Capítulo 1
Júlia configurava o seu celular para o modo silencioso quando notou que havia cometido um grave erro. Isso porque, devido a chatíssima e mal sucedida videoconferência com Guilherme e o pessoal do App Sholleto, houve um consumo extra de bateria e a carga restante do Smartphone era de apenas 10%. Como só faltavam alguns minutos para a reunião das quatro horas, ela teria que dar um jeito de conquistar o cliente, sem consultar os dados que havia preparado.
Por sorte, ter que improvisar não era algo que a vazia perder o rebolado. Pelo contrário. Antes de ir para a sala da reunião, ela pegou os relatórios e depois foi ao banheiro. Olhou para o espelho e encarando a si mesma constatou que estava diante da melhor vendedora que o mundo já viu.
Uma das maneiras mais eficientes de convencer um cliente a entregar todo o dinheiro que possui, para que você resolva os problemas que ele não quer, não pode ou não sabe resolver é na verdade muito simples. Basta apresentar a ele, da maneira mais gentil que conseguir, o maior número de erros que ele cometeu, por mera ignorância ou por ser um imbecil, e por fim deixa-lo perceber o quão apto você é para ajudá-lo.
Seja pela confiança que possui em sua habilidade, ou porque era sexta-feira às quatro horas da tarde e Júlia ficou de buscar as crianças na escola às seis, ela entrou na sala de reunião com o diretor da We Systems, e possível novo cliente da Preston, decidida de que fecharia o contrato mais rápido de toda sua carreira.
Quando os olhos dela encontraram os do diretor, algum tremor interno se iniciou no executivo. Talvez ele não esperasse que a Júlia da Preston, com quem havia conversado diversas vezes por e-mail, fosse uma jovem de mais ou menos 35 anos, de cabelos pretos ondulados e incrivelmente bonita. Ou talvez fosse a capacidade que Júlia tinha de lançar um olhar para pobres executivos, como se eles fossem meras presas de sua espécie. Após os cumprimentos, ela começou a falar e o homem não teve chances nem capacidade de interrompê-la.
— Quando o senhor nos enviou os detalhes dos seus processos, nós começamos a entender quais são os problemas que vocês possuem e posso dizer que já sabemos como ajudá-los — disse ela colocando alguns relatórios sobre a mesa — foi bastante simples supor, por exemplo, que há alguns meses, ou talvez anos, vocês não conseguem cumprir prazos de entrega, e sofrem prejuízos com multas, retrabalhos e excesso de horas extra. Para compensar, vocês tem estipulado prazos maiores e diminuído o número de novos projetos, o que provavelmente faz com que haja uma queda na receita, o que os deixam tentados a aumentar o valor dos contratos, o que os tornariam menos competitivos. — Pela falta de objeções Júlia entendeu que suas suposições estavam todas corretas e continuou. — Você não sabe quanto tempo cada tipo de atividade leva para ser executada porque os seus funcionários não informam corretamente no sistema quanto tempo leva para se executar cada tipo de atividade e é muito ineficiente perguntar a eles de outra forma. Mas a culpa não é deles. Eles não informam no sistema pois o sistema que vocês utilizam é lento e faz perguntas demais, além disso eles já possuem muitas tarefas e sofrem cada vez mais cobranças para executá-las mais rapidamente. A reação é natural, eles fazem de qualquer jeito. Ou melhor, do jeito errado. A solução mais óbvia, e correta, seria repassar essa tarefa para quem possui um cargo de gestão de equipe, deixando a equipe em si, focada no trabalho que realmente importa.
Nesse momento o diretor da We Systems fez um sinal de quem iria dizer algo, mas antes que pudesse, Júlia retomou o raciocínio.
— Mas eu sei que vocês já fizeram isso e não funcionou. Sabe por quê? Porque o seu sistema é lento, faz perguntas demais, os gestores de equipes já possuem um bom número de tarefas e por isso eles naturalmente repassam esse trabalho burocrático para suas respectivas equipes, que você sabe, preenchem o sistema de modo errado. Sabemos de tudo isso pois noventa por cento das empresas que nos procuram sofrem do mesmo problema. A boa notícia é que nós conseguimos ajudar cem por cento delas. Você precisa contratar não somente o sistema de gerenciamento de tarefas Preston, como também a nossa cumplicidade. Iremos fornecer a ferramenta certa e iremos ensiná-los a usá-la do jeito certo.
