Fim de Jogo ► Capítulo 1
Às vezes, Bianca desejava que fosse apenas um pesadelo.
Mas não importava o quanto cravasse as unhas na palma da mão, o refeitório do internato continuava ali, repleto de estudantes rindo e debochando dela.
Então, engoliu em seco e se esforçou para ignorar as batidas aceleradas do próprio coração enquanto se dirigia à fila do almoço. Não ergueu os olhos uma única vez. Ainda ouvia risadas, mas sabia que se deixassem que vissem como lhe atingiam, as brincadeiras ficariam piores e ela acabaria chorando. Como da última vez.
— Será que essa porca compra todas as calcinhas no brechó?
Trancou a respiração quando ouviu os cochichos de um grupo de garotas atrás dela, sem coragem de virar o rosto para ver quem falou. As gargalhadas que seguiram ecoaram na sua cabeça, mas se esforçou para não demonstrar qualquer reação, mesmo sentindo o rosto queimar de vergonha.
Ignorou as bandejas de comida, passando reto pelas opções de pratos quentes fumegantes e saborosos, e pegou um sanduíche natural embrulhado em papel filme. Apesar da garganta seca, não enfrentou a fila de estudantes para pegar bebida. Qualquer opção implicaria em passar mais tempo no refeitório — a ideia de sentar sozinha era péssima, mas pior seria se precisasse dividir uma mesa com outras garotas
Bianca saiu da fila somente com seu sanduíche em mãos e seguiu em direção à saída, ainda sem erguer os olhos. Precisava passar pela humilhação de atravessar todas as mesas até se ver longe daquele lugar sufocante. Um dia, independente da situação, teria cruzado o salão com o corpo ereto e confiança estampada no rosto, mas a Bianca capaz de desempenhar tal feito já era apenas uma memória. Quando ouviu outra menina debatendo propositalmente alto com as amigas se o seu tamanho era GG, a vontade de chorar voltou com força.
— Bi, aqui!
Olhar foi um reflexo que não conteve, porque não esperava um comentário ruim daquela voz. Viu uma garota da sua idade, outra terceiranista, baixinha e de ascendência coreana, com olhos grandes e bochechas redondas. Diferente das outras, ela tinha um sorriso no rosto.
Elisa Hae era a única menina daquele colégio que chamaria de amiga, mesmo que dividisse uma mesa de refeitório com pessoas que Bianca detestava. Tentava ignorar cada comentário, mas todos eram marcados a ferro em sua memória. "A de hoje também está rasgada?" foi um dos vários que ouviu no curto período de tempo em que permaneceu na fila do almoço. Não precisou olhar para reconhecer a voz de Nicole Molina, a garota branca de cabelos acobreados, autora da maior parte do bullying, que no momento sentava bem ao lado da sua amiga.
— Quer comer com a gente hoje? — O sorriso de Elisa era inocente, mas fez o sangue de Bianca ferver.
Tentou evitar a todo o custo, mas foi involuntário passar os olhos pelas outras garotas na mesa. Ao lado de Nicole, estava Marcela Oliveira, a primeira a perceber quando a barra da sua saia ficou presa no cós. Ao invés de avisar, fez com que Bianca se virasse para toda a sala ver sua calcinha. Do outro lado, Ingrid não disfarçou os risinhos depois de cochichar algo com Vanessa. Emily Beaumont sequer reagiu à sua aproximação, olhando para o celular sob a mesa enquanto ignorava o prato de comida intocado. Para ela, Bianca devia ser menos que um inseto com o qual suas amigas gostavam de brincar.
Não havia lugar sobrando na mesa.
Elisa continuou:
— Arrasta uma cadeira e...
— Não vai dar, Lisa — cortou. — Preciso terminar um trabalho, vou comer no quarto mesmo.
Era humilhante falar aquilo porque qualquer um saberia que era mentira. Não era como se as outras alunas esperassem que Bianca sentasse ali, junto com as garotas que faziam bullying com ela diariamente, e comesse quieta. Sentia ainda mais raiva de Elisa por sugerir aquilo.
Não ficou para ouvir outro argumento que tentasse a convencer e deu as costas, ignorando as risadinhas. Podia imaginar como seu rosto já estava vermelho àquela altura.
Quando finalmente cruzou as portas duplas de madeira do refeitório, apressou o passo pelo pátio do internato. Até mesmo a tarde ensolarada parecia querer rir dela.
Lembrou-se da alegria que sentiu há algumas semanas quando viu pela primeira vez os edifícios de aparência clássica, com suas paredes repletas de trepadeiras, entre caminhos de pedra que serpenteavam pelos extensos campos arborizados. Por um ano, conhecera-os apenas pelas histórias que sua irmã mais velha lhe contava e sonhou acordada inúmeras noites com a sua vez de estudar lá.
Hoje, os muros de pedra que cercavam o colégio mais lhe pareciam fortificações de uma prisão.
Sentiu algo quente escorrer pelas bochechas e percebeu que estava chorando. Aquela paisagem de tirar o fôlego era uma lembrança irônica de sua infelicidade e servia apenas para contrastar com seus sentimentos cinzentos. Aquele era para ser o seu ano dos sonhos, como foi para a sua irmã...
Natalie Conceição se formou no ano retrasado, a primeira das irmãs a estudar no exclusivo internato feminino Madre Cordélia. A oportunidade veio junto com a promoção que o pai recebeu, pois a presidente da empresa era também irmã da ex-diretora do colégio. As filhas receberam duas bolsas de estudo para o terceiro ano, mas não puderam estudar juntas porque Bianca Conceição, que faria 18 em alguns dias, era dois anos mais nova que Natalie — e, mesmo com a recente promoção, seria impossível para seus pais arcarem com a mensalidade estratosférica do colégio
Desde o começo, Bianca soube que não tinha nada a ver com aquele colégio, afinal não vinha de família abastada, nem tinha um sobrenome poderoso. Mas então, lembrava de como Natalie conquistou seu lugar naquele internato, roubando o coração da filha da antiga diretora e se tornando uma das alunas mais populares... Para ela, pertencer ou não àquele mundo era irrelevante. Natalie era capaz de derrubá-lo aos seus pés.
O problema sempre foi o nome antes do "Conceição". Natalie era brilhante como um raio de sol, enquanto Bianca... era apenas Bianca.
Sempre foi assim, desde que eram novinhas. Como quando sua mãe as colocou em uma colônia de férias. No primeiro dia, as crianças disputavam para ver quem teria Natalie em seu time, enquanto Bianca fingiu que preferia ficar sozinha desenhando para não passar pela humilhação de ser a última escolhida. Ou quando a irmã não hesitou em puxar o cabelo de uma menina no parquinho até que ela devolvesse o brinquedo que havia roubado da caçula. Mesmo em casa, onde fingiam se detestar como gato e rato, trocando ofensas como quem dá bom dia, bastava qualquer briga entre Bianca e a mãe Sônia para que Natalie imediatamente entrasse em seu quarto com pipoca de microondas, uma barra de chocolate e a noite livre para assistirem comédias românticas juntas.
Limpou as lágrimas com as costas da mão no momento em que passou pela porta do dormitório. A presença de Natalie sempre parecia acompanhada de um holofote natural, mas Bianca nunca se importou em ser ofuscada — o problema mesmo era se ver sozinha, perdida no escuro.
Agradeceu pelo dormitório sempre ficar vazio no horário de almoço e não encontrar nenhuma preceptora lá. No seu primeiro dia, ficou até sem palavras com a magnitude do local: o prédio dispunha de uma sala de estar com vários sofás e pufes confortáveis, uma televisão gigante e até lareira! Havia também uma sala de estudos com fileiras de computadores, uma cozinha particular e banheiros comunitários (apesar de cada quarto também possuir o seu). Cada ano do ensino médio tinha um dormitório próprio, então Bianca o dividia apenas com outras alunas do terceiro ano.
Seu quarto ficava no térreo, o que, nas palavras de Natalie, era melhor pois dava para escapar depois do toque de recolher apenas pulando a janela. Bianca soltava um riso de escárnio sempre que se lembrava do quanto ficou animada com a possibilidade de sair escondida. Afinal, passava a maior parte do tempo sem sequer ter vontade de sair da própria cama.
Foi onde se sentou depois de entrar no quarto vazio. Haviam duas camas em um cômodo espaçoso, com escrivaninhas, mesas de cabeceira e três armários para cada garota. Seu lado do quarto estava perfeitamente organizado, mas nunca tanto quanto o de sua colega, que sequer deixava qualquer decoração que pudesse sugerir um traço de personalidade à mostra — diferente dos pôsteres de jogos que Bianca tinha espalhados pelas paredes, ou sua action figure de Madoka Magica que a observava da mesa de cabeceira. Detestava Emily Beaumont, com quem nunca trocara mais de duas palavras e que fazia parte do mesmo grupo de garotas que lhe atormentavam. Emily era tão linda quanto era desprezível, com sua pele pálida e cabelos longos, tão escuros quanto seus olhos.
Sentiu mais uma vez o familiar impulso de se olhar no espelho e encarar seus cabelos castanhos nem tão brilhantes, a pele branca nem tão impecável ou sua figura nem tão alta ou magra. Não era nem que se achava horrorosa (apesar de não se importar caso repentinamente crescesse alguns centímetros, perdesse a barriga ou suas estrias desaparecessem...), mas seu hábito de ficar se comparando com outras meninas havia piorado muito desde que o bullying começou, o que não contribuia nada para a sua já prejudicada autoestima.
Quando desistiu de lutar, encarou com desgosto seu reflexo. Seu rosto estava vermelho, com caminhos úmidos de lágrimas brilhando sobre bochechas redondas. Arrastou os olhos até os joelhos, que era onde terminava a saia horrorosa do uniforme e fungou.
Em meio à miséria, encontrou vontade de sorrir ao se lembrar como Natalie, que agora cursava moda, também reclamava do uniforme e das demais regras do internato. Então, pensou em algo que tornaria aquele inferno mais suportável e buscou na bolsa o celular que costumava ser de Esther, a namorada da sua irmã e também ex-aluna.
Além de renomado e exigente, o Madre Cordélia também era um internato muito tradicional. O manual de conduta se tratava de um livro encadernado em couro com quase cem páginas de orientações sobre o que as alunas podiam ou não fazer. Dentre elas: o uso do uniforme dentro das dependências do colégio era obrigatório (composto pela camiseta social com o brasão da escola, uma saia até o joelho e mocassins); maquiagem, tal como demais acessórios, não podiam ser usados durante os dias de aula; o uso dos celulares era estritamente proibido, sendo necessário deixá-los na secretaria e retirá-los apenas aos finais de semana; além de mais uma infinidade de regras.
Apesar da maioria das alunas se esforçar para andar na linha, as regras sempre eram quebradas. Sua amiga Elisa, por exemplo, não usaria a saia no comprimento correto nem se a sua vida dependesse disso, e praticamente todas as alunas entregavam um celular secundário na secretaria enquanto mantinham os seus escondidos.
Bianca não tinha dinheiro para simplesmente ter um celular secundário (e sua mãe jamais permitiria), mas depois que se formaram, nem a irmã ou a cunhada tinham uso para seus aparelhos secundários, então Esther deu a ela o seu antigo celular como presente de Natal. Diferente das irmãs Conceição, a filha da ex-diretora era riquíssima como a maioria das outras alunas da instituição.
Era impossível não se sentir sozinha quando destoava tanto, mas ninguém poderia lhe entender melhor que sua irmã! Bianca procurou pelo nome de Natalie em suas mensagens (mensagens não era uma forma de dizer Whatsapp: o colégio tinha bloqueador de 4g e mesmo com celulares, as alunas só podiam se comunicar por SMS). Sua última conversa havia sido no sábado passado:
Bianca
Oi, posso te ligar mais tarde?
Natalie
hoje não vai dar Bi, tenho um trabalho para entregar
Bianca
E desde quando você sabe ler?
Natalie não respondeu. Bianca sabia que ela não ficara chateada ou coisa do tipo porque estavam acostumadas a trocar provocações. Recentemente, a irmã não tinha tempo para nada. Estava no terceiro semestre da faculdade, conciliando os estudos, o estágio e as encomendas de roupas que fazia para amigos e família.
"Mas agora é realmente importante" Bianca pensou enquanto apertava para chamar o número da irmã. Sempre que se sentia sozinha ou triste, sabia que sempre podia encontrar um pouco de conforto na sua família. E aceitaria qualquer apoio que conseguisse naquela semana particularmente miserável.
Segurou o celular entre o rosto e o ombro e abriu seu sanduíche enquanto esperava, mas Natalie não atendeu e os toques da chamada foram substituídos por uma voz feminina informando que não era possível completar a ligação. Bianca nem percebeu como sua perna balançava de nervosismo. Natalie sempre atendia, então talvez apenas não tivesse visto. Bianca voltou à caixa de mensagens:
Bianca
Mana, estou meio mal hoje, será que podemos conversar?
Comeu todo o seu sanduíche enquanto encarava o símbolo de envio completo, mas ele não ficou azul.
"Nini, desculpa se você estiver ocupada, podemos falar outra hora."
Sentiu-se mais sozinha do que nunca enquanto digitava, o calor das lágrimas voltando. Limpou o rosto com a mão e continuou escrevendo, sem enviar a mensagem:
"É só que está sendo muito difícil aqui. As outras alunas me odeiam e estão sempre debochando de mim."
Era tão humilhante falar sobre aquilo... principalmente com alguém tão incrível quanto a sua irmã, que nunca passaria por algo assim. Será que ela também sentia vergonha de Bianca? Demorou mais para digitar, pois suas mãos começaram a tremer.
"Na semana passada eu me arrumei correndo depois da aula de dança e não percebi que a minha saia ficou toda enrolada, e minha calcinha ficou aparecendo. Era velha e todo mundo viu e começou a rir de mim por causa disso... Agora elas ficam falando que eu não tenho dinheiro para comprar calcinhas ou que sou gorda demais e só as de velha devem caber em mim."
As lágrimas começaram a prejudicar sua visão enquanto lembrava do ocorrido. Queria largar o celular e parar de digitar, mas aquela também estava sendo a única conversa que teve com outra pessoa durante a semana (e nem estava sendo uma conversa, na verdade). Bianca não tinha mais ninguém.
"Eu não sei o que eu fiz, Nini, mas desde o primeiro dia elas são horríveis comigo! E o pior de tudo é que até a Lisa anda com elas... mesmo que ela não deboche de mim, você acha que é certo uma amiga fazer isso??
A garota que divide o quarto comigo nem olha na minha cara, eu não tenho nenhuma amiga para fazer trabalho em dupla e estou comendo no quarto há duas semanas porque tenho vergonha de sentar sozinha no refeitório. Quando você contava, isso aqui parecia um paraíso, mana. Por que comigo é tão diferente?
Eu não sei o que tem de errado comigo! Eu odeio estudar aqui e a pior parte é que nem posso falar isso pro pai e pra mãe porque eu seria ingrata se pedisse pra trocar de colégio!"
Bianca continuou escrevendo, colocando para fora todas as coisas horríveis que falaram sobre ela na última semana. Contou como a pior parte era que estava começando a concordar com elas. Quando digitou que talvez fosse mesmo uma porca patética como tanto lhe chamavam, precisou largar o celular para abraçar os joelhos e permitir que toda dor que sentia escorresse em forma de lágrimas.
Chorou até começar a sentir a enxaqueca se aproximando, sua única companhia nas últimas semanas. Vários minutos se passaram até que as batidas descompassadas de seu coração se acalmassem.
Fungou mais algumas vezes enquanto secava os rastros de lágrimas com o lençol. Talvez já estivesse atrasada para a aula, mas continuou deitada enquanto tateava a cama até recuperar seu celular para conferir o horário. Suas mãos ainda tremiam quando o segurou em frente ao rosto e seus olhos voaram para a última linha do texto que não havia enviado:
"Eu só queria ser igual a você."
Antes de levantar da cama, Bianca respirou fundo e apagou toda a mensagem. Provavelmente Natalie sequer teria tempo para ler tudo aquilo, de qualquer maneira.
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Nota da autora:
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