3. A transmissão
𝐍 𝐎 𝐄 𝐌 𝐈 𝐒 𝐀 𝐍 𝐃 𝐄 𝐑 𝐒
Quatro anos depois...
A história da minha vida: cresci em uma família de classe média da zona sul do Rio, longe de qualquer outro parente, tipo uma avó ou primos. Comecei a fazer algumas propagandas locais aos cinco anos, por influência dos meus pais, e fiquei cada vez mais conhecida nesse meio. Eu poderia ter optado pelo caminho das novelas, tipo a Larissa Manoela, mas "Carrossel" não apareceu para mim naquele tempo e, também, eu gostava muito mais de modelar. Com quinze anos, já estava em passarelas importantes e aos vinte e cinco, alcancei o status de melhor modelo da Victoria Secrets. Por tanto tempo desejei receber esse título, e quando finalmente pude desfrutar, me envolvi com um cara que acabou com a minha vida. Bom, naquela época eu não sabia disso.
Somente depois que Micael morreu, percebi o quanto acabei com minha imagem, o que impactou profundamente minha carreira como modelo. E aquela amante no velório... foi o meu golpe de misericórdia.
A vida que construí acabou por causa de um cara. Como eu pude ser tão carente? Até parece que alguém iria me amar por amar.
Verdade seja dita, a internet também me destruiu. Foram tantos sites de fofoca falando sobre mim, tantos twits, tantos posts, que minha agente confiscou meu celular para que eu não visse mais nenhum comentário. Felizmente (talvez nem tanto), falaram de mim só por dois dias, porque a pandemia global se tornou uma notícia "mais quente". Nem quero me lembrar dos anos de isolamento, naquela casa, lidando com...
— Noemi, está aí?
Ouço alguém quase derrubar minha porta. Nervosa, verifico se o microfone da minha transmissão está desligado mesmo. Deus me livre atrapalhar o discurso do meu chefe.
Tiro os fones de ouvido e abro a porta para o ser irritante que chamo de melhor amiga.
— Credo, por que você demorou tanto? Alguns vizinhos seus já estavam me olhando com cara de "quem é essa doida"?
— Mas também, Ellen, parecia que você queria arrombar a porta.
— Você sabe que eu sou impaciente.
Ellen se joga no sofá, ao passo que sorrio. Ela é uma doida. Minha doida favorita. Ellen é o tipo de pessoa que, quando está conhecendo alguém, parece ser a mulher mais tímida e reservada do mundo, mas é só pegar um pouquinho de intimidade que revela sua personalidade totalmente extrovertida. Graças a ela, sobrevivi às turbulências dos últimos anos.
— O que você veio fazer aqui, El? — pergunto, tirando os pés dela de cima da minha colcha de tricô limpinha que protege o sofá.
— Preciso da sua ajuda com uma coisa no trabalho. Uma modelo da Victoria Secrets quer contratar minha agência pra cuidar das redes sociais dela e eu pensei que voc...
— Que eu posso te dar umas dicas? — interrompo-a e volto a sentar na mesa da escrivaninha, iluminada pela enorme janela da minha sala. Olho a cidade de São Paulo meio envolta numa poeira branca, e quase deixo escapar um suspiro. Ellen sabe que pode contar comigo para muitas coisas, mas eu tenho alguns limites.
— Sinto muito, El, mas não. Você sabe que essa parte da minha vida ficou pra trás há um bom tempo e agora eu tenho uma nova carreira.
— Mas, Noemi, é só uma d...
Suspiro fundo e ela acaba se calando. Ainda bem que melhoras amigas se comunicam só com expressões. Sempre que alguém toca no assunto de modelos, fama, e todas essas besteiras, fico extremamente de mal humor. Tem vezes que as pessoas são inconvenientes e não sabem respeitar os limites.
— Okay, não tá mais aqui quem falou. — Ellen levanta as mãos em rendição, me arrancando uma gargalhada.
— Ótimo! Agora me deixe voltar pra minha reunião on-line. Meu chefe está fazendo um discurso importante, tenho que prestar atenção.
— É sério? Deixa eu ver!
Ellen levanta do sofá como um raio e para atrás de mim. Retiro o fone de ouvido e faço com que o quadradinho com o rosto do meu chefe fique maior, quase pegando toda a tela do computador. Logo a voz grave dele ecoa por quase todo o apartamento (que não é tão grande assim e possui poucas divisórias).
— Uau! Ele discursa muito bem. Como é mesmo o nome dele? Já faz quase dois anos que você trabalha pra ele mas nunca decorei.
— Igor Armani — respondo — você deve conhecer a família dele. Uma vez, dei o seu cartão de visitas pra irmã dele. Ela queria contratar uma social media.
— Ah, eu me lembro. Os Armani são bem famosos, por isso naquela época não consegui essa conta. Eu ainda não tinha tanta experiência e meu nome não era conhecido no mercado de trabalho.
Ouço meu chefe dizer a todos que estão na reunião on-line para permanecerem conectados que, em cinco minutos, ele retornará. Graças a Deus uma folga! Já faz uma hora que começou a reunião e eu, particularmente, achei tão chato. Só sou obrigada a participar também para o caso de o senhor Igor precisar que eu envie um documento ou abra uma apresentação.
