Caminhando sobre os mortos
- Não vá por aí - pediu o rapaz. - Pise onde estou pisando. Essa área é instável há muito tempo. - Puxou a moça de cabelos claros mais para próximo de si. - Não toque nas paredes para não vir tudo abaixo.
O jovem casal se aventurava pelos subterrâneos de um antigo castelo medieval prussiano. Fréderic, apesar da origem alemã, era membro da Guarda dos Spach, e Mia era filha dessa Casa, uma das mais antigas da Grã-Bretanha. Fugiram juntos para poder viver seu amor em liberdade, longe de proibições e restrições impostas pelas diferenças sociais de seu mundo.
Fréderic já havia visitado aquele velho castelo há muitos anos. Na época, um dos seus companheiros de luta, que pertencia à antiga família proprietária daquele lugar, lhe confidenciou uma passagem secreta nos subterrâneos e uma câmara interna onde, na ocasião, esconderam algumas armas para necessidades futuras e lacraram o local adequadamente.
Fréderic e sua amada planejaram a fuga com cuidado, mas algumas coisas saíram erradas e ele, então, buscou por novas alternativas, decidindo fazer uso dessas armas escondidas há tanto tempo. O velho castelo era desabitado e distante de tudo, o único inconveniente seria despistar os seguranças, o que fizeram sem nenhum problema.
- Aqui. Chegamos, é aqui. Graças a Deus não foi aberto!
- Acha que elas ainda estão aí?
- Sim! Não há sinais de que mexeram por aqui... E toda essa ala está interditada por segurança. Ninguém abriu essa passagem. - Logo após pronunciar estas palavras Fréderic nota a presença de alguns símbolos, letras e números marcados em uma das vigas que escorava e lacrava a passagem e que não estavam lá anteriormente. - Andaram mexendo aqui, mas pelo menos não foi aberta. Afaste-se um pouco - pediu, com a mão espalmada gentilmente a afastando para trás.
Ele ergueu os olhos castanhos verificando o estado do teto em arco acima de suas cabeças e em seguida, passou a desferir golpes com o pé contra a falsa parede de madeira e barro, que se desfez aos poucos, abrindo espaço a uma pequena câmara e um armário de madeira muito antigo. Fréderic se inclinou sobre o espaço aberto e começou a mexer no conteúdo do armário. Primeiro retirou uma arma de fogo e um saco de couro com munição, depois, retirando os panos que a envolviam, entregou-a a sua amada.
- Isso ainda funciona? - perguntou ela jogando os longos cabelos claros para as costas e pegando o velho objeto em suas mãos.
- Não sei... Mas isso tenho certeza de que sim. - Fréderic retira, através da abertura, uma enorme espada e, assim que ela se encontra totalmente livre em suas mãos, a retira da bainha. - Ilumine aqui - pede a observando sob a pouca luz que Mia aproxima. - Ela está ótima! - A lâmina brilha. - Talvez um pouco sem fio, mas ótima!
- E se formos encontrados pelos Guerreiros da Guarda? Vai lutar contra eles?
- Vamos torcer para que isso não seja necessário. Mas estarei preparado, sim. - Ele retira a antiga espada de seu colega também, e, sem examiná-la, prende às suas costas. - Não gostaria que isso acontecesse. Eles são tão prisioneiros quanto eu... Mas não quero mais viver daquela maneira, nós temos o direito de sermos felizes e livres. Venha, eu quero te mostrar uma coisa. - Estendeu a mão para pegar a de Mia e encaminhá-la para fora dali refazendo o caminho que percorreram. Sobem algumas antigas escadas espirais revestidas de pedras e, atravessando um corredor mal iluminado, chegam ao grande salão do castelo onde a luz do final do dia ainda penetra pelas altas janelas.
- Não poderia deixar de te mostrar esse lugar antes de irmos! Contar-te sobre a lenda dos Cavaleiros Errantes.
- Não gosto dessas histórias, Fred. Dão-me arrepios!
- "Rárárá" - Fréderic riu. - Não acontece nada - riu novamente e começou a caminhar pelo piso antigo do salão puxando-a pela mão. - Essa história faz parte do passado de meu povo; de um tempo em que éramos fortes e respeitados. Durante a Idade Média, a exemplo dos Cavaleiros Templários, eles dedicaram à Deus suas vidas e suas espadas. Mas, diferentemente dos Templários humanos, este grupo de homens se reuniu em uma sociedade fechada onde, para o espanto de todos da época, prenderam suas almas a um pacto herege, pagão e eterno. Com isso eles fizeram o juramento de nunca abandonarem uns aos outros para eternamente defender a igreja de Roma. Permaneceram assim, fieis, por cerca de duzentos anos. - Ele parou e a olhou de frente.
