4 - áurea castelo
NÃO SEI COMO, mas acho que quebrei o braço. A dor que sinto no pulso esquerdo faz eu me contorcer no campo, e é como se eu pudesse sentir o chão tremer quando todas as garotas correm na minha direção.
— Ai meu Deus, me desculpa! — Uma delas, possivelmente a que atirou a bola assassina na minha direção, se aproxima mais do que as outras. — É melhor a gente levar ela pro hospital, treinador.
— Deixa eu dar uma olhada.
O meu pai se agacha pra ver o meu estado, surpreendentemente calmo demais. Ele deve ter visto e até sofrido muitas lesões nos seus anos de jogador, mas eu esperava uma reação diferente sendo eu a filha dele. Talvez no campo eu só seja mais uma aluna.
— O que aconteceu? — pergunta, depois de tentar esticar o meu braço e me ouvir reclamar.
Eu consegui desviar da bola por pouco. Ela passou de raspão pelos meus cabelos no instante em que me abaixei, mas devo ter apoiado meu corpo de forma errada, já que todo o meu peso caiu sobre o antebraço. O inchaço repentino na altura do pulso confirma as minhas suspeitas.
— Certo, treino suspenso — decreta meu pai, me ajudando a levantar com cuidado. — Assim que possível eu aviso quando teremos outra partida, tá bem?
As meninas assentem, seus rostos preocupados. Não queria ter atrapalhado o jogo delas, mas a dor está tão insuportável que nem consigo sentir culpa. Seguro meu pulso com a mão direita enquanto papai me guia até o estacionamento da escola, onde nosso carro está.
— Me desculpa mesmo! — ouço a garota da bola assassina gritar, e não me surpreendo quando olho para trás e descubro que é a jogadora dos passos de dança.
RECEBO ALTA DO hospital depois que colocam o gesso. O raio-x deixou claro a fratura um pouco acima do pulso, dividindo o rádio, um dos ossos do antebraço, em dois pedaços.
De volta pra casa, papai parece muito mais preocupado do que mais cedo.
Fico em silêncio no banco do carona, sem saber o que dizer. Quero pedir desculpas por atrapalhar sua estreia como treinador das Faíscas Violetas, por ter mentido durante anos e por tê-lo feito passar as últimas duas horas me ouvindo reclamar de dor. Mas em vez disso, eu só fico em silêncio, e numa tentativa de melhorar o clima, conecto o meu celular no aparelho de som do carro e coloco uma música que sei que ele gosta. My girl, do The Temptations, começa a tocar, e vejo um sorriso aparecer no rosto do meu pai.
— Adoro essa — diz, antes de relaxar um pouco os ombros e começar a cantarolar.
— Lembro de você cantar pra mim quando eu era pequena — digo, buscando a lembrança no fundo da memória. Eu devia ter uns sete ou oito anos, e estava passando as férias com ele em Gênova, na Itália.
— Era sua música favorita quando bebê, você só dormia quando eu colocava pra tocar. E antes disso, eu sempre cantava ela pra sua mãe.
— Sério?
Papai concorda com a cabeça, parecendo feliz com a lembrança.
— Como a música diz, ela era o meu sol num dia nublado.
Além de todas as suas qualidades como pai, irmão e jogador de futebol, papai também é o último romântico da terra. Até hoje eu não entendo como eu, nesses quase dezessete anos, nunca tive uma madrasta.
— Sente falta dela, pai? Da mamãe.
— Todos os dias — ele responde sem demora. — Mas ela não me deixou sozinho aqui, e eu a agradeço muito por isso.
O próximo verso da música toca, e papai canta feliz da vida que não precisa de dinheiro, fama ou fortuna, porque ele já tem todas as riquezas que alguém poderia querer. Canto o último refrão com ele, única parte da música que sei de cor.
— Quando conhecer alguém, Lila — ele diz, assim que finalmente alcançamos a nossa rua —, lembre de escolher a música perfeita pra vocês dois.
— Isso pode estragar uma música boa pra sempre, pai — rebato, torcendo o nariz.
Papai sorri e corrige a postura, adotando um ar de superioridade que me faz rir e querer imitá-lo. Mas quem eu quero enganar? Quando o assunto é relacionamentos amorosos e gestos românticos, meu pai é de longe o especialista aqui, já que minha experiência nesses assuntos é zero.
— Pode até acontecer — ele admite, dando de ombros em seguida. — Mas se ele for a pessoa certa pra você, essa vai se tornar a música mais importante da sua vida.
Sorrio e assinto, feliz de verdade pela conversa, ainda que a escolha errada de pronome parta em pedacinhos o meu coração.
