Capítulo 4
Felipe e o enfermeiro Diego, se juntaram as equipes de buscas por sobreviventes nos destroços do avião. Fato que dentro da normalidade não seria permitido, entretanto, devido ao limitado número de socorristas disponíveis, foi uma ajuda bem vinda.
Quando desistiram, uma fina chuva veio lamentar as mortes. Felipe sentiu um gosto amargo e um sentimento de que deveria haver alguma coisa que pudesse fazer pelas 53 pessoas, que a partir daquele dia não mais existiriam. Mas não havia. Ali se encerravam 53 histórias, muitos sonhos não realizados, riscos não corridos e escolhas não tomadas. Ao pensar em todos os familiares e amigos que logo sentirão por essas partidas inesperadas, as lágrimas vieram. Era inegável que também havia um triste sinal no olhar de cada um dos que, após horas de busca, não encontraram passageiros do avião ainda com vida. A fumaça e o calor decorrentes da explosão tornavam o ar difícil de respirar. Todos pareciam esgotados. Felipe e Diego decidiram voltar para a ambulância, onde mais pessoas poderiam estar precisando de ajuda.
No céu, uma frouxa claridade precedia a escuridão da noite. Em dias normais, as luzes artificiais da cidade são sempre acionadas aos primeiros sinais do crepúsculo, fazendo com que essa transição seja minimamente perceptível. Entretanto, quando a noite se aproxima e as luzes se mantém apagadas, um vazio sombrio carrega a mensagem de que quando está escuro, todo cuidado é pouco.
Felipe sentiu que havia algo diferente no ar. Assim como o cheiro presente nas primeiras tardes de verão o faziam lembrar de férias, Natal e fim de ano, o vento frio daquele anoitecer o fez sentir medo. Não porque algum sentimento de momentos sombrios que vivera tivesse emergido. Mas provavelmente porque despertara nele alguma lembrança ancestral que relaciona a noite com o perigo.
No estacionamento do aeroporto não havia praticamente mais ninguém. Ao que podiam ver, as pessoas que mais cedo haviam recebido atendimento, também foram embora. Mas ao olhar dentro da ambulância, encontraram Júlia, Paulo, Dona Maria e seu neto Davi, se protegendo da chuva. Paulo estava bem acordado e demonstrou um certo alívio quando viu Felipe. Havia uma faixa que envolvia praticamente toda a sua cabeça e isso parecia lhe causar vergonha.
— Vocês estão bem? — Perguntou Diego.
Todos assentiram exceto o neto de Dona Maria.
— Eu to com fome — disse o menino.
— Você não é o único — Júlia sorriu para ele. — Será que algum restaurante do aeroporto está atendendo?
— Não — respondeu Diego — o avião caiu muito perto do prédio. Os bombeiros interditaram tudo.
— Bom, eu to indo pra casa — disse Felipe — se alguém quiser dividir o Táxi comigo...
— Que ótimo — disse Júlia — então os táxis já estão funcionando?
Felipe não entendeu. Júlia explicou que os carros nas proximidades do aeroporto haviam parado de funcionar, assim como os celulares. Ela falou sobre a conversa que teve com o taxista e todos ficaram perplexos.
— Então não dá pra ir embora? — disse Paulo.
— Se isso for verdade — começou Dona Maria — nós nem temos para onde ir.
— Eu gostaria de ir para a rodoviária — disse Júlia — mas pelo que entendi fica longe daqui. Então eu acho que vou procurar um hotel pra ficar essa noite. Pra onde a senhora estava indo?
— Pra Maringá. — Era possível ver que Dona Maria lamentava não estar em seu destino tanto quanto Júlia. — Nós só paramos aqui pra...
— Trocar de avião — completou Davi.
— Então porque a senhora e seu neto não vem comigo? Já está ficando escuro, não podemos passar a noite nessa ambulância.
