10. Odes ao poeta grego, parte 05.
10. Odes ao poeta grego, parte 05.
Martina não havia estudado aquilo em seus anos escolares, mas sabia e se lembrava muito bem de tudo. A Ditadura Militar foi um período sombrio e silenciador na história do Brasil e, como compositor e cantor de uma banda de rock, Mateo de Ophiuchus também ficou exposto aos males daquele regime. Ele tentou ser mais esperto, é verdade, e enganar a Divisão de Censura de Diversões Públicas várias vezes, mas nem sempre fora bem-sucedido. A letra de Gangue dos Universitários, por exemplo, passou por algumas alterações antes de ser enviada para a censura. O trecho "Nossa gangue dos universitários / Cobra direitos pro prefeito de Mar Alto/ Mas ele tá ocupado com sua amante/ E desvia nosso dinheiro/ Pra jantar nos restaurantes" virou "Nossa gangue dos universitários/ Canta para o prefeito de Mar Alto/ Mas ele tá ocupado com seus infantes/ E levam os guris/ Pra jantar nos restaurantes". Claro que esse trecho ridículo não saiu na versão cantada de "Os Poetas Gregos", primeiro disco da Estereótipo. E isso foi um problema, óbvio. Após a descoberta da pegadinha, tanto "Gangue dos Universitários" quanto "Garota de Programa" e "Vida Errada" (consideradas imorais) foram proibidas de serem tocadas nas rádios. Foi um sucesso estrondoso: 150 mil cópias foram vendidas. Mas nada, simplesmente nada se compara ao perrengue vivido durante a comercialização do segundo disco.
Sim, Martina sabia que fora maluquice sua, quer dizer, de Mateo escrever aquelas músicas e prepará-las para "Caos", disco de 1982. Sim, aquelas letras jamais passariam pela Divisão de Censura e precisavam ser bruscamente modificadas para tal. E assim o foram. A música título, Caos, Evolução, Dança do Tempo e Liberdade passaram por um processo de infantilização máximo. Os versos "Como um sonhador pode viver esse caos?", por exemplo, se transformaram em "Todo sonhador lutará contra o caos". Em "Liberdade" a letra ficou mais boba ainda. As estrofes iniciais "Estou preso em casa/Tentando sobreviver/À ditadura, à praga/ E ao meu amor por você/ E com a mente aberta/Em horas incertas/Peço o fim da guerra/Pra todo mundo querer/ Liberdade, ainda que tardia!" viraram "Estou preso em casa/Tentando sobreviver/À temperatura alta/ E ao meu amor por você/ E com a mente inquieta/ Em horas incertas/ Peço que venham as férias/ Pra todo mundo querer/ Liberdade, ainda que tardia!". Não, Martina não lembraria das demais modificações. Era vergonhoso demais.
Bem, o trio chegou a achar que não, a pegadinha maior e mais bem-feita não seria descoberta pela censura. Ledo engano. Mateo só veio perceber a enrascada que havia se metido quando viu os militares entrando no show da Estereótipo em Santo Ângelo, no dia 02 de fevereiro de 1983. Com armas de brinquedo na mão, os policiais fizeram o show ser cancelado e levaram o trio indiscretamente para a delegacia. A sorte dos "Gênios" era que, mesmo contra a vontade, Marcilla viera para Santo Ângelo. Não, ela não queria reencontrar os pais (que eram militares e apoiadores do regime), mas fora obrigada pela amizade (e o amor, vide Kayros) que sentia por aqueles três. Eles ainda eram os pais de Maria Márcia e a amavam, afinal, conseguiram a soltura da banda.
As lembranças de Martina/Mateo obscureceram. Ela sabia que o segundo disco havia vendido bem mais que o primeiro (400 mil cópias) e que o terceiro não tinha ido lá tão bem (80 mil cópias). Sabia que seu pai (na verdade, o pai de Mateo) também havia interferido contra a "punição" do filho: apenas as músicas insurgentes foram proibidas de serem tocadas em rádios e em shows. Com o fim oficial do regime e eleição indireta de Tancredo Neves, em 15 de janeiro de 1985, tais decisões foram revogadas. Por fim, a memória de Martina retornou ao ano de 1986. O cantor estava no carro de Kayros, indo novamente para a cidade de Santo Ângelo.