DEPOIS DE QUATRO horas olhando para o teto, eu chego a conclusão de que o braço quebrado foi karma. Eu pedi tanto por uma interferência divina que me impedisse de participar do treino de futebol que os deuses, achando que seria um plot twist muito engraçado, fizeram essa palhaçada comigo.
Eu não consegui dormir, mesmo com o consumo exagerado de remédio para dor. O gesso faz minha pele suar e coçar e é impossível encontrar uma posição confortável com esse troço. Tô quase achando que seria melhor passar pela humilhação de descobrirem a verdade do que ter de lidar com esse braço quebrado.
— Bom dia, filhota. Conseguiu dormir?
Meu pai usa um avental cor de rosa enquanto prepara torradas para nós dois, a única coisa que ele sabe fazer bem na cozinha. Me acomodo na mesa velha de madeira que veio com a casa e seguro meu rosto com a única mão utilizável. Meu corpo inteiro parece clamar por uma cama.
— Talvez eu desmaie enquanto tomo café — aviso, lutando pra manter os olhos abertos. — Quando é mesmo que vou poder tirar esse gesso?
— Daqui a seis semanas.
Resmungo um palavrão baixinho, irritada. Não sei se aguento mais um dia sem dormir, quem dirá um mês e meio inteiros.
Ponho café na caneca, mordiscando sem muita vontade a torrada e um pedaço de bolo da padaria no fim da rua. Por mais que a bebida quente me faça acordar um pouco, ela não é suficiente pra me livrar do mau humor.
— Não quer tentar dormir mais? Hoje é sábado, não precisava levantar cedo.
Nego com a cabeça, sem vontade de verbalizar qualquer relutância.
Papai não protesta, ou pelo menos não consegue a tempo. Antes mesmo de eu dar a última mordida no meu pedaço de bolo, ouvimos as batidas na porta de entrada. Seja lá quem for, aparentemente não conhece a regra universal de não-perturbação antes das onze horas de um sábado.
— Será que é algum vizinho?
— Um bem sem noção — reclamo, ajeitando a alça da tipoia que começa a irritar meu pescoço. — Quem perturba alguém às oito da manhã?
Meu pai se levanta e segue até a entrada, e eu chamo sua atenção no último instante para que tire o avental antes de atender a porta.
— Bom dia, treinador! A Dalila está?
Engasgo com o bolo, e preciso tossir umas mil vezes pra me recuperar. A jogadora dançarina aparece na cozinha, guiada pelo meu pai, e seu sorriso simpático logo se transforma numa carranca quando vê o gesso envolvendo meu braço.
— Ai meu Deus, então foi sério mesmo!
Encaro o gesso como se reparasse nele pela primeira vez, e preciso dar um gole longo no meu café pra que o restante do bolo desça pela minha garganta.
— Eu só caí do jeito errado — explico, dando de ombros. — Não foi sua culpa.
— Vou deixar vocês à sós, tá bem? — diz papai, antes de apanhar sua xícara ainda cheia e se retirar da cozinha.
Mesmo com minha garantia de que foi um acidente, o rosto da garota deixa claro que ela ainda está se culpando. Ela olha do meu braço para o meu rosto umas mil vezes antes de perguntar:
— Tá doendo muito?
— Só um pouco — minto, já que ela não precisa saber que passei a noite reclamando de dor como a fracote que claramente sou. Decido mudar de assunto. — E é Lila, tá?
— O quê?
— Meu nome. Ninguém me chama de Dalila além do meu pai, então...
A garota concorda com um sorriso, estendendo a mão esquerda para que eu possa cumprimentá-la com o braço bom.
— Eu sou a Áurea. Áurea Castelo. E todo mundo me chama assim já que meu nome é desprovido de apelidos bons.
— Ah, sorte sua que seu nome é bonito, então.
Meu Deus, o que foi isso? Além de ser pra sempre a garota que quebrou o braço nos primeiros cinco minutos de um jogo de futebol, também vou ficar marcada como a idiota que só saber falar besteira. Culpa da privação de sono.
Por sorte, Áurea é educada. Ela ignora minha falta de noção e solta uma risadinha.
— Eu quase me esqueci. — A garota tira a mochila das costas, retirando do bolso maior uma tigela enrolada num pano de prato. — É pão de milho, especialidade da minha mãe.
O aroma delicioso inunda a cozinha assim que ela tira o pano e revela o pão dourado e ainda quentinho. E mesmo estando sem fome, meu estômago reclama ao sentir esse cheirinho de massa recém-saída do forno.
— Você já tomou café? Se quiser, meu pai acabou de fazer e ainda tá quentinho.
Áurea reluta antes de ocupar a cadeira onde papai estava. E não sei se é impressão minha, mas a breve menção a ele parece ter deixado a garota nervosa.
Ela me ajuda a cortar o pão, e eu busco uma xícara limpa no armário. Ela pergunta quanto tempo vou ficar com o gesso e juro que quase choro quando respondo. E talvez seja só a sua empatia exagerada, mas ela também parece desapontada.
— Não vai conseguir participar dos treinos, então? — Nego com a cabeça, fingindo um sorriso triste. — Uma pena. Tava doida pra ver a filha do Augusto Montes jogar.
Faço uma careta. Eu sei desde que me entendo por gente que ser a filha de um jogador famoso é tudo que consigo ser, mas não quero que esse seja o único motivo para fazerem amizade comigo por aqui.
— Eu não sou tão boa como ele... — murmuro, dando um gole no meu café já frio.
— Ah, duvido muito. Aposto que pode ensinar bastante coisa pra mim.
Preciso mudar de assunto imediatamente.
— Você joga futebol há muito tempo?
— Desde sempre, eu acho, mais por questões de sobrevivência. Sou a única menina numa família de quatro filhos, então precisei aprender a jogar pra que me levassem a sério.
— E agora é melhor que todos os seus irmãos, imagino.
Ela sorri, balançando a cabeça.
— Nenhum se tornou capitão do time, então...
Áurea beberica seu café, e eu aproveito os segundos de silêncio pra olhar melhor pra ela. Não sei se é por estarmos próximas demais ou pelo cenário totalmente diferente, mas aqui ela parece uma outra pessoa. E não estou falando das roupas largas que substituem o uniforme, ou o risco na sobrancelha que eu não tinha notado antes, mas sim da energia que ela emana. A jogadora dos passos de dança fora dos campos não é nada além de uma garota da minha idade, e isso nem de longe é uma coisa ruim.
— Meu Deus, já são quase nove! Desculpa não poder ficar mais, mas falei pra minha mãe que não ia demorar.
Ela se levanta, tirando os farelos de pão da roupa e dando o último gole no seu café. Me levanto também, me sentindo meio idiota por ainda estar de pijamas, a camiseta com estampa de astronauta me fazendo parecer uma criançona.
— Obrigada pela visita — agradeço, e aceno com a cabeça em direção à mesa —, e pelo pão de milho. Diz pra sua mãe que ela é uma cozinheira incrível.
Áurea ri. Ela ajeita a mochila nas costas e me encara por alguns segundos antes de perguntar:
— Posso te pedir uma coisa? — Assinto. — Não precisa concordar se não quiser.
Franzo as sobrancelhas, começando a ficar com medo de seja lá o que ela queria pedir. Mas o gesto faz com que Áurea dê um sorriso largo. Ela enfim pergunta:
— Posso assinar no seu gesso?
É claro que eu concordo. Papai me arranja uma das canetas que usa pra marcar seu quadro de jogadas nos treinos, e eu observo Áurea segurar o meu braço com cuidado pra rabiscar algo bem perto do meu pulso. Ela cobre o desenho com a mão, pra que eu não consiga ver o que está fazendo.
— Cuidado com o que vai fazer, viu? Eu sou moça de respeito e vou ficar andando por aí com esse gesso por mais de um mês — digo, tentando a todo custo bisbilhotar o desenho.
— Relaxa, não tô desenhando um pinto nem nada do tipo — ela brinca, mas a ideia me deixa assustada. — E... prontinho! Agora, eu preciso mesmo ir.
Ela me devolve a caneta e eu a acompanho até a saída. Áurea se despede de papai na sala de estar e me dá um abraço rápido de despedida antes de ir embora, tomando cuidado pra não machucar o meu braço.
— Até mais, Lila.
Assisto da calçada a garota subir a rua, e só então eu me permito conferir os rabiscos desenhados no meu braço. Um balão de fala apontando pra um rosto sorridente e com cabelos cacheados me pede pra melhorar logo. Seu número de celular foi escrito logo depois. Embaixo dele, Áurea escreveu:
me chama se quiser conversar :)
— Ela parece ser bem legal, né? — Meu pai surge do nada, me assustando e me fazendo tirar a atenção do gesso rabiscado. Ele observa Áurea enrolar a esquina pra enfim olhar para mim. — Espero que vocês se tornem amigas.
— É. — Sorrio, segurando o meu braço bem perto do peito. — Eu também espero.
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