Capítulo 6 - Que hospitalidade
Entre as ruas de paralelepípedo, famílias se arrumam para mais uma semana de trabalho, crianças acordam para ir para a escola e outras coexistem sem poder mudar seu passado e nem o rumo que o futuro desconhecido as leva-vá. Se você pudesse mudar algo que aconteceu em seu passado, o faria, mesmo sabendo que seu crescimento pessoal é devido aos seus erros?
Passado, presente, futuro todos são tão bem entrelaçados em um caminho que escolhemos seguir. Por isso é tão importante olhar a beleza entre o mar de devastação de um mundo corrompido pela ganância humana.
Um Corsa modelo 2022 azul cintilante chega na cidade exatamente às 9h18min, às 10h Luís Henrique terá uma reunião com o Secretário da Saúde e será apresentado a equipe a qual irá trabalhar pelos próximos meses. Para passar o tempo, o médico resolve dirigir pela cidade e conhecer alguns pontos de referência, pelo caminho algumas pessoas esticam o pescoço para ver quem é o motorista, já que o carro não é conhecido nas redondezas e nem seu piloto.
Algo dentro dele estava diferente, aquele luto e o sofrimento dos sete anos tinha ficado trancafiado em algum lugar, talvez tivesse ficado entre as fotos na casa localizada na cidade dos Bons Ares ou ele apenas desejava recomeçar de alguma forma. A viagem, como seu pai tanto disse, o fez muito bem.
Ao descer do Corsa, os olhares para o homem de 1,86 de altura, cabelos pretos e volumosos, óculos escuros, barba por fazer e roupa social composta por uma calça preta, camisa branca, cinto cinza-escuro e sapato elegante e brilhante, o típico galã de novela que segura uma pasta de couro preta. Se soubessem que toda aquela beleza guardava uma dor tão profunda, não ficariam de queixo caído.
— Bom dia! — diz educadamente após chegar no local marcado e se dirigir a recepcionista atenta ao seu computador — sou o Dr. Luís Henrique Guimarães — se apresenta.
— Bom dia! — Ela a jovem responde calorosamente. — O senhor é o Dr. que irá trabalhar aqui é?
— A pretensão é que sim.
A jovem se levanta sorrindo, sem antes dar uma boa olhada para o médico que estava acostumado com tais olhares, por isso evitava ao máximo durante anos se arrumar, cortar os cabelos e fazer a barba.
— Meu nome é Lucimara — ela se apresenta e estende a mão para ele, o qual corresponde. — Quer uma água, café, bolacha, pão?
— Não, obrigado! Tomei café da manhã no Entroncamento.
— E está gostando daqui? — pergunta puxando conversa e o levando para uma saleta.
— É uma cidade encantadora — é a única coisa que ele consegue responder. Para Luís as conversas com mulheres se dificultaram, até com suas pacientes era uma luta interna. Ele não se interessava por nenhuma, aliás, ele não queria outro relacionamento, seja com homens ou mulheres. Seu interesse sempre foi por uma só e sem ela ele era incompleto.
— O senhor chegou cedo demais — ela olha para o aparelho celular — mas vamos fazer assim, espere na sala de reunião. Logo o Dr. Pedroso vem vê-lo — diz sorridente. — Com licença! — Se vira para sair, parando em seguida — perdoe se fui invasiva. É que aqui somos todos hospitaleiros, e deve ter se assustando.
— Também venho de uma cidade do interior, conheço essa hospitalidade — ele responde agora com a face mais relaxada e um leve sorriso de canto. — Agradeço pela recepção. — Ela sorri e sai da sala, Luís puxa uma cadeira e se ajeita. Ali, absorto em pensamentos, ele fica até que percebe alguém entrando no cômodo e se levanta para cumprimentá-lo.
— Dr. Luís Henrique — o homem de 58 anos, calvo na frente e grisalho atrás, sorridente, diz se aproximando e pegando o médico desprevenido em um abraço com três tapinhas nas costas — sou o Dr. Pedroso, ou Marcelo, como preferir.
— Prazer — responde sem jeito. Os Botucatuenses são hospitaleiros, mas aquilo foi completamente diferente do que ele imaginou. — Vim.
— Sim. Sente-se e se sinta à vontade tá. O prefeito notificou da sua chegada, e gostaria de ter te recebido antes, é que semana passada tive um problema particular para resolver e precisei tirar uns dias de folga.
— Sem problema. Aproveitei alguns dias com meus avós e tios que não via há um tempo.
— A família é um bem precioso — diz o médico mais velho — fez o certo em passar um tempo com eles. Agora vamos ao cerne dessa reunião, estamos com uma carência na saúde e devido às eleições, tudo está ainda mais agitado. Tem ciência que é um contrato de 3 meses?
— Sim, é por isso que vim. Se fosse para mais tempo, não aceitaria.
— Bem, o último médico resolveu pedir quebra de contrato porque não achou justo o valor do salário pela quantidade de trabalho já que atuamos com o atendimento emergencial também — estende a papelada para o mais jovem — aí está descrito o que fará, sua jornada de trabalho e o restante. Para resumir, irá atender crianças a partir dos 10 anos, jovens, adultos, gestantes, a parte da saúde mental e qualquer caso que precise ser avaliado antes de enviar para um especialista. Tudo passará por você antes do encaminhamento, e os tratamentos e acompanhamentos de pré-natal são de sua responsabilidade. Como pode ocorrer de ter que atender os casos de emergência. Temos médicos específicos para esses atendimentos, mas pode acontecer do posto ficar sem o clínico e o paciente passar a ser seu. Alguma objeção?
