Capítulo 2
Sayid
Agora, era a claridade que quase me deixava cego. Mesmo usando as costas da mão como proteção, sair da penumbra da cela para o dia claro do lado de fora me fez piscar várias vezes, até conseguir enxergar alguma coisa. Mesmo assim, aquela sensação era uma velha conhecida: areia. De novo. Áspera. Nojenta. Quente. Entrando aos montes por baixo das tiras gastas das sandálias mal feitas, riscando, pinicando. Sensações que ficaram em segundo plano assim que vi onde eu estava: em uma arena.
Ela era impressionante, formada no meio das dunas de antes, algo que eu jamais poderia imaginar. Em formato ovalado, ficava no centro de duas colinas, uma das quais abrigava a cela em que eu havia estado. Nas elevações rochosas, palanques haviam sido erguidos, interligados por passarelas que contornavam uma das extremidades. Homens ricos em seus mantos adornados se amontoavam em cada uma das margens da arena, sobre os palanques, bebendo e rindo, enquanto moças quase despidas circulavam para lhes servir. Em algum lugar, havia o som de instrumentos tocando uma música desconhecida.
Um empurrão me fez avançar alguns metros, sob os gritos impacientes do guarda, gesticulando para que eu caminhasse. Mas para onde? No centro da arena, uma madeira com uma bandeirola amarela assinalava o local ao qual eu deveria ir. Parei ali, sozinho, sem entender nada, mas foi por pouco tempo. Logo, o portão de madeira pelo qual eu havia entrado se abriu uma vez mais e de lá alguém saiu.
Trajando uma túnica sem mangas, encardida e suja — assim como a do velho da cela — e um turbante, a figura caminhou com passos curtos e firmes na areia fofa, até a marca com a bandeirola vermelha, poucos metros à minha frente. Eu tentava dar uma boa olhada no meu oponente, mas ele se mantinha de costas, saudando de forma contida a multidão, que repetia em coro seu nome: Sombra! Sombra! Sombra!
Aquele apelido aguçou ainda mais minha curiosidade, fazendo eu me concentrar ao máximo na análise de meu adversário, a ponto de estreitar os olhos tentando antever o que esperar. Se era tão mortal quanto o velho havia dito, queria conhecer a fisionomia daquele que tentaria tirar minha vida.
Por fim, quando Sombra cessou os cumprimentos à torcida enlouquecida e virou-se em minha direção, quase não acreditei. Apesar da túnica folgada, ele não passava de um rapazote magrelo, como denunciavam seus braços finos. O rosto, igualmente fino e imberbe, estava coberto de sujeira e sangue seco, fazendo com que os olhos grandes se destacassem. Não consegui me conter diante daquela visão grotesca do adversário fatal que me aguardava e comecei a rir, ou melhor, a gargalhar. Aqueles homens abastados realmente acreditavam que um meninote, recém-saído da infância, poderia ganhar aquele torneio? Estariam loucos ou bêbados o suficiente para apostar seu dinheiro nele? Só podia ser uma brincadeira de mau gosto. Lágrimas escorriam de meus olhos enquanto eu apoiava as mãos sobre os joelhos na tentativa de retomar o ar.
Quando finalmente consegui me controlar e voltar à posição inicial, notei o silêncio e os olhares atônitos em minha direção. Até mesmo o pequeno Sombra parecia não entender minha reação e me encarava com toda a atenção. Dei de ombros. Não, eu não teria coragem de lutar contra um rapazote como ele.
Perdido em meu divertimento, não percebi quando Abdul deu o sinal para que a luta começasse nem Sombra se aproximando, não até sentir o soco surpreendentemente forte que jogou minha cabeça para trás. De onde saíra aquele golpe que me pegara desprevenido, eu não sabia. Levei a mão ao queixo dolorido, sentindo o gosto salgado do sangue em minha boca, e o encarei. Os grandes olhos me observaram com intensidade antes de ele desferir outro golpe, dessa vez na altura das costelas, o que me fez ajoelhar, sem ar.
Apoiado em um dos joelhos, eu me preparava para investir contra o rapaz, porém, como se fosse um fantasma, no instante seguinte ele estava atrás de mim e me empurrava com o pé, fazendo-me cair de cara na areia. A multidão ovacionou, e senti a areia entrar na boca e no nariz. Areia! Áspera, irritante. Virei na intenção de golpeá-lo com o pé e jogá-lo ao solo, mas Sombra foi mais rápido e se deslocou até chegar ao meu lado, chutando-me nas costelas repetidas vezes, até que fiquei sem ar. Tentei agarrar o pé que me golpeava e mais uma vez falhei: com um salto, ele se posicionou sobre mim, imobilizando meus braços e desferindo socos em sequência. Minha cabeça rolou de um lado para o outro, a inconsciência se aproximando cada vez mais. Um grito, contudo, fez meu adversário parar e se afastar.
Com mais dificuldade do que eu gostaria de admitir, rolei para o lado e me levantei, observando-o se afastar até a outra bandeirola. Lá, ele vestiu um escudo de madeira que protegia o antebraço, para então empunhar um bastão longo de aproximadamente noventa centímetros e ponta em formato de Y. Olhei para a minha marca: as mesmas armas me aguardavam, embora eu não tivesse notado o momento em que haviam sido colocadas ali.
Com as armas em punho, dirigi-me ao centro da arena, onde Sombra já esperava. Cruzamos nossos bastões, aguardando a ordem para começar a luta. Nós nos encaramos por alguns momentos enquanto a ordem não era alcançada. Notei que o rapazote tinha as mãos envolvidas por uma espécie de luva de couro, porém com os dedos descobertos. Achei aquilo incomum, tanto quanto todo o mais que o envolvia, e tentei entender como alguém aparentemente frágil podia ser tão rápido. Nem tive tempo de reagir quando o sinal foi dado; mais uma vez, levei uma bela surra. Não importava a estratégia adotada, Sombra acabava levando a melhor.
Na segunda vez que nos enfrentamos, no dia seguinte, tentei enxergar um padrão nos movimentos de meu adversário, e uma vez mais fracassei terrivelmente. Ele, de uma forma inacreditável, parecia prever todos os meus movimentos. E, de novo humilhado, voltei para minha cela com hematomas e cortes por todo o corpo. Custava a acreditar que um garoto magrelo era capaz de me dar uma surra daquelas... duas vezes.
— Sombra não teve pena de você, amigo.
Calid, sentado ao meu lado, observava um corte no supercílio, estendendo-me um trapo para estancar o sangramento.
Não respondi, tamanho o meu constrangimento. Eu, um homem feito, sendo humilhado por um garoto! Nem nos meus piores dias, num passado que se transformara no meu presente, havia apanhado daquela forma. O velho, encostado no outro canto da cela, apenas riu, o que me deixou mais enraivecido. Em minha mente, repassei diversas vezes nossas lutas, e nada...
Na terceira vez, enquanto Sombra investia com o bastão de forma ágil, algo em seu antebraço chamou minha atenção. O movimento havia sido muito rápido, de modo que não pude ver os detalhes que queria, porém, em um golpe impensado, consegui imobilizar o rapaz por alguns segundos. Até fiquei surpreso com o primeiro movimento vitorioso após três derrotas, mas afastei aquele pensamento e me concentrei em observar o antebraço protegido pelo pequeno escudo de madeira. Ali, abaixo de uma das tiras que o prendiam, notei uma pequena tatuagem feita a ferro: um semicírculo, a metade de uma ferradura e um arco vazio, sem a flecha. Não pude evitar a surpresa; meus olhos automaticamente pousaram nos de Sombra, que parecia perdido. Mas aquilo durou apenas uma fração de segundo antes de meu oponente me acertar pesadamente com seu bastão, fazendo-me perder a consciência.
Quando acordei, estava de volta à cela. A cabeça latejava sem piedade, como se tivesse sido partida em duas. Fiquei deitado por um tempo, os olhos fechados, relembrando a marca que tanto chamara minha atenção. Havia muitos anos eu não via nada parecido. Jamais passaria pela minha cabeça encontrar alguém com aquela marca, principalmente em um lugar tão distante e naquelas condições. Mas o pior era que algo realmente inexplicável ainda me encucava: apenas mulheres levavam aquela tatuagem. Como poderia um rapazote ter sido marcado? A ideia seguinte me pareceu bastante absurda, beirando o impossível, mas só havia uma maneira de saber...
Tive de ganhar outras lutas, inclusive contra o próprio Calid, golpeando-o violentamente. Quando cheguei à cela e o encontrei combalido em um canto, cuidei de suas feridas como uma forma de pedir desculpas. Mas não havia nada a desculpar; afinal, sabíamos que estávamos ali para entreter enquanto conseguíssemos ficar em pé.
— Esta é uma boa hora para seus filhos aparecerem, velho — provocou Calid, cuspindo sangue enquanto se recostava nas barras da grade.
— Aguarde e verá.
Foi tudo o que o outro disse, ajudando o núbio a se recostar. Obviamente, não acreditávamos naquilo.
Areia. Novamente ela, dançando à minha frente conforme aguardava o sinal de Abdul para que iniciássemos a luta com os bastões. Analisei Sombra com bastante atenção, tentando ver por baixo da túnica folgada. O vento forte fazia suas roupas dançarem sobre o corpo esguio, mas não o suficiente para que eu encontrasse a resposta que buscava. Embora seu punho estivesse protegido pela tabuleta de madeira, pude visualizar mentalmente a imagem da tatuagem sob as tiras. Eu sabia que perderia, até porque o sol contra meu rosto dava vantagem ao rapazote. Meu objetivo naquela luta, porém, era outro.
Quando o sinal foi dado, Sombra investiu contra mim, nossos bastões chocando-se violentamente. Cada vez que eu mudava a estratégia de ataque, ele desviava com enorme velocidade. Eu precisava chegar perto o bastante e com as mãos livres, e só via uma forma de conseguir tal façanha. Deixei que ele me acertasse e me jogasse no chão. Meu bastão voou para longe ao mesmo tempo em que Sombra me prensou ao solo com a ponta forquilhada de sua arma sobre meu pescoço. Não. Eu precisava de uma luta corpo a corpo. Tentei me libertar, mas ele apertava cada vez mais a forquilha, afundando-me na areia fofa. Areia... areia! Era isso! Finquei os dedos no solo e joguei um punhado em seus olhos. O rapaz chegou a se afastar, antecipando meu golpe, mas aproveitei seu desequilíbrio e me libertei, lançando seu bastão para longe. Como esperado, ajoelhou-se sobre mim, pronto para me dar um soco; em vez de impedir o golpe, posicionei as duas mãos espalmadas sobre o peito do meu oponente.
Por um instante, foi como se tudo paralisasse, exceto pela areia voando ao nosso redor, impulsionada pelo vento. Sombra parecia surpreso com meu movimento, o punho congelado no ar, e os olhos arregalados em minha direção. Eu também tentava pensar rápido, mas parecia que meu cérebro simplesmente congelara. Quando aquela ideia cruzara minha mente, havia a considerado estapafúrdia, absolutamente contra todas as probabilidades, e, ainda assim, não via outra solução a não ser testá-la. E, então, nem sequer tive tempo de reagir à série de golpes de Sombra, que fizeram meu dia virar noite.
A descrição dessa luta faz referência à tahtib, uma espécie de esgrima no Egito antigo (N. A.).
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