Serpente? — Questionou. — Por que eu?
Ela deu de ombros.
— Não sei. Gostei de você. — A nova mestre sorriu e deu-lhe um tapinha nas costas. — E eu ando muito entediada, afinal. Vai ser bom ter alguém para treinar e gastar o tempo em outro lugar que não seja o bar.
O sorriso travesso não lhe abandonava o rosto. Talvez sentisse que aquilo seria divertido, ou mesmo interessante. Loenna, contudo, não era capaz de sentir o mesmo; Era quase que evidente que decepcionaria sua maior referência em algum momento.
— Afinal, qual o seu nome? — Perguntou Serpente, descontraídamente. — 207 é um pouco... Rude, não acha?
E, naquele momento, Loenna foi capaz de esboçar um pequeno sorriso.
— Loenna. — Respondeu. — Loenna Nalan.
***
Considerações finais: Finalmente vocês sabem quem é Gillani Gaspez. Não sei se consegui fazer um bom mistério acerca deste nome, mas agora está desvendado hahahaha
Espero que tenham gostado, pessoal! Deem suas estrelinhas e comentários se gostaram. Capítulo extra essa semana, porque talvez eu fique uma semana sem postar. Obrigada por estarem acompanhando até aqui (catorze capítulos, hein?) e até quarta!
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