04. O chá ayahuasca.

Martina precisava parar de se comparar com Mateo. A compositora anônima desejava com o fundo da sua alma voltar a fazer músicas que só falassem do amor platônico. Se bem que o fundo da alma de Martina era Mateo e isso não a permitiria fazer só músicas românticas... Bem, pelo menos o quíron de Martina em Libra (aliás, ela tinha uma música falando sobre aquilo, pois era simplesmente encantada por astrologia desde que era um homem gay) fora explicado. O poeta grego era viciado em sexo e bastante irresponsável em seus relacionamentos. Até onde sua parte fã sabia, não tinha-se notícia de nenhum namoro duradouro do líder da Estereótipo. Até mesmo a mãe de sua filha era figura desconhecida pelos fãs... Em suma, o amor impossível era a ferida que faria Martina crescer naquela encarnação. "Respira, Martina, respira", pensou naquele instante e pegou "Última Vida". A música tinha sido feita em 21 de março, dia em que a jovem sonhara com a sua versão pop star. "De qualquer paixão, hoje eu abro mão, preciso nessa contramão, me encontrar primeiro...". Mas como? Como se encontrar?

Martina parou mais uma vez. Outra música sobre sua reencarnação estava vindo a sua mente. As palavras de Mateo ecoavam de novo na sua cabeça. Era 04 de junho de 2016. "Não alimente o seu orgulho, e não se sinta mal se sobretudo, fez algo por amor...". Ela precisava, de alguma forma, recuperar os 32% que lhe faltava.

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A única neta de Rosa Álvares havia mudado bastante nos últimos seis meses. De início, Rosa achara que o desligamento do curso de mestrado era o grande responsável pela mudança de comportamento da jovem. Mas não. Existia algo a mais. A carinha angelical de Martina e seus olhos irrequietos lhe confessavam praticamente tudo. "Vovó, a senhora também acha que os autistas dessa vida foram os suicidas de outras? A senhora acha que ser autista é, de fato, uma maldição?", perguntara no começo daquele ano. "Nem anjo, nem pecadora, querida. Você é apenas uma alma que escolheu este desafio como forma de evolução", respondera Rosa. Assim, naquele 17 de junho de 2015, a moça inventara de conseguir uma raiz de valeriana. Motivo: ela passaria a próxima semana sem tomar remédio algum.

– Diga-me, querida Martina, tu pegaste gosto pela cerveja? Daqui a pouco teremos contigo os mesmos problemas que tivemos com teu pai. – Lembrou Rosa.

– Não, eu juro que evitarei beber, vovó. É só uma precaução. Algo me diz que devo estar livre de remédios no dia de São João Batista.

– Vou arranjar-te umas raízes de valeriana, mas, por Deus, mantenha o juízo! – Pediu a dedicada avó.

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A amante de Astrologia e exilada do Céu (só aceitaram ele/ela por 311 dias lá) sabia que, apesar de Câncer ser o signo reinante daquele período, era Gêmeos quem estava de mãos dadas com o Sol naquele instante. Sabia também que fora Ophiuchus a constelação que atravessava o Sol no dia de seu desastre estudantil. Sabia de tantas coisas aparentemente inúteis e nenhuma delas tinha o poder de abrandar seu coração. Poderia Sapato Amarelo, pelo menos, lhe aparecer e dizer que ela não era uma invenção da cabeça de Martina? Bem, de alguma forma as preces da jovem foram atendidas e ali, em uma típica barraca junina, estava a bruxa de Lousã com o letreiro "Chá de Ayahuasca" em sua barraca. Aquele chá lhe mostraria se estava ficando louca ou não.

– Você, você... eu me lembro de você. Você jogou uma profecia sobre mim quando eu tinha 14 anos. Uma profecia sobre uma vida anterior...

– Ah... acho que me recordo desse dia. Estava com uma senhora com um terço pink nas mãos. Vi uma enorme energia vinda de ti. Aquilo não poderia ser coisa de uma vida tão curta. Você já sabe sua origem galáctica?

– Não, eu quero saber sobre a última vida. Na verdade eu já sei, mas só queria poder lembrar de um pouco, um pouquinho que garantisse o resto de sanidade mental em meu cérebro.

– Então, mocinha, meu nome é Matilde e eu fiz uns estudos na região amazônica brasileira. Morei lá por uns doze anos. O que tenho a te oferecer poderá te abrir os olhos, mas também é extremamente perigoso.

– Estou com os olhos semicerrados. Preciso abri-los de vez.

A promessa feita para a avó fora quebrada. A ayahuasca não era cerveja, mas, como ela soube nos meses seguintes, lhe causaria uma ressaca muito maior. Eram 20h02 do dia 24 de junho de 2016 quando Martina engolira aquele chá. A menina pagara uma nota de 5 € e chamou um carro por aplicativo. Às 21h14, a loira já havia voltado para sua casa (sua mãe e sua avó já estavam cientes disso). A cama tinha cheiro de crisântemos. Chegara a hora de lembrar de sua morte.