- Esse lugar é muito claustrofóbico. Sinto falta de ar aqui.
- Bobagem - riu. - Deixe-me contar o resto... Eles fizeram muitos inimigos ao longo do tempo, então, no século XIV, houve uma grande batalha nesse castelo. Foram encurralados aqui e, após dias de cerco, os inimigos entraram. Foram massacrados e tiveram seu sangue derramado nesse solo. Caíram mortos aqui, nas cercanias e nas escadas por onde viemos. - Mia baixou o rosto na direção do caminho que percorreram. - Quando estive aqui com a Guarda acompanhando Magda e a irmã louca dela, ela nos contou tudo isso. Magda e a irmã podem ver os mortos... - Virou o rosto para examiná-la melhor. - Você sabe disso. - Inclinou-se e lhe deu um beijo suave nos lábios antes de prosseguir com a história. - Ela nos contou que à noite as almas famintas desses Guerreiros peregrinam pelos corredores do castelo e depois, durante o dia, eles retornam e se deitam exatamente nos locais onde morreram; ficam ali, inertes, sem plena consciência do que aconteceu e de onde estão.
Mia puxou sua mão da mão de Fréderic e o observou aborrecida por lhe contar essa história.
- Sabia que você iria me deixar com medo. - Deu alguns passos para trás e caminhou mais para o centro do salão.
- Então, meu amor, você está caminhando sobre os mortos cujas almas estão presas ao solo, ao sangue derramado e uns aos outros. - Dessa vez não riu. Observou-a com seriedade e respeito pelo que acabara de contar.
Mia voltou os olhos para baixo e observou o piso do salão que pisava. Deu mais dois pequenos passos para trás e voltou a olhar para ele.
"Plat, plat, plat". Ouviram-se palmas vindas da entrada do salão e ambos voltaram seus rostos no sentido do som. Fréderic caminhou para próximo da amada e instintivamente retirou a espada da bainha.
- Gosta de histórias tristes, Fréderic? - Desencostou da parede. - Eu vou te contar uma história triste. A de dois amantes estúpidos e de como fugiram acreditando que não seriam encontrados!
- Não se aproxime, Gaspar! Estou avisando - retrucou Fréderic com espada em punho, soltando a bainha no chão e observando outros dois membros da Guarda Holandesa entrarem no salão.
- Vai nos ameaçar com essa espada velha? Pensei que você fosse mais esperto. - Dito isso, Gaspar desembainhou a sua espada também. Os outros membros da Guarda fizeram o mesmo. - Nos poupe tempo e trabalho, garoto. Você não tem como nos enfrentar e sair vivo daqui. Vamos levá-los de volta.
Fréderic soltou o cinto que prendia a espada das costas e segurou sua espada, agora, com as duas mãos, pronto para atacar quem se aproximasse.
- Não seja tolo, rapaz - insistiu Vicent, outro membro da Guarda. - Isso só vai nos dar trabalho e pode terminar mal.
- Não poderíamos continuar a viver como estávamos. Só queremos ser felizes, Vicent. E livres... procure entender.
- Cem anos de idade não te ensinaram nada! Deixe de ser ingênuo e de fazer escolhas erradas, garoto - continuou Gaspar.
Não se sabe, realmente, como tudo começou; quem fez o primeiro movimento incerto, mas as tensões ali presentes precipitaram os primeiros golpes e a luta desigual começou.
Mia, que estava às costas de Fréderic, correu para perto da parede assim que as primeiras estocadas foram rebatidas em movimentos muito rápidos e precisos. Chegou a olhar para a velha pistola em suas mãos, mas não tinha ideia de como usá-la, nem se estava carregada. Apontou para um dos Guerreiros e depois abaixou a arma com medo de errar.
O aparelho celular que estava no bolso da camisa de Fréderic voou para longe no primeiro giro que ele deu ao se defender de Gaspar e seguiu escorregando pelo piso por um tempo. Todos pararam para olhar.
