Caminhando sobre o Gelo
Precisei quase morrer para fazer a maior descoberta da minha vida, descobri que seja lá qual for o caminho, escolha sempre a vida.
Encontrava-me sentada na sala de espera do consultório do Dr. Marcos, o ar estava gelado e havia outras duas pessoas esperando para serem consultadas. Eu já estava impaciente, pois as consultas encontravam-se atrasadas; olhei em meu relógio de pulso e meia hora já havia se passado da minha consulta.
A sala estava gelada e minha ansiedade me incomodava, meu já debilitado coração estava sendo esmagado pelas mãos de Deus, sentia-o completamente apertado, minhas mãos transpiravam e minhas costas doíam devida a tensão.
- Heloísa. - chamou-me a secretaria, indicando-me para que entrasse na sala.
Assim que entrei, Dr. Marcos levantou-se e estendeu sua mão a mim em cumprimento.
- Como vai o Senhor?
- Estou bem, obrigado. E você, como tem passado?
- As coisas não melhoraram muito desde a semana passada.
- Muita falta de ar?
- Sim e muita dificuldade para dormir.
- Tenho boas notícias, os exames estão todos ótimos, já reservei a UTI e amanhã pela manhã você se interna, e na quarta faremos a cirurgia.
Recebi a notícia com espanto, eu deveria estar preparada, mas não estava, minha cirurgia para reparar um problema em minha válvula mitral já havia sido adiada duas outras vezes, e confesso que eu tinha certeza que seria adiada novamente.
Levantei-me nervosa.
- O que foi Heloísa, não gostou da notícia? Vai correr tudo bem, temos os melhores médicos aqui, a melhor equipe estará me acompanhando.
- Eu sei que sim, estava esperando que adiasse novamente.
- Você precisa dessa cirurgia, não podemos mais adiar, sabe disso.
Assenti e voltei a me sentar.
- Ainda tem alguma dúvida que eu tenha deixado passar na nossa última consulta?
Balancei a cabeça em negativa.
- Então é isso, vá para casa, arrume suas coisas e esteja aqui amanhã de manhã.
- Está bem. - respondi com os nervos à flor da pele.
O médico se levantou, abriu a porta para mim e estendeu sua mão despedindo-se.
Levantei-me e caminhei cabisbaixa até a porta, e sai da sala imersa em meu medo.
Sai do consultório, passei pela sala de espera sem enxergar ninguém, a notícia que a hora estava próxima fez-me perder o rumo, então caminhei de cabeça baixa pelo corredor do hospital, e por estar tão absorta, não vi a aproximação de um homem que vestia um jaleco branco e esbarrei-me nele, fazendo com que os papeis que o médico analisava caíssem todos no chão, o que fez com que imediatamente ambos se abaixassem para recolher os papéis, e, antes de voltar meus olhos para o homem, concentrei-me nos papeis, pois li meu nome escrito. Heloísa Cardoso.
Assim que me recompus, levei meus olhos para o homem, alto, cabelos castanhos claros e olhos acinzentados.
- Perdoe-me estava distraída.
- Estávamos ambos distraídos. - ele sorriu sereno.
- Sou a mulher de suas fichas. - informei indicando com a mão.
- Heloísa?
Meneei a cabeça positivando sua pergunta.
- Muito prazer, sou o Dr. Emanuel, o anestesista.
- O prazer é meu Dr.
Vi dentro daqueles olhos, a maior paz que se possa imaginar, seu sorriso era sereno e sua voz parecia uma linda sonata de Beethoven.
- Soube que sua cirurgia foi remarcada.
- Sim, e confesso que estou apreensiva.
- Não há motivo algum, fique tranquila tudo correrá bem.
Assenti.
Conversamos por alguns minutos em uma das salas de espera, ele me explicou todo o procedimento de anestesia e depois cada um seguiu seu caminho.
O Dr. Emanuel, com sua leveza, passou-me muita tranquilidade, então voltei para casa com uma paz no coração e uma confiança de que tudo daria certo.
No dia seguinte voltei com minha mãe, e quarta feira as 7 da manhã a porta do quarto se abriu, meu coração descompassou, era a junta medica que vinha se apresentar e conversar um pouco, procedimento para acalmar o paciente.