— Ele foi ao banheiro? — Ellen sorri.
— Provavelmente.
— É estranho imaginar essa gente rica usando o banheiro, né? Eles constroem uma imagem tão idealiza na mente das pessoas que coisas tão simples como essa não encaixam.
— Você fala como se não fosse rica também. — Enrolo o fone de ouvido e coloco na case. Meu celular começa a vibrar com mensagens chegando uma atrás da outra, mas ignoro. São meus cinco minutos de folga, oras!
— Eu tenho dinheiro, mas não sou rica.
— Não entendi a sua lógica. — Gargalho alto e levo a mão na boca. Ainda bem que o microfone está desligado, tenho que preservar minha imagem de pessoa reservada e quieta.
— Tanto faz. — Ela empurra minha cabeça, brincando — Por que você está assistindo a reunião de casa e não do escritório, com seu chefe?
— Ele me colocou no rodízio de homeoffice hoje. Acordei meio febril.
— O quê? — El coloca a mão na minha testa e na testa dela para comparar as temperaturas — Meu Deus, você está com febre mesmo! Por que não me disse?
Ela dispara para minha cozinha conjugada com a sala e vasculha as gavetas dos armários. Talvez esteja procurando algum remédio. Não reclamo, porque preciso tomar um anti-térmico de qualquer forma. Tomara que ela ache.
— Você tem que cuidar mais de si mesma. Não tem nem paracetamol nessa casa?
— Relaxa, El. É só uma febrezinha.
Ela desdenha do meu comentário com uma risada e continua sua busca.
— Ainda bem que seu patrão deixou você de home office hoje, porque é bem capaz de você ter ido trabalhar mesmo doente.
— Eu não tô doente, El!
— Sabe, — ela continua me ignorando e segue nas suas divagações — até que o tal Igor é atencioso em te liberar. Você é a assistente pessoal dele, um dia sem você deve ser bem complicado.
— Nisso você tem razão. Eu também estranhei, mas não reclamei da "folga". — Faço as aspas com o dedo.
Olho para o computador, especificamente para a tela de transmissão do escritório do meu chefe. Se eu tivesse de estar lá, sob o ar-condicionado super gelado dele, com certeza minha febre aumentaria. Além disso, não precisar correr atrás de Igor o dia todo, fazendo-o cumprir a agenda ou comer no horário, é um alívio. Sinto saudades de quando era eu quem precisava de uma assistente pessoal.
— Falando nisso, o que é mesmo esse tal de rodízio de home office? — Ellen aparece ao meu lado com um comprido branco e um copo de água.
Tomo o remédio que ela coloca na minha mão.
— É uma ideia que dei pro senhor Igor há uns quatro meses. Todo dia, 20% do quadro de funcionários da empresa trabalha homeoffice. Então, além das folgas no sábado e domingo, eles ainda têm um dia da semana pra trabalhar de casa. Com esse novo esquema de escala, a produtividade aumentou em 40%.
— Que ideia genial! Com certeza vou aplicar na minha empresa. Só preciso que você me informe todos os detalhes pra funcionar direito.
— Claro! — sorrio pra ela e, por um momento, minha atenção é resgatada de novo pelo celular, que não para de vibrar com notificações. Que saco!
— É tão fofo ver que seu chefe acata todas as suas ideias.
Desvio o olhar para outro canto que não seja o sorriso sacana de Ellen. Não é que Igor acate minhas ideias. Na verdade, é só um modo de se beneficiar da produtividade de sua assistente pessoal, até porque ele conta com as minhas ideias para facilitar a sua vida. Mesmo que envolva, também, a administração da empresa.
— Ele não acata as minhas ideias... — falo, sem jeito.
— Você gosta dele, né? — ela diz, me fazendo engasgar com a saliva.
— Claro que não!
— Claro que sim. Eu não vejo você animada com nada há muito tempo, mas sempre que você fala como seu chefe está aplicando uma ideia sua ou como agora, quando ele te dá uma folga porque está doente, seus olhos brilham.
— El, você sabe...
— Já faz tanto tempo. Que Deus me perdoe por ofender a alma de um falecido, mas o Micael era um babaca. Você não pode achar que aquele exemplo de amor seja o parâmetro pra todos os outros na sua vida.
Minha vontade é dizer a Ellen que não faz o menor sentido o que ela disse, ou dizer que cansei do amor. Mas, surpreendentemente, hesito.
— Eu sou sua melhor amiga, te conheço muito bem. — El aponta o dedo na minha cara, muito condescendente e atrevida. Essa maluca! Solto um risinho.
E é então que meu celular toca. Dessa vez não posso ignorar, porque não são simplesmente notificações agora, mas sim a ligação de Igor Armani, meu chefe! Por que ele está me ligando? Deu problema na transmissão? Pego o aparelho e pigarreio um pouco para limpar a garganta. Atendo no terceiro toque. Porém, Igor não me dá nenhum bom dia ou coisa parecida do tipo, pelo contrário, diz palavras que me assustarão por longos dias a fio:
— Se você vai confessar que gosta de mim, pelo menos desligue o microfone da transmissão.
Continua...
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