A sequência da reunião foi uma breve discussão sobre os valores da negociação e depois o diretor da We Systems disse que precisava conversar com sua equipe, mas estava claramente inclinado a fechar negócio, ali mesmo se pudesse. Júlia sabia quando estava ganhando e desta vez sua vitória estava certa, mas infelizmente estava preocupada demais para comemorar. Já eram cinco e vinte e ela estava atrasada.
Júlia não sabia e talvez nunca fique sabendo, mas o diretor da We Systems nunca quis virar cliente da Preston, ele inicialmente marcou a reunião pois pretendia vender parte da sua empresa e havia enviado os detalhes antecipadamente pois queria se gabar dos processos e do sistema de gestão que utilizavam.
Uma forma inteligente de sair do trabalho mais cedo sem chamar a atenção é agir calmamente. Você deve caminhar até a saída como se não estivesse indo embora, e simplesmente não voltar. Isto é, se você não fizer cerimônias e se você evitar despedidas é muito provável que ninguém dê conta de sua saída, e se der, há uma considerável chance de que essa pessoa tenha a impressão de que você "só vai ali e já volta". E claro que, por razões óbvias, a chance aumenta se você for fumante.
Júlia pretendia atravessar o corredor do escritório até chegar no elevador e estar livre. Pelo caminho haviam poucas pessoas e todas pareciam entretidas. Algumas trabalhavam concentradas, outras nem tanto, como o caso do CEO da Preston Guilherme Barros que contava uma piada.
Para adiantar o esclarecimento do que aconteceu, já podemos dizer que Júlia não conseguiu concluir a sua trajetória de liberdade sem que alguém a notasse. Isso foi devido a três motivos: O primeiro é que Júlia não agiu calmamente, o que é compreensível já que ela estava com pressa. O segundo é porque Júlia, como a maioria das mulheres, possui o hábito de carregar uma bolsa recheada de itens como óculos, batom e celular, que todas as manhãs são dispersos pela mesa e portanto ao fim do dia precisam ser recolhidos. Este último ritual é entendido pelos colegas de trabalho, mesmo que de forma inconsciente, como o momento em que a pessoa está se retirando. O terceiro motivo é porque Júlia não era mais fumante.
Isso tudo permitiu que Guilherme Barros notasse a movimentação dela a tempo de terminar sua piada e intercepta-la há alguns passos do elevador.
— Quem diria... Júlia Miranda deixando o escritório em horário normal de expediente — sorriu o CEO da Preston.
— Quem diria — concordou Júlia — agora sou mãe de família.
— Ta aí uma coisa que eu não imaginava. Você mãe. — Guilherme acompanhou Júlia até o elevador e pressionou o botão para ela. — Mas vejo que está te fazendo bem... Não está?
— Sim! De um jeito incrível — sorriu ela.
— E como foi a reunião? Eu teria ido se soubesse que terminaria tão rápido.
— Foi bem, tudo como esperado.
— Claro que sim, você é incrível. — Guilherme olhou para os lados e vendo que ninguém podia os escutar disse: — Ju... Eu preciso te contar. Se depender de mim é você quem vai assumir a diretoria de vendas. Alguns dos sócios estão com medo de entregar essa responsabilidade nas suas mãos logo agora que você assumiu esse compromisso tão... Importante, de ser mãe. Mas eu sei que isso não mudará o fato de que você é a melhor!
Julia agradeceu sem parecer intimidada. Ela não queria que a conversa se prolongasse mas a sua principal estratégia para se livrar de conversas como aquela não daria certo agora que a bateria do seu celular estava completamente descarregada. O elevador chegou e Júlia teve um mau pressentimento quando Guilherme entrou junto com ela.
— Ju... — Começou o chefe meio tom abaixo "amanhã a Márcia vai pra Curitiba almoçar com o Flávio. Mas nós não estamos muito... Confiantes. Acho que ela ainda não está bem, sabe, depois da separação e tudo o mais. Eu sei que não pedi antes... Na verdade eu não quero te atrapalhar... Mas nós pensamos que, só se você puder claro... Porque você sabe que não existe ninguém melhor do que você para estar nesse almoço... Você pode acompanhar a Márcia amanhã? Eu sei que é Sábado, mas são só algumas horas, eu prometo que até as três você estará pegando um avião de volta.
O problema de se ter uma relação de confiança declarada entre duas pessoas, pelo menos nos quesitos prontidão e comprometimento, é que qualquer favor pedido a qualquer uma das partes, é encarado pela outra como uma prova sobre o merecimento dessa confiança.
Durante dois inacabáveis segundos, Júlia ficou pensando se haveria alguma desculpa boa o suficiente que a permitisse recusar. O seu plano era passar esse fim de semana, e todos os outros que vierem, ao lado de seus filhos, e nada além disso. Não havendo alternativas, respondeu:
— Sim, claro.
No caminho até a escola, Júlia procurou não pensar que trabalharia no Sábado. Ao invés disso direcionou os pensamentos para os rostos infantis de Pedro e Yasmim. Ao fazer isso uma transformação de humor a deixou tão calma e otimista que o trânsito intenso de Sexta-feira no horário de pico, se tornou comparável a um passeio de Domingo no parque. O que aliás Júlia considerou ser um bom plano para o fim de semana, a menos que as crianças preferissem ir ao cinema assistir o novo filme da Disney, o que também não seria má ideia.
No início, ser mãe não parece fazer sentido lógico. Não é como estudar uma série de comportamentos e saber exatamente como agir. Não é como estatísticas, cálculos, suposições nem nada similar as coisas que Júlia dominava. É algo totalmente irracional, em que para multiplicar é necessário antes dividir, para ganhar é preciso aprender a perder e para receber não há outra alternativa a não ser se doar. Ao fim do dia o que faz sentido não tem importância alguma e um sorriso inocente é a maior riqueza do universo.
Quando Júlia chegou na escola, alguns segundos antes de ver Pedro segurando a irmã pelo braço, já sabia que alguma coisa estava errada. Dizem que uma mãe pode pressentir quando algo de ruim acontece a um filho pelo cheiro, tom da voz, toque ou por qualquer outro sentido admitido ou não pela ciência. Ela rapidamente chegou aos dois e se ajoelhou preocupada.
— Meu Deus, o que aconteceu?
Havia uma pequena tala de palito envolto por esparadrapos no dedo anelar da mão esquerda de Yasmim. Ela protegia o dedo com a outra mão, e balançava num gesto que poderia ser confundido com um "nana nenen" caso houvesse uma boneca no lugar do dedo. A menina não parecia preocupada, apesar de seu rosto exibir marcas de lágrimas. Pedro por outro lado tinha a testa franzida. Yasmim começou a explicar o que havia acontecido.
— Eu caí. Mas não foi nada. Eu nem chorei. Né Pedro? — Olhou pro irmão que concordou com a cabeça.
Júlia levantou assim que viu a enfermeira da escola se aproximando com um telefone na mão.
— Tentamos ligar pra você mas só cai na caixa postal — disse ela.
— Estou sem bateria. O que aconteceu?
— Não foi nada demais. Ela caiu em cima da mãozinha — disse a enfermeira.
— Você está bem querida?
— Sim mamãe — respondeu Yasmim sorridente.
O rosto de Júlia se iluminou.
— Obrigada! Se precisar iremos ao médico.
No caminho até o carro, Yasmim contou em detalhes como o acidente aconteceu. Disse que estava brincando de pique cola quando, sem querer, o Mateus menor, porque também havia um outro Mateus só que mais alto, esbarrou nela enquanto corria atrás de uma bola. Júlia ouviu atentamente fazendo comentários precisos como "mas ele não olhou por onde andava?" e "deve ter doído, você nem chorou? Já é uma moça". Ela também notou que o semblante de Pedro já estava menos preocupado. Uma das coisas que mais causou comoção em Júlia quando conheceu os dois, é como Pedro se sentia responsável por proteger a irmã mais nova.
— E obrigada você também Pedro. Eu sei que você sempre vai cuidar da Yasmim se eu não estiver por perto.
Pedro respondeu dando o melhor sorriso que conseguiu, que era na verdade um sorriso bem pequeno, mas Júlia ficou feliz com o progresso do filho. Yasmim desatou a explicar porque o dedo anelar era só o seu terceiro dedo favorito e mais uma vez o trânsito caótico não atrapalhou o humor leve de Júlia. Nem mesmo quando começou a chover, acontecimento que misteriosamente causa pânico em grande parte dos motoristas.
— Mamãe posso ter um gesso? — Começou Yasmim empolgada — um bem grande que vai da mão até o cotovelo? Uma vez o Pedro quebrou o braço e todo mundo da casa Santa Maria assinou o gesso dele, eu não sei escrever mas fiz um coração. Posso mãe?.
Júlia olhou o rosto de Yasmim pelo retrovisor, os pequenos olhos da menina se distraiam com a chuva pela janela e os cachos do escuro cabelo formavam molas que brincavam no balançar do carro. Pedro, ao lado dela, também olhava para a chuva e Júlia quis saber quais eram os seus pensamentos silenciosos. De repente Júlia sentiu um medo extremo de falhar com aquelas crianças.
— Vocês sentem saudades da casa Santa Maria? — Perguntou Júlia.
— Eu sim — respondeu Yasmim alegremente — mas eu gosto da nossa nova casa mamãe.
— Que bom querida. Que bom. — Júlia esperou alguns instantes e como a resposta de Pedro não veio ela decidiu perguntar. — E você filho, sente saudades?
— Eu... Sim, as vezes sinto saudades — os olhos dele encontraram os de Júlia no retrovisor — podemos visitar a casa Santa Maria algum dia?
— Claro que sim querido. Sempre que quiserem.
— Mas eu também gosto da nossa nova casa, Júlia. É bem legal. — Disse Pedro e voltou a ficar em silêncio.
Yasmim começou a explicar algumas diferenças entre a casa nova e a casa Santa Maria, como por exemplo, que a casa Santa Maria era melhor para brincar de pique esconde, isso porque era maior e tinha mais quartos e como todos os quartos tinham portas entre si, era possível mudar de um quarto para outro sem que a pessoa que procurava notasse. A casa nova por outro lado, era tão alta que para chegar nela era preciso pegar um elevador. Além disso dava para ver as pessoas lá embaixo do tamanho dos bonequinhos de Pedro.
Naquela noite os três cozinharam panquecas para o jantar, depois riram juntos assistindo vídeos de gatos no Youtube. Se divertiram tanto que pareciam ter a mesma idade. Depois que Júlia os pôs para dormir, ligou para a babá e a pediu que viesse amanhã ficar com as crianças. Antes de se deitar, Júlia escutou a voz de Yasmim e foi até o quarto dela. A cama decorada com ursos e lençóis cor de rosa estava vazia. A pequena voz vinha do quarto de Pedro e Júlia foi até lá.
— ...Sim eu sei mas ela é a nossa mamãe agora. Por que você ainda chama ela de Júlia? — Yasmim perguntou sentada na cama do irmão.
— Eu sei. É que... — Pedro parecia pensar em como dizer algo delicado para a irmã mais nova. — É que antes, quando você era bebê, eu chamava alguém de mãe. E ela foi embora. Não quero que a mãe Júlia também vá embora.
Yasmim se deitou ao lado de Pedro e os dois rapidamente pegaram no sono. Júlia ficou os observando por um tempo e deixou que dormissem juntos aquela noite. Quando já estava deitada, sentiu-se fortemente tentada a ligar para Marcia e dizer que não se sentia bem para viajar, o que não era totalmente uma mentira. Pegou o celular e reparou que ele ainda estava descarregado. Quando o ligou, haviam muitas ligações perdidas e uma mensagem de Guilherme:
"Júlia por que não atende? A Márcia deu pra trás! É com você mesmo. O seu vôo ficou pras oito e meia. Já pedi um taxi pra você. Boa viagem, qualquer coisa me liga".
Júlia se levantou, escreveu um bilhete para a babá levar as crianças no aeroporto de tarde, deu uma última olhada em Pedro e Yasmim e depois foi dormir.
Caro leitor, ou leitora, me ajude a construir essa história. Caso encontre algum erro, de qualquer natureza, por favor me ajude a corrigi-lo. E não deixe de escrever um comentário sobre o que você está achando.
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