- Olá Heloísa, disse Dr. Marcos todo animado.
- Olá. - respondi apreensiva.
A junta medica era grande e em meu campo de visão não vi o Dr. Emanuel, com certeza estava atrás e eu não conseguia vê-lo.
Um a um os médicos foram se apresentando, conversando comigo e me passando tranquilidade, até que o ultimo médico falou, era o anestesista e não era o Emanuel, então questionei aflita.
- Onde está o Doutor Emanuel? Por que não é ele o meu anestesista?
Dr. Marcos e os outros se entreolharam sem nada entenderem a respeito de minha pergunta, então foi Dr. Marcos quem respondeu-me.
- O Dr. Olavo é que será seu anestesista, minha querida.
Meneei a cabeça em negativa.
- O que aconteceu com o Dr. Emanuel? Ele me disse que seria meu Anestesista.
- Heloísa, não fique tão nervosa, ou terei que adiar novamente sua cirurgia, e você não está em condições de esperar mais.
Entrei em desespero e sentei na cama, meu coração disparou novamente e eu não podia me imaginar sendo operada sem a presença do Dr. Emanuel, ele havia passado uma segurança tão terna, havia sido tão gentil.
- Eu não quero mais essa cirurgia, disse em prantos.
Um Enfermeiro Padrão veio com um líquido em um copinho e ofereceu a mim, recusei-me a bebe-lo, então de repente, Emanuel veio passando entre os médicos e chegou próximo de mim.
- Eu estou aqui Heloísa, só havia me atrasado, não se preocupe, já estou aqui com você.
Então respirei aliviada.
- Obrigada Dr. É um alivio vê-lo aqui.
Ele sorriu sereno.
Os demais médicos se entreolharam com espanto e sem dizer mais nada saíram um a um do quarto, apenas Emanuel ficou ao meu lado e acompanhou a maca em direção ao centro cirúrgico, segurando firme em minhas mãos.
Cinco horas se passaram no centro no cirúrgico e após uma parada cardíaca a equipe começou a me perder e assim meu coração parou por completo, então, imediatamente começou uma corrida por minha vida, os médicos deram início a desfibrilação em meu coração.
Senti-me leve, não havia peso em meu corpo, então vi-me deitada na mesa cirúrgica e os médicos falavam agitados e tentavam a todo custo ressuscitar-me, mas a sensação era tão boa, sentia-me livre, podia respirar sem dificuldade, era a paz que nunca fui capaz de conhecer antes, porém durou tão pouco que nem tive tempo de desfrutar dela e fui jogada de volta ao meu corpo, mas uma segunda parada cardíaca levou-me a um cenário belo e deslumbrante, mas a sensação de medo era torturante, eu havia sido levada para dentro do meu maior medo, o gelo. Nunca consegui colocar nenhum único pé em uma pista de patinação no gelo, eu travava todas as vezes que tentava. O vento era gelado, estava com frio, tremia e batia o queixo, embrulhei-me em meus braços em busca de calor, estava descalça e vestindo um lindo vestido branco. Eu estava leve, o silêncio era algo palpável, nunca antes eu havia estado imersa em um silêncio tão puro, nem minha respiração exteriorizava som. Conforme respirava uma nevoa saia de minhas narinas e boca. Olhei para baixo e tive o maior dos meus medos materializados embaixo de meus pés, era gelo, eu estava em um lago congelado. Estava tudo nublado, esfumaçado, tudo era branco, o cenário era deslumbrante, a vegetação a meu redor toda congelada com as folhas acinzentadas e gotas de gelos cristalizadas.
A água era cristalina embaixo de meus pés, e a sensação era de que a qualquer momento tudo aquilo fosse se quebrar e assim eu submergiria nas águas geladas do lago, para nunca mais voltar. Eu estava no meio, atrás de mim o lago era infinito e em minha frente nas margens, eu via claro e nítido a mesa cirúrgica, e nela, os médicos tentavam a todo custo levar-me de volta. Meu medo era tanto que eu nem piscava, então ouvi a voz mansa do homem vestido de branco a meu lado. Era Emanuel.
- Está preparada para enfrentar o medo e vencê-lo?
- Onde estou Dr.? E por que não está lá na mesa cirúrgica.
- Você está dentro do seu maior medo, esse é o momento em que você faz a escolha, se caminha até seu corpo novamente ou se vem comigo para todo sempre.
Olhei-o incrédula.
- Não estou lá com eles, por que agora eles não precisam mais de mim, você precisa.
- Você não é um médico é?
Ele sorriu sereno.
- Sou um médico de almas, e nesse momento, a sua precisa de mim.
- A essa altura eu já devo ter morrido, já se passou muito tempo.
- Tempo? Ele não existe aqui, você pode se demorar o tempo que achar necessário para fazer sua escolha, o tempo só vai correr do lado de lá. - apontou para as margens onde a mesa se encontrava.
- Vou te mostrar que não existe segredo para pisar no medo e seguir adiante, mas antes você precisa saber, que sua escolha terá consequências.
- Consequências?
- Sim, se resolver atravessar o lago, será o início de seus problemas, estará sempre envolta nas sombras desse seu problema cardíaco, mas se ficar aqui e deixar o lago se partir debaixo de seus pés, todos os problemas acabarão.
- Você é um anjo, e veio me buscar?
- Eu sou o que você quiser que eu seja.
Ele me passava segurança.
- Vou atravessar na sua frente, e você vem logo atrás, tudo bem assim?
Meneei a cabeça positivando.
Assim que Emanuel acabou de passar sobre o lago congelado, olhou imediatamente para trás, havia conseguido, estava com os olhos brilhando de felicidade, mas a mesma foi congelada no exato momento em que me viu parada, eu estava travada, a dez passos de chegar às margens. Percebendo meu desespero, nítido em meu olhar, ele voltou a pisar no lago, porém o mesmo, produziu um ruído como se cacos de vidro estivessem sendo quebrados, provocado pelo atrito de seus pés com o gelo. A escolha agora era só minha.
O chão estava frio, e meus pés já começavam a congelar em cima da fina camada de gelo que cobria todo o lago que refletia minha própria imagem. Eu estava ali, sozinha no meio do lago, e sabia que cada passo teria que ser calculado ou a fina e límpida camada de gelo se quebraria ao meu redor e me levaria direto para o fundo. Minha imagem estava refletida no gelo, e ao me olhar, senti o pavor percorrer cada músculo de meu corpo, então, senti como se meu peso tivesse dobrado, era só uma falsa impressão, provocada pela tensão de meus medos. Não podia gritar, muito embora essa fosse minha única vontade, meus gritos foram sufocados, gritava internamente, ninguém me ouvia, nem eu mesma. Inspirava o ar gelado e se sentia-me asfixiada, temia expira-lo de meus pulmões e fazer qualquer movimento em falso, então, soltei o ar lentamente, produzindo uma neblina, era o vapor saindo de minha boca, tentei manter minha respiração em um ritmo lento, então levantei meus olhos, e os mantive fixos nas margens do lago, onde Emanuel esperava-me ansioso, ditando cada próximo passo que eu deveria dar. Era como se ele estivesse mudo, falava e gesticulava, mas eu estava tão absorta em meu pânico, que nada conseguia juntar em minha mente.
O medo paralisou-me e lagrimas escorriam geladas em minha face, era o fim, passei a pensar seriamente em desistir e morrer ali mesmo, dentro do meu maior pesadelo. Havia me apaixonado por Emanuel, e descobrir que se voltasse não o veria jamais, fez-me repensar o que realmente queria para minha vida. Então, antes de decidir o que faria, levei meus olhos cheios de lagrimas a mesa de cirurgia na margem, e no meio dos médicos, vi Emanuel aplicando-me uma nova dose de anestesia.
Então busquei coragem e caminhei rumo ao que mais queria na vida, cada passo que dava sobre o lago cristalino, sentia-me como se estivesse caminhando sobre o ar. Cheguei então até a mesa e senti novamente o calor percorrer meu corpo. Horas mais tarde, quando ainda estava na UTI, ouvi o tom suave da voz conhecida.
- Heloísa, estou aqui com você. - sussurrou Dr. Emanuel.
Descobri que viver era só uma questão de escolhas, e que muitas vezes ficamos paralisados frente a elas.
Caminhar adiante, ou deixar o gelo partir e nos afundar?
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