— Não — Luís responde segurando a folha.
— Vou dar um tempo para ler o contrato, enquanto isso irei tomar um café, quer um?
— Não precisa se incomodar.
— Incômodo nada, será um prazer, desde que aceite fazer parte da nossa equipe pelos próximos meses.
Luís Henrique sorri pela forma simples do médico que com as mãos dentro do bolso da calça caqui, sai da sala assobiando uma música orquestral. Ele acompanha a camisa creme listrada de preto sumir de sua vista. Ao olhar para o contrato, o devora em poucos minutos, o aceitaria mesmo que o salário fosse ainda menor, tudo para não ser mandado para o exterior ou internado em uma clínica psiquiátrica. Re-lê tudo antes de assinar e confirmar que fará parte desse lugar até dezembro.
Trinta minutos depois, o Dr. Pedroso volta para a sala segurando dois copos de café.
— Perdão por deixá-lo sozinho por tanto tempo, tive que atender uma ligação do pronto-socorro. Esses dias estão uma loucura.
— Entendo — fala pegando o copo de café — quando começo a trabalhar?
— Então vai aceitar? — O médico pergunta surpreso — sabe que o tempo de trabalho depende muito do resultado da eleição.
— Três meses é o suficiente. Vim para cá com a intenção de resolver problemas internos, não me preocupo com valor de salário, carga horária e nem pela quantidade de pacientes. Trabalhava em um pronto-socorro, fazia hora extra, trabalhos voluntários e vivia dentro de hospitais visitando pacientes enfermos. Para mim isso aqui — levanta a papelada — está dentro da minha rotina, a única diferença é que não terá emergência e nem sangue.
— Conflitos internos são calamitosos. Temos um bom psicólogo, se precisar é só me avisar. E sobre o trabalho, comece amanhã. Hoje quero que conheça a equipe do posto de saúde. Vamos — chama-o.
— Sim, claro.
Os dois vão no carro do Dr. Pedroso que dirige cumprimentando as pessoas que passam na rua e mostrando as padarias e mercados do centro, também fala sobre uma pousada que tem por ali e o convida para morar no Paraíso das Aves em vez de dirigir todos os dias para a Suíça baiana, algo que Luís considera válido. Ele gosta da sensação de dirigir, de estar livre atrás de um volante, o único problema será realmente a canseira de 1h30m de viagem entre as cidades.
— Essa é a praça nova, foi construída recentemente e a criançada adora vir para brincar — Pedroso fala apontando para o lugar que Luís já conhecia.
— Achei esse lugar tranquilo, e a primeira vez que vim, encontrei uma pessoa lendo ali — aponta para o banco abaixo do arco.
— Ah, é a filha dos Ferraz. Ela vem trazer os irmãos para brincar e fica sentada lendo o livro que a Marcely Rodrigues escreveu. Esqueci de te contar, temos uma escritora na cidade, os livros dela foram até para a Bienal de São Paulo esse ano. Ela lançou semana passada, e essa menina devorou o livro em 3 dias e agora está relendo.
— A conhece muito bem.
— É claro, como estamos sem o clínico específico no posto, eu também faço meu plantão por lá e ela é minha paciente, coitadinha... Bem, vai conhecê-la em breve, assim como todos que estão na lista que está dentro da minha pasta. Que loucura, esqueci de te entregar antes, você terá bastante pacientes e a prioridade agora são as gestantes.
— Não se preocupe — na verdade, Luís queria dizer, olha para a frente enquanto dirige antes que bata em um poste.
Ao chegar no posto do bairro novo a reação não é diferente, os olhares continuam. Dr. Pedroso o apresenta para cada funcionário ali, mostrando as salas e entregando a pasta com o nome de todos os pacientes da unidade de saúde.
— Wilma — chama o médico — quais são os prontuários das gestantes?
— Vou pegá-los — a enfermeira responde.
— Temos ao total 28 gestantes nesta unidade, algumas nas últimas semanas. A maternidade daqui é para as emergências, partos e exames como ultrassom e toque, o restante será como você — explica o mais velho enquanto entra em uma sala branca com uma mesa longa e várias cadeiras.
— Tudo bem. A minha intenção é fazer uma pós de pediatria, ginecologia não sai tão fora da área que desejo atuar futuramente — Luís o segue naturalmente, para ele estar ali era como estar em um posto de sua cidade.
— Está aqui Dr. — a enfermeira traz logo em seguida um carrinho com os prontuários dentro.
— Obrigado! — Ela sai da sala e deixa os dois. — Esses prontuários nas últimas duas semanas estão separados para facilitar o atendimento dos outros médicos. Amanhã você entra às 8h e conforme for dando um tempinho, analise os prontuários, alguns precisam de cuidado específico.
— Algum nome em específico? — Ele pergunta sem entender.
— Vai perceber quando começar a atender os pacientes, digo não como médico, falo como pessoa, alguns têm questões internas que nem a terapia está ajudando.
— Entendi.
Após toda a conversa, explicações e apresentações, Luís estava livre pelo restante da tarde e resolveu dirigir um pouco mais, espairecer a mente.
A cidade tinha lugares para se visitar e uma pousada num local bem caseiro, no estilo que ele adorou. Conversando com os donos, combinou certinho seu tempo de permanência e reservou seu quarto pelos seguintes meses. Mais um passo ele deu para sua melhora interna. A hospitalidade de um povo é um ato de amor ao próximo.
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Alguém terá muito turismo para fazer 😜
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