- Até onde você pensa que pode ir, garoto? Vocês não têm como se esconder. Há um rastreador implantado sob a sua pele! Implantaram em todos nós há cerca de quatro anos sem que soubéssemos - informou Gaspar.
Exames de rotina com os membros das Guardas não eram incomuns e Fréderic se lembrou do último, quando sua pele sob o braço ficou incomodando. Deveria ser aquilo. Em vez de se ver sem saída, tudo o que pensou foi em tentar sair dali da maneira que fosse possível e depois arrancar aquela porcaria do seu corpo. Permaneceu com postura de quem não desistiria da luta.
- Você não nos dá escolha... - Gaspar voltou a incidir contra o rapaz que se defendeu bravamente e a luta entre eles prosseguiu com trocas de golpes rápidos e rasteiros.
Gaspar chutou Fréderic com o pé o derrubando ao chão, ele rolou e se ergueu rapidamente tendo que se defender dos golpes desferidos pelo terceiro Guerreiro que se aproximou de lado. Para a espécie deles, Fréderic era bastante jovem; apesar da grande experiência dos outros guardas, era muito ligeiro o que dificultava o trabalho em prendê-lo. Ele não soube precisar se foi a vantagem de sua juventude ou se alguma força sobrenatural o ajudou a mover seu braço; de súbito e com uma enorme precisão de movimentos, o rapaz se virou e acertou o abdome do homem que se aproximou por suas costas. Vicent se curvou assim que Fréderic recolheu de volta a sua espada e foi ao solo de uma vez só. Gaspar correu para perto e parou ao lado, com ambos os braços abertos, enquanto o terceiro guerreiro virava o corpo de Vicent. Só houve tempo de se ouvir dele o último suspiro.
Fréderic, que havia dado alguns passos para trás, segurava, com a mão direita, sua espada que pendia ao solo e boquiaberto observava o corpo de Vicent escorado sobre as pernas ajoelhadas do outro combatente. Fréderic havia matado um amigo. Mesmo pertencendo à Guarda Holandesa, eles se conheciam há um século; todos eles já haviam bebido juntos ou escoltado alguma personalidade a algum lugar. Vicent era tão prisioneiro da situação em que eles viviam quanto ele e nesse momento seu coração se partiu.
Gaspar, que permanecia em pé com os braços abertos próximo ao corpo do amigo, foi tomado por uma raiva profunda. Se a princípio não queria ferir o garoto, agora queria matá-lo.
- Seu desgraçado! Huuurrrr... - grunhiu e se lançou na direção de Fréderic com fúria. No momento em que ergueu a enorme espada com uma única mão para acertar o rapaz de cima a baixo, ouviu uma ordem:
- Pare.
Gaspar, de súbito, parou em resposta à voz de comando, mas logo em seguida considerou desobedecer e matar o rapaz.
- Eu disse pare, Gaspar!
Gaspar voltou-se para seu líder com fúria nos olhos, em seguida estendeu o braço esquerdo apontando para Fréderic que permanecia imóvel, com a espada pendida, olhando para o amigo morto:
- E o sangue que corre nas veias, subjuga o sangue derramado! Vai proteger esse cretino, Dieter?!
- Vamos levá-los de volta ao Conselho. Você conduziu mal essa situação, Gaspar.
- Ele será executado de qualquer forma depois do que fez!
- Não...! - implorou Mia que correu e se abraçou a ele.
- Ele tem razão - interviu Fréderic. - Agora está tudo perdido. Prefiro morrer aqui junto aos meus ancestrais que em uma prisão.
- Isso! Para estar eternamente junto aos amaldiçoados!
- Sinto muito Mia... - Ele observou seu rosto e depois olhou para Dieter. - Por favor, deixe que ela vá.
- Não haverá julgamentos aqui. - A voz firme e a figura imponente de Dieter Berger encerrou a questão.
- Farei com que pague pelo que fez - insistiu Gaspar.
Fréderic viu Dieter puxar Mia para longe dele e entregá-la ao outro Guerreiro. Resignado entregou os pulsos para ser algemado por seu primo, sendo, então, levado de volta para a prisão que era seu mundo. A alma de Vicent estava entregue à justiça dos mortos daquele lugar.
***
Caro leitor, espero que tenha gostado desse conto tão curto.
Eu ficaria muito feliz em receber algum comentário seu para saber sua opinião e, se gostou, deixe uma estrelinha!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro