Fim de Jogo ► Capítulo 3
Quando abriu os olhos, Bianca estranhou o cenário. Então, percebeu que o motivo de não estar olhando para a parede do quarto era que não havia acordado na própria cama.
Encarou, confusa, o hall de entrada do dormitório, iluminado pelos raios de sol da manhã, tentando reconstituir a noite anterior em sua cabeça. Encontrou seu mangá caído no chão e lembrou que veio ler na sala na noite anterior porque seu quarto estava lotado de garotas que detestava. E Elisa. Então lembrou que estava com ódio dela, mas também que haviam marcado de ir juntas ao centro naquele dia.
Ah, também era seu aniversário.
Bianca bocejou e se sentou no sofá, sentindo as costas doloridas. Se estivesse em casa, seria acordada pela mãe com um beijo estalado e uma bandeja de café na cama. E, se fosse em sua antiga cidade, onde ainda dividia o quarto com a irmã mais velha, Natalie também acordaria e reclamaria do barulho, mas depois a abraçaria com força enquanto gritava um parabéns no seu ouvido — e em algum momento do dia sussurraria que ninguém tinha certeza se aquele era mesmo o dia do seu aniversário porque a mãe delas havia achado Bianca no lixo quando bebê ou algo do tipo.
Sorriu, sentindo o coração apertar de saudades na solidão do hall vazio. Havia dormido em cima do celular e aproveitou para checar o horário: 6h20. Ainda era cedo para um sábado e resolveu voltar para o quarto, que àquela hora finalmente devia estar vazio...
E quase deu de cara na própria porta quando tentou abri-la.
Encarou a maçaneta, sem acreditar que realmente estava trancada. Que ela havia ficado trancada do lado de fora do seu quarto.
Ficou muito puta com Emily Beaumont. Nem ela, nem Bianca trancavam a porta, até porque ambas raramente ficavam lá. É claro que não esperava bom senso de ninguém que andasse com Nicole, mas trancar a própria colega para fora era demais! Usou as mãos que tremiam de raiva para bater com força na madeira:
— Emily, abre essa porta!
Não ligava se acordaria o dormitório inteiro ou acabaria na sala da diretora, porque a indignação queimava todo o seu bom senso. Quando não teve resposta, bateu ainda mais. Quando se preparava para gritar de novo, ouviu a tranca ceder.
Para a sua surpresa, não se deparou com a outra dona do quarto, mas sim com Elisa, que franziu os olhos quando a luz do hall de entrada invadiu o quarto escuro.
— Pra que esse barulho todo, Bi? — Estava um pouco rouca.
— O que você tá fazendo no meu quarto?
Normalmente, Bianca ficava feliz ao ver Elisa, mas a confusão estampada no rosto da amiga só servia de combustível para sua indignação. Como se o absurdo da situação fosse Bianca fazendo barulho de manhã.
— Ah. Acho que eu dormi aqui. — Deu um sorriso sem graça, que evoluiu para um bocejo.
Bianca continuou encarando a amiga enquanto ela pegava o celular para ver as horas. Esperava que se desse conta de que dia era e começasse a se desculpar por ser tão sem noção. Mas Elisa pareceu esquecer que ela estava ali, encarando a tela com uma expressão estranha, como se não gostasse do que estava vendo. Ela não percebeu que dia era...
— Por que trancaram a porta? — Bianca acabou perguntando, apenas porque o silêncio a estava deixando ainda pior. Que pelo menos arranjasse uma desculpa para poder gritar com Elisa.
— Ah, foi a Nicole. Todo mundo estava meio bêbada ontem e ela disse que seria melhor assim...
A frase de Elisa foi se perdendo até se tornar um murmúrio, então ergueu os olhos para Bianca, com a expressão de quem acabou de ver um fantasma. "Finalmente ela se tocou" pensou.
— O que foi?
— Bi, eu... — E olhou de novo para o celular, a expressão de choque no rosto. — Deixa eu te explicar o que aconteceu...
Bianca franziu as sobrancelhas e esticou o pescoço para tentar entender o que diabos Elisa tinha visto, mas ela afastou a tela do celular. Tudo o que conseguiu ver foi uma conversa por SMS e uma foto de relance.
— Elisa, o que houve? — insistiu, percebendo o desespero da outra crescer.
— Não é nada, Bianca! Quer dizer... eu fiz uma coisa, mas posso...
Então, a paciência de Bianca chegou ao limite. Não era de invadir a privacidade dos outros, mas a hesitação de Elisa sugeria que havia algo de errado que ela não queria compartilhar. Puxou o celular de suas mãos antes que ela pudesse impedir, mas quando olhou para a tela do telefone, sentiu seu coração caindo no chão.
— Bianca, não é o que você tá pensando!
Na troca de mensagens, havia uma foto de Bianca dormindo no sofá do hall de entrada, com uma fina linha de baba escorrendo de sua boca entreaberta. A saia do uniforme estava embolada, deixando um pedaço da calcinha rosa aparecendo. Era uma foto boba, mas o que doía de verdade era ver quem a havia tirado, e para quem fora enviada.
Elisa
[foto]
Nicole
que patética
imagina não ser convidada para um rolê no próprio quarto kkkk
— ... eu não estava querendo rir de você! Eu estava meio bêbada quando enviei essa foto e a Nicole entendeu tudo errado! — Elisa tentou explicar, apesar de Bianca ver que a troca de mensagens não sugeria nada daquilo.
Toda a dor que sentiu no último mês inundou novamente seu coração e Bianca precisou de muita força para engolir a vontade de chorar diante da traição. Então, Elisa não andava com aquelas garotas apesar de não ser ruim como elas, ela era igualmente cruel. Apertando o celular com cada vez mais força conforme Elisa tentava se explicar, Bianca sentiu a dor se transformando em raiva. Pelo bullying interminável, pelas coisas cruéis que aquelas garotas a faziam passar, por ver seu ano dos sonhos se tornando um pesadelo... mas, principalmente, por ter pensado que não estava completamente sozinha. Que, pelo menos, ainda tinha uma amiga.
No seu ímpeto de raiva, atirou com toda a força o celular de Elisa no chão.
— Não precisa perder seu tempo, Lisa, porque eu não acredito em nenhuma palavra sua! Nem sei por que você se deu ao trabalho de fingir ser minha amiga por tanto tempo, se é no meio desse ninho de cobras que você prefere estar!
Esbarrou grosseiramente em Elisa quando entrou no quarto, indiferente às garotas que dormiam ali dentro — e precisou engolir o ódio ao ver Marcela dividindo sua cama com Vanessa. Murmúrios e reclamações encheram o cômodo quando ligou a luz, mas não se deu ao trabalho de responder nenhum enquanto pegava sua mochila e jogava tudo o que precisava lá dentro (incluindo uma muda extra de roupa para poder tomar banho, pois ainda estava com a porcaria do uniforme do dia anterior).
Elisa chorava tanto que sequer conseguia formar palavras. Quando Bianca passou de novo pela porta, ela tentou segurar seu pulso enquanto misturava justificativas com desculpas. Bianca nem ergueu o olhar. Sabia que era uma questão de tempo até também terminar em prantos e queria estar o mais longe possível dali quando acontecesse.
— Ainda quer me dar um presente de aniversário, Elisa? Então, por favor, nunca mais olhe na minha cara.
Não se importou com o horário, ciente de que a discussão havia acordado todo o dormitório. Algumas vizinhas de quarto abriram suas portas para tentar entender o que acontecia. Sequer se importou com sua ex-amiga caindo de joelhos ao lado do celular em pedaços e deixou às fofoqueiras a honra de ouvir seu choro. Tudo o que lhe importava naquele momento era tentar parecer forte enquanto dava passos duros em direção à saída.
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— Não precisa se preocupar, Nini, está tudo ótimo aqui no internato. Naquele dia em que eu te liguei, só estava com um pouco de saudades de casa... mas e você e a Esther, como estão?
Apesar de servir para desconversar, também era uma pergunta genuína. Após se formarem no Madre Cordélia, Natalie e Esther viveram um ano caótico em que uma iniciou a faculdade de Moda e a outra aproveitou uma espécie de ano sabático, experimentando cursos, estágios e viagens, a fim de decidir com mais calma o futuro. Foi um período estressante e repleto de desentendimentos. Bianca se lembrava de consolar a irmã que jurava que "daquela vez era sério e elas iriam terminar" mais vezes do que gostaria. No fim, o relacionamento se tornou ainda mais forte. Naquele ano, Natalie e Esther finalmente tomaram a decisão de morar juntas e atualmente estavam aproveitando a vida de "namoridas".
— Ah, Bibi, estamos ótimas! — Natalie sabia que a irmã detestava o apelido ridículo que inventou aos 11 anos. — A Esther começou o curso de Direito e eu consegui aquele estágio que eu queria, então a vida está um pouco corrida... mas não poderíamos estar mais felizes. Eu te conto os detalhes outro dia, não quero te alugar no dia do seu aniversário, só liguei para desejar parabéns. A Esther também está mandando um beijo, viu? Nós te amamos muito e estamos ansiosas para você nos visitar. Aproveita hoje com a Elisa e depois me conta como foi, ok?
Bianca hesitou e agradeceu por Natalie não poder vê-la naquele momento. Havia apagado sua mensagem de desabafo e a irmã não tinha qualquer conhecimento sobre o que estava passando no internato. Da mesma forma, escolheu não contar sobre a briga com Elisa. Era vergonhoso falar sobre as humilhações, principalmente quando já se sentia patética o suficiente em comparação à irmã sem que ela soubesse o quão fracassada Bianca de fato era. Trazer aquelas lembranças à tona só tornariam seu dia pior, bem agora que ele estava começando a melhorar um pouco.
— Eu te conto tudo quando eu chegar no internato, prometo. Te amo, Nini.
— Também amo você, Bi. Que bom que a mãe aceitou quando aquela senhora te ofereceu em troca de um repolho! — Natalie cantarolou do outro lado da linha. Todo o ano era uma diferente. — Beijo, mana. Aproveita!
Bianca guardou o celular com um sorriso no rosto. Pela primeira vez em semanas, conseguiu ter uma conversa de verdade com a irmã e, mesmo que tenha escolhido ocultar seus problemas, sentiu-se mais leve.
Depois da briga com Elisa, decidiu manter seus planos e ir ao centro sozinha para poder passar o dia longe do internato. Chorou a viagem de ônibus inteira, mas assim que chegou, parou em uma cafeteria para atender a uma ligação carinhosa de seus pais que durou quase vinte minutos e a fez se sentir um pouco melhor. Depois, começou a responder felicitações de seus amigos virtuais nas redes sociais, e só voltou a chorar porque suas amigas prepararam de presente um compilado com suas melhores jogadas no League of Legends, intercalados com seus áudios provocando os adversários. O vídeo ficou tão incrível que ela até postou em seu Twitter que estava abandonado desde o começo das aulas.
Durante o resto da manhã, Bianca passeou sozinha. Entrou em diversas lojas de quinquilharias para olhar tudo e não levar nada, usou o dinheiro que seus pais lhe deram de presente para comprar uma mochila de Sailor Moon e gastou o vale-presente de Natalie com 2 livros e 3 mangás novos (com certeza tinha dedo da Esther junto, porque sua irmã não tinha tanto dinheiro!). Depois de tudo isso, almoçou seu lanche favorito e tomou um milkshake.
Não era o aniversário perfeito, mas pelo menos estava um pouco mais feliz e a manhã horrível parecia ter acontecido há semanas. Infelizmente, ainda teria que voltar para o internato no final do dia, mas pelo menos podia tentar adiar ao máximo esse momento. E foi fácil... pelo menos, na primeira hora, pois perto das 14h o sol já estava torrando e seus pés começavam a doer. Estava começando a cogitar abandonar a ideia de voltar para o internato só depois do jantar, até ver o que lhe pareceu um oásis no meio do deserto.
Respirou aliviada quando trocou a tarde abafada pelo interior gelado daquela loja, cuja fachada anunciava Cyber Fever e o interior era iluminado por leds neon. Haviam várias mesas com computadores, algumas delas ocupadas por garotos com headsets falando alto durante uma partida de CS:GO. Apesar de serem raras hoje em dia, Bianca reconheceu o clima inconfundível de uma lan house.
— Precisa de ajuda, baixinha?
Só então se deu conta da presença do garoto de vinte e poucos anos mascando chiclete atrás do balcão. Seu rosto tinha marcas de acne e ele usava um boné de aba reta da Marvel.
— Hm, boa tarde — respondeu, pensando de onde vinha a intimidade para lhe chamar assim. Infelizmente, precisou ficar na ponta dos pés para conseguir conversar direito por trás do balcão alto: — Aqui é uma lan house?
— É um cyber café com computadores de última geração para games. Aqui na frente servimos doces e outros aperitivos. — Ele gesticulou para a entrada do local, a única parte bem iluminada, com mesas e cadeiras dispostas e uma televisão onde estava passando um episódio de Naruto. Na parte de trás ficavam os computadores, iluminados somente pelos leds coloridos nas paredes e nos periféricos. Bianca estreitou os olhos e conseguiu distinguir uma escadaria ao fundo. — Temos alguns computadores aqui embaixo e mais lá em cima, com um espaço com sofás, televisão e consoles para jogar.
Seu tom não era dos mais animados, explicando algo que provavelmente sempre precisava repetir, mas os olhos de Bianca brilharam com o entusiasmo de quem acabara de achar seu novo lugar favorito. Ela nem sabia que lan houses ainda existiam em 2020, mas não precisou pensar muito para entender que a maior parte do público deveria ser os estudantes dos internatos da região.
— E quanto é a hora? — Imediatamente abriu a bolsa e procurou pela carteira.
— 10 reais, mas o pacote com cinco fica por 30. — Ele apontou para a tabela de preços bem à vista no balcão. — Você joga?
Bianca franziu os olhos, desconfiada. Era agora que aquele cara lhe olharia com deboche, pensando que ela não podia jogar apenas porque era uma menina?
— Jogo sim.
— Massa. — Ele fez uma bola de chiclete e tirou outra tabela de preços debaixo do balcão. — Aqui tem umas condições especiais para jogos competitivos. Que jogo tu curte?
— Eu estava jogando Red Dead 2, mas sinto saudades de jogar LoL.
Então, deu uma olhada na tabela e deixou um sorriso malicioso escapar quando descobriu que era possível ganhar horas extras subindo seu rank em jogos competitivos durante o tempo na lan house. Boa nem começava a descrever o que Bianca era no League of Legends; estava, no mínimo, para excelente. Antes das aulas começarem, seu rank era Grão-Mestre, o que a colocava entre os melhores jogadores de todo o servidor.
Mas a melhor parte é que ela tinha uma conta secundária que criou para jogar com Natalie e esta ficara abandonada no Ouro. Bianca conseguiria subir facilmente o rank daquela conta e ganharia horas extras para jogar de graça por semanas!
O atendente estava lhe contando sobre como ele também jogava LoL, mas nunca foi muito bom, quando Bianca o interrompeu para colocar todo o resto do seu dinheiro no balcão e pedir por cinco horas em um computador.
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Nota da autora:
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Muito obrigada por tudo e nunca se esqueçam: o Madre Cordélia sempre estará de portas abertas para vocês!
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