Capítulo 17 - Sábia
Aviso - neste capítulo pode ocasionar gatilho.
É abordado sobre TEPT (transtorno de estresse pós-traumático) e TOC (transtorno obsessivo-compulsivo).
Arco 2 - A missão e os Irmãos
Camicazi
Estou desde ontem pensando no que aconteceu durante o treino, de certa forma sinto que estou menos mal do que comparado aos outros dias. Eles falam que não sou a responsável pelo o que aconteceu, mas se isso é verdade, por que continuo pensando que sou a culpada de tudo? Por que não consigo acreditar no que falaram? Por que é tão difícil?
Em meio aos meus pensamentos, visto o uniforme e procuro alguma xuxinha para prender o cabelo e encaro a fita vermelha que está em cima da cômoda. Está se tornando um ritual já, todas as vezes que vou prender o cabelo, eu a encaro, mas nunca a uso.
"- Essa fita é pra você. Era para ser roxa, mas acabei pegando vermelho, você gosta dessa cor?"
Eu gosto dessa cor.
"- Ficou muito bom! Ela realça mais ainda o ruivo dos seus cabelos. Eu queria te entregar após o fim da missão, como se fosse um presente. Você gostou?"
Eu gostei muito, mas não sei sou merecedora para usá-la.
- Vai ficar encarando mais quanto tempo para usá-la? – perguntou Banguela.
Solto um suspiro fraco e balanço a cabeça.
- Não sei. – digo enquanto pego outra xuxinha para prender meu cabelo em um rabo de cavalo.
- Você disse a ele que gostou, então deveria usar ao não ser que tenha mentido.
- O que? Não, eu não menti.
- Então use-a! Eu ajudei ele com essa fita. Então quero que vê-la usando.
- Está bem, está bem, vou usar. – digo derrotada.
Observo a chuva caindo pelo vidro da janela do carro, sempre pensei nela como uma forma da natureza se expressar perante as atitudes do ser humano, ou como uma limpeza em meio a tanta poluição.
Chego na escola e vou em direção a minha sala. Quando entro noto que o Takeshi não chegou ainda, sinto um alívio e nervosismo ao mesmo tempo. Infelizmente o alívio vai embora minutos depois, porque ele chegou.
- Ok, não vou deixar você me enrolar que nem ontem. Apenas me conte o que ele te fez todos esse tempo. – ele diz enquanto se senta e começa a pegar suas coisas.
- Agora não é hora para isso...
- Quando chegar o intervalo, você falará a mesma coisa e na hora da saída também. Na verdade, em qualquer momento e eu só quero entender a situação, saber o porquê de ter escondido tudo. Quero entender como fui tão burro e cego assim, apenas converse comigo por favor.
Respiro fundo e tento organizar as palavras.
-...eu não queria que você ficasse assim, não queria que sua relação com ele estragasse por minha causa. Não queria que nada disso acontecesse.
Posso sentir seu olhar em mim, mas só consigo olhar para o chão.
- Por que ele age assim com você? É desde sempre?
Paro para pensar sobre qual seria o motivo, sempre achei que era por causa da minha amizade com o Takeshi. Mas lembro que certa vez, acabamos nos trombando e ele perguntou o meu nome, quando respondi Camicazi, sua cara se fechou e ele saiu batendo de propósito em meu ombro. Depois ele e o Takeshi se conheceram e continuei sendo tratada da mesma forma e tudo piorou quando meus poderes despertaram.
- Eu não sei o motivo, mas sim é desde que ele me viu pela primeira vez.
Takeshi passa a mão em seus cabelos e suspira.
- Como que eu nunca vi nada disso antes?... – ele fala mais para si mesmo do que para mim.
- Ele não age dessa maneira quando você está por perto. Me desculpa, eu não queria causar tudo isso, não quero que você perca sua amizade com ele e nem nada do tipo por minha causa. Ele provavelmente vai continuar agindo como antes, então ficará tudo bem.
- Camicazi, olhe para mim. O Igor está errado há muito tempo, se ele realmente quisesse que algo desse certo, não agiria assim. Então, não tem porquê pedir desculpas, você não fez nada de errado. Não vou trocar anos da nossa amizade por causa dele, você é como uma irmã para mim, então não hesite em contar as coisas. – ele se aproxima de mim e fala mais baixo. – que nem o sangue que está vendo.
Arregalo os olhos, eu não contei nada então como...
- Eu mandei mensagem pro Vitor ontem, perguntando sobre a questão do Igor e comentei que tinha algo acontecendo e não fazia ideia do motivo. – Takeshi segura minhas mãos. – Você é uma heroína e não uma vilã, eu não estava lá presencialmente, mas acompanhei tudo pela base. Você é incrível, me sinto muito sortudo por tê-la como irmã, suas mãos não carregam sangue de ninguém. O único sangue que carrega é o que está presente em seu corpo.
Solto um sorriso fraco e balanço a cabeça.
- O que vai acontecer entre você e o Igor?
- Eu não sei, mas independentemente do que aconteça, você não é a responsável, está bem? Não foi você que errou, então nada de ficar se culpando, tá?
- Está bem. – digo e finalmente consigo olhar para ele.
Já estou em casa novamente.
Subo as escadas, na minha frente está o quarto das minhas mães, já na esquerda está o meu quarto e na parte direita é uma sala com um piano, decido entrar nela.
A sala possui um formato quadrado, com paredes lilás e lisas. Não há nada no lado esquerdo, no meio há uma janela centralizada aberta e com cortinas roxas, já no lado direito há uma estante com fotografias e troféus. No meio da sala está o piano de cauda branco. Passo a mão pelo mesmo e vou em direção a estante, vejo as fotos e os troféus, lembranças de um momento alegre que terminou em frustações e conturbações.
Esse piano era do meu bisavô, ele era canadense e veio para cá devido a uma apresentação. No período que ficou aqui, conheceu minha bisavó e se apaixonou. Assim decidiu ficar aqui com ela e construíram uma família, logo veio a minha vó e depois minha mãe Runa. Assim, o piano ficou como herança.
Lembro de ver minha mãe Runa tocando para mim e para minha mãe Sayaka, também lembro das duas tocando juntas e depois eu comecei a tocar.
Desde a primeira vez que o vi, fiquei encantada e pedi para aprender a tocar. Minha mãe Runa me ensinou boa parte e fui para uma escola de piano, que também ensinava balé – lembro de uma garotinha que era bailarina e gostava de me ouvir tocando. Depois que a vi pela primeira vez, passei a tocar para ela dançar, era divertido.
Aí veio a oportunidade de participar de um concurso e eu aceitei, fiquei em 4° lugar e depois participei de outro, do qual fiquei em 1° lugar e esse foi a gota da água para tudo desandar. No passado, minhas mães não queriam que eu fosse alvo de ódio por elas serem um casal, então sempre procuravam um jeito de esconder de todos, mas nem tudo é flores e as pessoas descobriram e começaram a me perseguir. Fui alvo nas aulas de piano, na escola (foi o principal lugar), nas aulas de luta e nos concursos. Tinha crianças que fugiam de mim, porque poderia "contamina-las", outros tiravam sarro e me chamavam de órfã de pai e de família e houve aqueles que sentiam nojo. Para o Takeshi foi pior, porque além de sofrer o mesmo, também tinha o racismo. A gente teve que trocar de escola, abandonei as aulas de luta e depois do último concurso que participei – do qual parei no meio da apresentação em crise, porque via as crianças tirando sarro de mim – abandonei o piano também.
Eu ainda gosto muito dele, mas não consegui mais tocar. Fico relembrando e entro em desespero, sinto saudades daquela pessoa que eu era antes de tudo que aconteceu.
- Oh.
Olho para a porta e vejo minha mãe Runa surpresa, também noto que estou sentada no banco do piano – nem sei quando fiz isso.
- Eu já estava saindo. – digo ao indicar que vou levantar, mas ela põe a mão em meu ombro para impedir.
- Não há necessidade disso, hm...será que a gente poderia conversar?
Balanço a cabeça sinalizando que sim e ela senta ao meu lado.
- Lembro da primeira vez que você viu esse piano e endoidou querendo tocar.
Eu apenas balanço a cabeça e ela solta um leve suspiro.
-...
- Eu fiquei determinada em conversar com você, mas agora que estou aqui esqueci tudo o que queria falar.
- Acontece. – é tudo o que consigo dizer.
Passa algum tempo e ela volta a falar.
- Tenho conversado com o Banguela todas as noites, na verdade, tá mais pra ele dando aula sobre os Lendários para mim. Eu me sinto perdida sobre o que posso fazer, sou apenas humana, então não posso te acompanhar em missões ou eventos, nem sequer pude te ver quando estava no hospital. Posso apenas te observar durante o treino que nem o Takeshi, mas os horários do meu trabalho com o seu treino não batem. Tenho só errado com você constantemente durante todo esse tempo. Eu quero estar ao seu lado, quero te ajudar, quero acompanhar sua evolução, quero estar com você, quero que nossa relação volta a ser o que era no passado, mas tudo o que fiz foi te machucar durante todos esses dias. Não quero te perder, não quero que se machuque mais ainda. Me desculpe filha, me desculpe por tudo, por todos os erros e sofrimentos.
"Se tiver algo, qualquer coisa, que eu possa fazer, fale comigo e você não precisa me perdoar ou falar qualquer coisa, ainda mais agora. Sem pressão."
Posso não estar olhando para ela, mas consigo perceber a voz embargada, a tentativa de não chorar.
Eu não esperava nada disso, pensei que ia me encorajar a tocar de novo que nem no passado. Não sei o que responder, para falar a verdade nem sei explicar o que estou sentido agora.
Durante todo esse tempo, julguei que ela tinha deixado isso de lado, quando na verdade estava tentando entender o que estava acontecendo para me ajudar. E eu também não facilitei, não pensei que ela poderia estar confusa e perdida por não saber de nada, nós duas poderíamos ter aprendido tudo junto.
- Não fique se martirizando por causa do que falei agora, eu não dei nenhuma abertura para que pudéssemos conversar sobre e agir juntas. Na verdade, meio que fiz o oposto, então não fique assim. – minha mãe fala e coloca a mão sobre a minha.
Sinto uma vontade enorme de abraça-la e é exatamente o que faço.
É como se nesse abraço todas as dúvidas fossem explicadas, todas as palavras não ditas fossem faladas e é perceptível a presença do amor e a sensação de estar em casa, de certa forma, novamente.
Vitor
Depois de ontem, decidimos voltar com o treinamento apenas semana que vem. Por enquanto, a Camicazi ficará descansando. Mas não quer dizer que irei descansar também, quero fazer algo para ajudá-la, no entanto, não faço ideia do que fazer.
Tenho pensado sobre como posso ajudar, mas fica meio difícil de se concentrar já que tá tudo bagunçado. Eu olho para minha mesa e vejo bagunça, olho para a estante dos livros e parece que alguém mexeu e os deixou fora do lugar. O que só está me deixando mais nervoso e agoniado, não sei por onde começar.
Está tudo bagunçado e isso é sufocante, perturbador. Vê bagunça e sujeira aonde não há, querer organizar tudo mas sem saber por onde começar.
Escuto batidas na porta.
Takeshi
Bato na porta e espero por um tempo.
...
Bato novamente e espero mais um pouco.
...
Decido bater pela terceira ve-
- Luke? O que está fazendo aqui? Os treinos só vão voltar semana que vem. – pergunta Vitor.
Reparo o quão cabisbaixo está, seus olhos estão meio vermelhos, quase como se estivesse segurando o choro.
- O que houve com você? – pergunto.
- Eu perguntei primeiro.
- Grande coisa, o que mais eu poderia estar fazendo aqui quando não há treino ou estudo? – respondo e cruzo os braços. – Agora responda a minha.
-... – ele suspira e olha para baixo. – só estava tentando arrumar umas coisas e não deu muito certo. – responde com um sorriso fraco.
- Bom, deixe-me ajudá-lo então!
- Agradeço, mas não há necessidade disso.
- Ao menos me convide para entrar, onde já se viu isso!
- Está bagunçado, eu já disse!
- E eu estou falando que quero entrar!
Começamos a nos encarar, uma disputa implícita. Se eu perder, irei embora, se ele perder, então irei entrar.
Não sei quanto tempo passou, mas não ire-
- Entra logo. – ele diz e me puxa, pelo colarinho da minha camisa, para dentro e fecha a porta.
Olho ao redor à procura de alguma bagunça ou algo parecido, no entanto, não encontro nada.
- Você não vê nada bagunçado, né?
- Não, parece estar mais organizado do que antes.
Ele solta uma risada seca e volta a olhar para baixo.
- Pra mim, tá pior que antes. Não está nada no mesmo lugar e não lembro completamente como estava antes, eu devia ter tirado uma foto.
- Está pior por estar diferente de antes?
- Acho que sim, em partes.
- O que mais seria, então? – digo e continuo olhando ao redor, se conseguir notar duas coisas diferentes é muito.
- Eu...eu não sei. Argh. – ele coloca as mãos nas têmporas. – nem pra isso tenho capacidade.
- Como assim não tem capacidade?
Viro e fico de frente para ele.
- Nada, só esqueça... - ele fala e vai em direção a cadeira, no entanto, o seguro pelo pulso.
- O que está acontecendo? Não faça que nem a Camicazi, converse comigo. Eu sei que não sou Lendário e por causa disso há muitas coisas das quais não posso ajudar, mas ao menos posso ser um bom ouvinte e quem sabe até mesmo dar um bom conselho. Então me conte, sim?
Coloco a mão em seu ombro numa tentativa de transmitir conforto.
- Não sei o que fazer, não sei como agir para ajudar a Camicazi. Eu deveria ter ido naquela maldita missão, o Thomas poderia estar aqui ainda, ninguém estaria sofrendo. Mas sou medroso, tem tantos Lendários que sofreram tanto, que perderam tanto e possuem mais coragem do que eu, eles vão para as linhas de frente e enfrentam. Enquanto permaneço atrás nessa cadeira estúpida apenas mexendo nessas tralhas, quando luto é apenas treino. Na primeira missão dela, eu a deixei sozinha porque o sinal falhou. Depois na segunda missão, fiz aquele inseto pra ajudar e no fim foi por causa dele que acharam os dois e o Thomas morreu, foi por minha causa. Eles chamam a Camicazi de assassina, quando na verdade sou eu. E para piorar tá tudo bagunçado e isso está me dando agonia.
Não consigo evitar de arregalar os olhos, no entanto, puxo Vitor para um abraço apertado. Não suporto vê-lo nesse estado. Coloco meu braço direito em seus ombros enquanto minha mão esquerda encosta em seu cabelo. Acho que ele ficou surpreso também, mas depois retribui o abraço.
- Você não é um assassino e nem a Camicazi. Sua história pode ser diferente dos outros, mas não quer dizer que você tem que lutar, tem que participar das linhas de frente diretamente, cada um escolhe o que é melhor para si e, sinceramente, acho que a sua escolha foi a mais sábia. Afinal, é graças ao seu comando que quem está lá pode avançar ou fazer qualquer outra coisa. Eles podem ter visto o inseto, mas não quer dizer que é sua culpa, o Banguela disse que não era uma missão para duas pessoas ent-
- É justamente por isso, se eu tivesse ido lá, seriam três...
Sua voz está embargada de choro e posso sentir as lágrimas escorrendo pelo meu pescoço.
- Vitor, mesmo se fossem dez não era garantido.
Ficamos um tempo em silêncio, suas mãos agarram minha blusa com força.
- Por que é sábia? – ele pergunta.
- Sábia o que?
- Minha escolha, como pode ser sábia se optei por ela para não ter que lutar justamente por ter medo? Não é sábia, é fuga e não tem como ser tão importante assim.
- É claro que é importante! O Banguela ajuda muito, é claro, mas é por sua causa que a Camicazi tem aquelas pulseiras, o uniforme. É você que treina com ela, que dá dicas e a ajuda em todos os momentos. Além de ficar supervisionando-a, o sinal falha mas aí é culpa dele e não sua. Eu acompanhei as duas missões e notei o quão concentrado fica, você é muito bom de verdade, o próprio Banguela fala isso. É sábia porque você a ajuda, auxilia e a orienta. Vocês trabalham juntos, para que a Camicazi chegue ao destino é necessário que a ajude. Então, não diga e nem pense nisso, você é incrível e importante. Afinal, é o Ajudante! Pergunte à Camicazi e ao Banguela, tenho certeza que dirão o mesmo e até mais.
Ele solta uma risada fraca e sinto suas mãos soltarem minha blusa, o mesmo olha para mim e sua expressão está mais calma e menos cansada.
- Como se sente?
- Melhor, não totalmente, mas certamente melhor. – responde e volta a me abraçar. – como eu queria ter conhecido vocês antes. – diz baixinho.
Agora é a minha vez de rir.
- É estranho o que falei?
- Não, não é isso. Eu penso o mesmo, achei que era o único.
- Bom, agora sabemos que ambos pensam assim...mas continuo sentido que está bagunçado as coisas.
- Eu te ajudo a arrumar e a entender que não está bagunçado.
- Hm.
Vitor 🠗
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