— Eu vou pra casa apé. Posso acompanhar vocês até um hotel. — Felipe tentou se convencer de que Júlia estava enganada. Um fenômeno capaz de danificar todos os carros era algo difícil de acreditar. Mas pensando melhor, considerou que talvez houvesse alguma verdade naquela história. Afinal, o celular dele também não estava funcionando e haviam muitos carros parados na porta do aeroporto.
Diego decidiu acompanhar Felipe. Segundo ele, sua casa ficava do outro lado da cidade, mas explicou que cedo ou tarde chegaria até o lugar em que tudo ainda estava funcionando.
Paulo preferiu ir até a locadora de veículos do aeroporto, pois certamente teriam resolvido qualquer problema com os carros. Ele insistiu para que Felipe fosse com ele, mas como Júlia estava decidida de que iria procurar um hotel, Felipe teve um pressentimento de que não seria correto deixá-la ir sozinha.
Quando a chuva voltou a ser uma leve garoa, todos saíram da ambulância e Diego a trancou. Eles seguiram pela rua do estacionamento até dar na avenida em que Felipe sabia haver muitos hotéis.
— Quer ajuda com essas malas? — Diego perguntou para Davi que carregava a sua mala e a de sua avó.
— Sim — disse o menino — obrigado por cuidar da minha vó.
— Por nada... O seu nome é Davi, não é? — Diego puxou para o ombro, uma das malas que o menino carregava. — Ainda bem que a sua vó tinha você por perto.
— Esse menino é a minha vida — disse Dona Maria passando um braço por cima de Davi. — sempre cuida da vó.
Davi enrubesceu. Talvez devido ao comentário de sua avó ou talvez pelo sorriso que Júlia direcionou a ele.
Felipe percebeu que apesar da garoa, também haviam outros grupos caminhando pelas ruas. Alguns que vinham do aeroporto, passavam por eles fazendo comentários como "o jeito é ir apé né pessoal". No geral, quem passava por eles desaparecia pelo escuro das esquinas rapidamente. Comparado aos outros grupos, eles eram o mais lento. Talvez devido a preocupação de todos com Dona Maria, que ainda sentia tonturas. Mas talvez, os verdadeiros culpados pela falta de velocidade do grupo, eram os sapatos de Júlia, que não eram exatamente apropriado para longas caminhadas.
Pelo caminho, todas as ruas possuíam carros parados. Na parte mais movimentada da avenida, os veículos imóveis davam a impressão de que havia um congestionamento, exceto pelos faróis desligados. Nas ruas menos trafegadas, os carros parados no meio da rua, pareciam ser propriedade de motoristas que, por alguma razão, decidiram estacionar em qualquer lugar. Dentro dos carros, olhos espreitavam os caminhantes enfrentando a fria garoa.
— Caramba, eu achei que os hotéis ficavam mais próximos do aeroporto — disse Júlia quase ofegante.
— Eu acho que quando se está de carro eles ficam mais próximos — comentou Felipe, rindo da situação. — Estamos quase lá. Tem três hotéis na próxima quadra, se não me engano.
Felipe estava certo. Depois do primeiro hotel, era possível ver a placa de mais dois, praticamente ao lado e alguns outros na continuação da avenida.
— Muito obrigada por virem com a gente até aqui — Júlia estendeu a mão para Felipe, depois para Diego — espero que cheguem bem em suas casas.
— Obrigado. Desejo o mesmo a vocês. — Diego entregou a mala de Dona Maria para Davi.
A porta do hotel estava aberta e dava para ver um certo movimento de pessoas na recepção. Quando Júlia, Davi e Dona Maria entraram, Felipe e Diego seguiram seus caminhos.
— Se eu não tivesse quebrado, ficaria por aqui também — comentou Diego — amanhã vou ter que dar um jeito de buscar a ambulância.
— Onde você mora? — Perguntou Felipe.
— No bairro Fazendinha.
— Nossa! E você pretende caminhar até lá? Em quantos dias acha que consegue?
Diego riu e depois ficou pensativo.
— Eu pretendo ir andando só até achar um ponto de ônibus.