– Quem é essa? – Indagou Maria Márcia. Mateo estava olhando uma foto de Clarisse.
– A garota que atendeu seu telefonema.
– Quer me falar sobre ela?
– Não, agora não. – Respondeu. – Quer me falar sobre os seus pais?
– Eu mandei uma carta para eles dois meses antes do meu casamento. Aproveitei também para dizer que seriam avós. Não responderam. A única coisa que os fizeram se mover foi o escândalo que você armou, uns dez dias depois do casamento. Disseram que me amavam e me pediram perdão. Eles finalmente tinham entendido que o regime militar fora um mal para a sociedade brasileira.
– Foi por isso que eles morreram, não foi? Por não concordarem mais com o regime...
– Sim, foi numa discussão que papai teve no bar. Eles prometeram vingança e o seguiram até em casa... Não precisavam ter atirado nela também.
– Eu sinto muito.
E Matheus seguiu sem dizer coisa alguma até chegar ao IML de Santo Ângelo.
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Já eram 12h30 do dia 25 de junho na Ilha da Madeira e Martina Álvares não conseguia acordar. Sim, havia sido insensatez de Rosa permitir que a jovem trocasse seus remédios por raízes de valeriana. Sim, Martina abandonaria seus remédios com ou sem raízes de valeriana. Porém, naquele momento, não importava de quem era a culpa por tamanha irresponsabilidade. Martina estava adormecida e nenhum dos discos de sua banda favorita (em volume máximo) a fizera acordar. Pior... Eles pareciam incentivar seu sono. Não, a moça não estava tendo ataque algum. Seu coração funcionava normalmente (batia um pouco mais rápido, é verdade...).
"O que está passando-se na cabeça dessa menina?", se indagou Rosa. Não, aquilo não era uma tentativa de suicídio... Nesse momento, Rosa lembrou-se de um diário com cadeado que dera para Martina e o procurou imediatamente no armário da menina. Quase nada estava escrito lá. "Um dia eu escrevo o que meu coração guarda a sete chaves". Já não era desconfiança e sim confirmação. Martina estava escondendo algo muito sério da sua família.
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Matheus tinha viajado cerca de 25 horas quase sem parar. Recapitulando: o cantor tinha saído da casa de Clarisse logo após a ligação de Márcia. De lá partira para São Carlos e se juntara à comitiva formada pelos Gênios, Márcia e Cíntia. Seus pertences ficaram na casa de Kayros e sua roupa cheirava muito mal. Matheus estava extremamente cansado e não queria falar com ninguém... ninguém, exceto Pablito. Era 07 de outubro de 1986.
– Mateo, eu... a gente tem algo para te propor. – Falou o guitarrista da Estereótipo. Estavam ali só Cíntia, Pablito e Mateo, já que Kayros estava tirando os corpos dos sogros do IML e Marcilla preferiu ficar no carro, devido a um mal-estar. – Precisamos resolver nossas desavenças e encontrar um novo empresário. A gente se ama, isso é nítido, apesar das brigas.
– Olha, eu sei que fui babaca. Eu sou babaca. Me desculpem. Eu não devia arruinar a carreira de ninguém. – Respondeu Mateo.
– Ninguém tá com a carreira arruinada. A Cíntia pensou num bom nome. É uma pessoa que nos suporta e conhece relativamente bem o mercado da música. Além disso, ele está precisando de um sentido na vida.
– O Bento? – Indagou. – Como eu sou egoísta! Como eu pude não me importar com ele nesse tempo que passei em São Sebastião?
– Gente, vocês estão ouvindo o mesmo que eu? Um grito, um choro... – Interferiu Cíntia.
– As pessoas choram e gritam quando veem seus familiares mortos. – Respondeu Mateo.
– A Márcia tá de quantos meses? Nove? – Perguntou Pablito.
– Ah, não! – Percebeu Mateo. – O bebê...
Sim, caro leitores dessa jornada. O mais sensato seria pedir para que Cíntia fosse auxiliar a parturiente e esperar o novo pai para dar as boas-novas. Sim, mas não foi isso o que Pablito e Mateo fizeram. Ambos correram para o carro e conheceram o recém-nascido antes do pai. Apesar disso, Kayros não ficou com raiva de seus colegas de banda. Tudo correu bem nos dias que se seguiram e ficaria assim por um bom tempo se não fosse pela impulsividade de Mateo.
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Cada show da Estereótipo de Gênio era uma odisseia à parte. Kayros dizia que era desnecessário contratar músicos para a transição de roupas e que Mateo podia muito fazer o show inteiro vestido de mulher. Ou com a túnica grega. Ou apenas com sua roupa preta. Mateo retrucava e respondia que aquilo fazia parte do espetáculo. Era 17 de outubro de 1986 e aquele era o reinício da banda liderada por Mateo de Ophiuchus.
Na primeira parte, Mateo era um poeta grego novamente. A bandana rosa magenta também estava lá. De quebra, lápis preto nas pálpebras e pó branco na cara. Cantou "Cada Fase", a antes censurada "Liberdade" e a épica "A Penúltima Odisseia". Depois disso, os músicos de transição entraram. Trocaram instrumentalmente "Kai Ti Den Kano" e o "Hino da Grécia", assim como Mateo ordenou. O intervalo era proposital para que o cantor pudesse se vestir de mulher. Ele já estava com uma blusa cheia de glitter embaixo da túnica e vestiu rapidamente uma saia envelope igualmente brilhante. Pegou uma peruca loira e recolocou a bandana rosa. Passou um batom laranja nos lábios. Estava pronto para a segunda parte. Em seguida, cantou "Gangue dos Universitários", "Primeiro, mulher" e "Vida Errada". Quando começou a cantar "Menina da Sacada", a última daquela parte, reconheceu Rico na plateia. Na segunda transição de roupas pediu para que os seguranças levassem o ex-namorado para seu camarim após o show. A música instrumental escolhida (pela primeira vez) para o ato foi "Stairway To Heaven" e Mateo ficou feliz ao saber que os músicos de apoio a dominavam. Era impossível não pensar em Clarisse e em suas meias respostas nos telefonemas. O novo amor de Mateo de Ophiuchus estava chateado com alguma coisa e o cantor precisaria resolver tudo em São Carlos antes de voltar para São Sebastião. Ele precisava revê-la.
Para o ato final, vestiu-se totalmente de preto (exceto pela bandana). Sua aparência, logicamente, deveria combinar com as músicas do último disco, "Depressões Abertas". Martina, de posse daquelas lembranças, não pôde deixar de notar que aquela era a roupa que vestia no momento de sua morte. Seguiu-se, enfim, a última sequência de músicas. Foram cantadas "Obra de Arte", "A Solidão dos Imortais", "Dança do Tempo", "Caos" e "Vida". Vida... Até que ponto foi real o sentimento de Matheus ao dizer "Eu te amo tanto que nem sei dizer o que seria de mim se eu te perdesse agora"? Tudo o que ele queria, no seu último dia, era se livrar das maldições acumuladas desde o dia que decidira se despedir de Rico.
– Desde quando você age como um ditador? – Perguntou Rico ao ver Matheus chegando no camarim. – Seus seguranças nada foram muito amigáveis comigo.
– Eu preciso falar com você, é sério.
– Ótimo. É bom que você fique sabendo que eu vou ter que vender o Delírios Culinários. Literalmente, eu fali, agora você...Parece que as pessoas curtem muito mais um cantor gay do que um cozinheiro gay.
– Bissexual, Rico. Eu sou bissexual. – Corrigiu Matheus. – E era sobre isso que eu precisava falar com você. Eu quero me despedir de nós dois. Eu vou me casar com uma menina.
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