— Então está chegando, tem um logo ali — Felipe apontou para o cruzamento das avenidas — e olha que sorte, o ônibus já está vindo.
Parado na esquina, estava um ônibus articulado cinza. Dentro dele, não havia ninguém. Uma das janelas estava totalmente escancarada. Provavelmente, no momento em que tudo parou de funcionar, as portas do ônibus não abriram e os passageiros tiveram que acionar a saídas de emergência. Felipe, que sempre tivera vontade de puxar a alavanca vermelha, pensou que em um dia como hoje várias pessoas deveriam ter feito isso. Decidiu que preferia estar em ônibus do que naquele elevador, quando tudo aconteceu.
Além dos dois, não havia mais ninguém na rua. Eles podiam ver que algumas pessoas olhavam para eles da janela dos carros e de dentro dos edifícios. Com a escuridão da noite quase completa, era impossível ver mais do que uma quadra de distancia de onde estavam.
— Isso é muito esquisito cara — disse Diego.
Os dois pararam de andar e deram uma olhada ao seu redor.
— Olha isso — disse atônito — chega a dar medo. Parece o fim do mundo. Mal escureceu e já tá tudo fechado, tudo em silêncio. E olha que eu sou acostumado a trabalhar de madrugada, quando fica tudo... Meio quieto. Mas isso aqui é diferente.
— Ta ouvindo isso? — Perguntou Felipe dando passos silenciosos no sentido da rua.
— Não. O que? Ah, espera! Sim, parece alguém correndo.
— É, tem alguém vindo em nossa direção. Da pra ver. — Felipe apontou para o fim da avenida. — Parece um piázinho.
O formato humano se aproximou rapidamente. Era um homem baixo, de descendência japonesa, que corria como se estivesse fugindo da própria Yakuza. Quando chegou até Felipe, parou. Parecia extenuado. Em uma das mãos carregava um terno, na outra, uma gravata e sapatos. Sua camisa, já totalmente aberta, estava encharcada de suor e chuva. Mas o que chamou a atenção de Felipe, foi o tênis verde fluorescente, ideal para corridas noturnas.
— Olá — disse o homem, quase sem fôlego — to indo pro aeroporto... Vocês sabem me dizer... Se é só continuar reto?
— Sim, é pra lá. — respondeu Felipe.
— Obrigado. — Ele respirou apoiando as mãos nos joelhos.
— A gente ta vindo de lá — disse Diego. — Cancelaram todos os vôos. Caiu um avião.
A expressão do homem se transformou em horror. Ele se agachou, fez uma careta, voltou a ficar em pé e começou a andar de um lado para o outro.
— Eu preciso tentar... — balbuciou — Não posso perder esse emprego.
— Posso perguntar de onde você vem? — Felipe tinha esperanças de conseguir informações sobre até que ponto da cidade o problema elétrico se estendia.
— Eu moro no Xaxim. Vim correndo desde lá. Ta tudo parado, nenhum carro funciona. Não tive escolha se não vim correndo. Mas eu tenho que ir. — O pequeno homem deu uma última respirada e saiu correndo.
— Espere! — gritou Diego. Mas o homem já estava a meia quadra de distância e não parou.
— Se o Japa aí veio lá do Xaxim, até onde vai essa merda? — comentou Felipe — a minha esperança era que depois do viaduto do Iguaçu já tivesse luz.
— Eu to muito ferrado. Vou passar a noite andando.
— Nós dois vamos. O Boqueirão pode não ficar tão longe quanto o Fazendinha, mas pra quem está apé, é longe pra cacete.
— Eu tenho uma alternativa... Mas não é uma opção fácil.
— Como assim?
Diego apontou para o lado oposto da rua.
— Eu conheço uma pessoa que mora, a uns trinta minutos naquela direção.
— Entendi.
— Mas talvez ela não queira me ver.
— Ex-namorada?
— Da pior espécie.
— Do tipo que continua te procurando pra sempre?
— Não. Quem dera. Essa é do tipo que me viu com a melhor amiga.
Felipe riu, fez um alongamento e retomou a caminhada.
— Mais duas horas e eu te empresto o meu sofá.
Vindo da escuridão da rua, um novo som os despertou a atenção.
— Diego! — gritou uma voz infantil.
Os dois se viraram e encontraram Davi correndo em direção a eles.
— Diego, a gente não conseguiu.
— O que não conseguiram? Cadê a sua vó?
— Tá vindo. Não tinha mais lugar no primeiro e o outro tava fechado.
— Calma. O hotel tava lotado?
— Sim, agora a gente vai tentar nesse aí. — O menino apontou para o prédio de fachada azul que emitia pequenos pontos de luz.
Felipe e Diego se entreolharam. Eles aguardaram Júlia e Dona Maria e as perguntaram o que havia acontecido. Elas explicaram que o primeiro hotel não tinha mais quartos livres para essa noite e o segundo estava fechado.
— Então vamos tentar nesse aí — disse Felipe.
Eles caminharam até a porta do terceiro hotel e olharam pelo vidro. Em cima do balcão, a chama de velas indicava que haviam pessoas lá dentro. Felipe tomou um susto quando a porta se abriu. De dentro do escuro hotel, surgiu um homem idoso com profundas olheiras. Ele encarou Felipe, depois olhou para Júlia e fez um gesto para que entrassem. Diego preferiu ficar lá fora. Os outros entraram. Quando chegaram no balcão, havia uma recepcionista e uma hóspede discutindo.
— Senhora, desculpe, infelizmente não podemos ajudar — lamentou a recepcionista.
— Isso é um absurdo! Eu vou garantir que a empresa do meu marido nunca mais se hospede aqui! — a hóspede pegou uma vela do balcão e desapareceu nas escadarias do hotel.
— Com licença — se aproximou Felipe — vocês ainda tem quartos livres?
— Pois não, senhor. Sim, temos alguns — respondeu a recepcionista.
— Graças a Deus — disse Júlia. — vamos querer dois.
Felipe olhou para Davi. O menino parecia assombrado com o lugar. Ele sentia o mesmo. A fraca luz de velas e o funcionário macabro, faziam do lugar um cenário perfeito para filmes de terror de baixo orçamento. A recepcionista retirou algumas fichas de baixo do balcão e as entregou para Júlia.
— Senhora, — começou ela — hoje, nós infelizmente não temos como oferecer todas as facilidades do hotel.
— Eu entendo. — Disse Júlia. — Só precisamos de um quarto. E se for possível, um telefone... Ah, e precisamos comer. Que horas servem o jantar?
— Senhora, hoje, infelizmente não serviremos o jantar. E não teremos como oferecer um telefone.
Felipe chamou Júlia de lado.
— Vamos procurar outro lugar.
— Por quê? — Perguntou ela. — Podemos ficar aqui e procurar algum lugar por perto pra comer.
— Não sei. Acho que aqui não é um bom lugar.
Felipe percebeu que Júlia o encarava desconfiada. Mais cedo no elevador, quando ela o viu pela primeira vez, ele sentiu que não fora bem interpretado. Embora ele tivesse oferecido toda a ajuda que pôde ao longo do dia, a verdade é que Júlia não o conhecia e portanto, não tinha motivos para confiar nele. Felipe decidiu que se Júlia quisesse ficar naquele hotel, ele não se importaria. É claro que quando um homem está diante de uma mulher como essa, suas atitudes nem sempre serão pautadas em decisões claras. Mas pensando sobre isso, ele concluiu que a coisa mais segura a se fazer, era manter distância.
— Já tá escuro e ficando frio — disse Júlia — e a Dona Maria também precisa descansar. Você pode procurar outro lugar se quiser, mas eu prefiro ficar. — Pela segunda vez no dia, ela estendeu a mão para ele. — Muito obrigada por vir até aqui.
Você está gostando? Por favor, deixe o seu voto. Assim eu me sinto muito mais motivado a continuar escrevendo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro