Capítulo 20
Solitária Virgínia passou o dia perambulando pela casa, ela não fazia ideia de onde estava seu marido. Havia uma pessoa que cuidava da casa e de sua medicação, mas ela tinha a impressão de que a moça não gostava dela, não sabia em que momento se tornara uma estranha em sua própria casa que não sabia mais onde ficava nem os talheres.
Naquele dia em especial sentia-se mais exausta e deprimida que o normal, seria o aniversário de suas sobrinhas gêmeas se estivessem vivas, elas estariam fazendo vinte e nove anos, e essa lembrança a deixava mais chorosa e por essa razão seu marido nunca passou esse dia com ela, mesmo antes de Dália morrer, ele se ausentava por todo o dia, antes daquela trágica tarde ele dizia que naquele dia ela só se importava com a irmã e a sobrinha e, depois da trágica morte de sua pequena princesa, ela só chorava, depois que descobrira que a própria irmã matou a pequenina aquele dia e o dia da morte dela ficou insuportável para ela eram duas datas que se pudesse dormiria o tempo todo, e estranhamente eram os dias em que parecia que ela estava mais lúcida, enfim, ela jamais poderia contar com ele naqueles dias tão tristes.
Sentada na varanda olhando para o nada pela milionésima vez , olhou o panfleto em sua mão, era um convite para o congresso dos jovens na igreja local. Se recordava quando o casal de pastores chegou à cidade com sua filha linda, eles causaram, desde que chegaram Granville nunca mais fora a mesma, gostaria que o poder de mudança deles chegasse até ela, e sua vida também não fosse mais a mesma, ficara tentada a ir a esse congresso desde o momento em que a jovem sorridente lhe dera o convite pela grade do portão, ela não tinha acesso a chave desde a última vez que fugira e fora parar no hospital aos cuidados da enfermeira Samara, sorriu ao se lembrar da jovem de olhos negros e expressivos, que estava deixando o Caetano louco da vida querendo saber notícias suas, fazia muito tempo que ninguém se preocupava assim com ela, a última pessoa a fazer isso foi o Héctor, sentiu a dor física tão familiar no peito toda a vez que pensava nele.
- "Agora é definitivo, você está mesmo morto e eu nunca mais vou te ver" – Pensou com as lágrimas molhando seu rosto. Pensou que iria morrer quando Caetano lhe dissera que ele estava morto, morrera acreditando que ela pensava que ele fora capaz de matar a Olívia.
Me perdoe, por não ter tido forças para lutar e provar sua inocência, ou a minha, eu já nem sei. Talvez eu também devesse morrer. Afinal o que é mesmo que eu estou fazendo aqui? Por dentro eu estou morta desde aquela fatídica noite" – Pensou ainda, olhando as lágrimas caindo sobre o panfleto.
Anos antes:
Virgínia adentrou o laboratório, os olhos brilhando enquanto observava a concentração dele em algumas anotações. Era tão lindo! Suspirou tola e apaixonada, ele tinha o rosto jovial, mas a expressão era a de um homem que já tinha vivido muita coisa para seus dezenove anos.
Seus olhos curiosos se afastaram do jovem que povoava seus sonhos e se fixaram nos equipamentos usados para fabricação, pensando na infinidade de coisas que ele produzia enquanto passava os dias, enfurnado naquele lugar.
- Se interessa por medicamentos? — sentindo os belos olhos acinzentados sobre ela. Envergonhada deu dois passos para trás um tanto receosa. Era a primeira vez que ele dirigia a palavra a ela.
- Confesso que sim, tenho uma fascinação por coisas complexas e acredito que o trabalho de um farmacêutico seja bem complexo.
- Em nossas mãos está o poder de ceifar ou salvar vidas, um erro pode ser fatal então sim, é bem complexo. — disse ele, o português impecável como tudo nele.
Tudo nele parecia ser extremamente precoce, a maturidade, o tom de voz ao se dirigir às pessoas, e tudo nele a encantava, mas havia um detalhe que talvez apenas ela percebesse, ele tinha o olhar vazio, não era triste nem irado, apenas vazio, sem nenhuma expressão ou emoção, ela já o vira se adaptar a qualquer situação rapidamente, como quando a única amiga de seus pais o visitava, ele se adequava ao que as pessoas esperavam dele, sem de fato se mostrar, ela pensava que ele temia demonstrar o que sentia como se isso fosse destruí-lo.
Ela o apelidara de camaleão, alguém capaz de se camuflar sem nunca se mostrar de verdade. Lembrou-se do álbum de fotos empoeirado que encontrou da família dele, onde o pequeno Héctor, no auge de seu primeiro aninho de vida sorria esbanjando a tranquilidade e inocência da primeira infância, com muita tristeza percebeu que a medida que passava as fotos, o sorriso diminuía e o brilho no olhar apagava, até que cessou de vez. Por isso o chamava de camaleão, esperava que ele jamais descobrisse isso, ela realmente precisava do emprego e mesmo que ele jamais correspondesse aos seus sentimentos ela estava bem em apenas cuidar dele, acreditava que a capacidade de camuflar os sentimentos viera da necessidade de se adequar ao ambiente de frieza que as fotos mostravam dos pais para com ele, pois obviamente eles eram muito carinhosos um com o outro, mas não com o menino.
Ele não precisava dizer, ela sabia que uma escolha tinha sido feita anos antes, continuar sofrendo com a indiferença dos pais ou se fechar, não sentir mais nada por nada ou ninguém, ouvira sua história de uma das babás, quando ouviu pensou que a mulher estivesse exagerando, mas quando encontrou o álbum percebeu que na verdade a mulher foi muito condescendente com os antigos patrões, mas jamais revelaria isso a quem quer que fosse, nem mesmo ele precisava saber que ela tinha conhecimento disso.
Selma a antiga babá trabalhou com a família até os três anos de Héctor, sendo demitida por Leônidas, que julgava desnecessária a presença de uma mulher que ficasse o tempo inteiro ao lado do filho, pois já estava bem grandinho para isso, e desde então, a criança passou a ficar sozinha boa parte do tempo, sem nenhum afeto. Selma ainda lhe dissera que nessa época o garoto descobriu que não era filho de Violeta e que por isso a mãe o tratava tão mal, e Virgínia se perguntava por que o pai o tratava tão mal.
- O senhor pensou em trabalhar com outra coisa? Quer dizer, teve alguma vontade na infância de mexer em outra área completamente diferente dessa? — tentando dissipar o aperto que sentiu em seu próprio peito ao lembrar-se da conversa de semanas antes com a antiga babá, ela usou a curiosidade para ver se ele se abria um pouco.
- Deveria? — pelo tom de sua voz não dava para saber se estava farto de ouvi-la ou realmente curioso, por algo que nunca pensara realmente.
- Acho que fui invasiva, desculpe. — era um território misterioso então não sabia onde pisar, como agir.
Sem esperar que ele falasse alguma coisa ela deixou o laboratório quase correndo, percebeu que não estava se apaixonando apenas pelo gênio de beleza cativante, rodeado de mistérios, mas pelo homem que se escondia por trás dele, gostaria de conhecê-lo verdadeiramente, mas nunca teve essa oportunidade.
Dias depois de ela ter estado no laboratório dele a irmã apareceu lá e Héctor se encantou por Olivia e ela não teve mais a menor chance de conquista-lo. O casamento de Olivia e Héctor aconteceu muito rápido, questão de três meses depois que se conheceram, Virgínia compreendia que a irmã era linda e mais espontânea que ela, mas não entendia como o Héctor sempre tão centrado se envolveu tão rapidamente, imaginava que seu lado irracional se apegava muito rápido e fácil, então a paixão foi instantânea, quando conheceu sua história dramática, e soube de tudo que viveu teve a certeza de que queria protegê-la pelo resto da vida, e deixou toda a sua racionalidade de lado, Virgínia ficou triste por perdê-lo, mas sabia que a irmã jamais conheceria alguém tão maravilhoso quanto o Héctor, e tudo o que ela queria era que os dois fossem felizes, ela os amava mais que tudo, e para que a irmã fosse feliz concordou em se casar com o amigo dela, ela se sentia insegura pelo afeto que Virgínia nutria pelo Héctor e apenas por isso ela se casou tão rapidamente com Caetano.
Olívia engravidou no primeiro mês de casada, e mesmo com todas as mudanças nas vidas dos dois, Héctor queria Virgínia por perto, pela amizade que mantiveram. Um dia, Olívia disse que sairia para dar uma volta com Cíntia.
Foi naquele dia que o último momento de interação mais íntima dos dois aconteceu, e ele mostrou a ela um lado que a mesma não conhecia algo que em todo aquele tempo não esqueceu. Além dela trabalhavam mais dois empregados, um casal que durante aquele período teve uma filha, o casal precisou sair deixaram a menina sob os cuidados dela, seu sonho era ser mãe, mas parece que Deus não queria lhe realizar. Era um prazer cuidar da pequena Ágata, ela tinha apenas um ano e estava naquela fase gostosa de descobertas.
Em dado momento a menina brincava com alguns utensílios da cozinha, Virgínia distraiu-se ocupada com seus afazeres, e não percebeu quando a pequena pegou um copo e começou a correr com ele, resultando em uma queda quebrando o copo, cortou uma das mãos no vidro, ao ouvir o choro da pequenina, imediatamente deixou o que estava fazendo e correu para acudi-la.
- Oh, princesa desculpa a tia! — Virgínia não aguentou e começou a chorar junto com a pequena ao tentar tirar o vidro de suas mãos e perceber que a menina ficava cada vez mais agoniada e chorando.
Héctor surgiu, presenciando a cena, em seguida, retornou com um kit de primeiros socorros, e como se tivesse feito aquilo a vida toda, sentou-se no chão ao lado da criança.
- Acalme-se Virgínia, ela vê você chorando e fica com mais medo ainda. E posso pegar sua mão pequenina? – perguntou sério encarando o rostinho banhado por lágrimas, ainda chorando a criança estendeu-lhe a mãozinha.
- Eu vou limpar os vidros. Ai meu Deus, o que eu vou fazer? O que eu digo aos pais dela? – perguntou exasperada limpando os cacos enquanto Héctor pegava a criança nos braços e a levava até o sofá.
- Você estava junto com ela? – perguntou calmamente.
- Claro! Eu estava limpando a mesa, quando percebi, ela já tinha quebrado o copo e machucado a mãozinha.
- Acidentes acontecem e você não tem motivos para se preocupar, basta dizer que foi um acidente. – disse com a frieza habitual. Porém as ações posteriores fariam qualquer um que não o conhecia pensar que se tratava de um homem comum cuidando de uma criança.
- Ágata, eu prometo que não vou demorar ok? — ele parecia desconfortável por estar conversando com uma criança que claramente não compreendia nada do que ele falava.
Ela parou o que fazia e ficou olhando para ele, ainda suspirava por ele, e todos os dias sentia-se imunda por amar o esposo de sua amada irmã e não conseguir amar seu esposo que era sempre tão gentil e carinhoso da mesma forma, sentindo o rosto arder limpou o chão, e se aproximou deles, ele já terminava de limpar a ferida com o soro fisiológico, usando uma gaze seca para enxugar, borrifou um spray antisséptico, cobriu o ferimento com um curativo logo em seguida.
- Virgínia, por favor, a pegue. — pediu ele guardando o kit.
- Você vai ser um ótimo pai! — ela pegou a menina. — Héctor, se eu te fizer uma pergunta você poderia ser sincero comigo? É uma dúvida que eu sempre tive em relação a você.
- Sim. – Respondeu olhando-a nos olhos.
- Com quantos anos você perdeu seus pais?
- Eu tinha 15 anos.
- A morte deles foi próxima uma da outra?
- Sim. a minha mãe adoeceu em uma viagem aos Estados Unidos estava em um cruzeiro, segunda lua de mel, planejavam ter outro filho, ela faleceu assim que chegou. Tuberculose. Meu pai arrasado viajou, mas voltou dias depois, mais ou menos uns três meses depois ele sofreu um infarto, morreu em meus braços.
- Você nunca se sentiu sozinho, pelo menos antes da chegada da Olivia dentro dessa casa? Desculpa, mas é uma vida um pouco solitária para alguém tão jovem.
- A solidão nunca foi problema para mim Virgínia, até gosto dela. Eles eram meus pais, o luto é um sentimento fora à parte, mas ficar sozinho não chegou a me afetar, até porque eu já vivia sozinho quando eles eram vivos. — respondeu, e o coração dela doeu. Abriu a boca para falar que sentia muito quando Olivia adentrou a casa, se aproximando do marido olhando furiosamente para Virgínia que ainda estava com a criança deitada em seu ombro, como quem protege seu território sentou ao lado do marido no sofá o abraçando.
- Pensei que estivesse trabalhando, meu amor. — disse dengosa. O beijou profundamente deixando constrangidos tanto a ele quanto Virgínia esta se virou para sair. – Virgínia já que você está com tempo para ficar conversando com o meu marido, faz um chá de camomila para mim, por favor! – Virgínia se virou para a irmã surpresa com o timbre de sua voz, ela era sempre tão gentil, mas o sorriso e o olhar brincalhão dela dissipou a apreensão de Virginia.
- Eu estava ocupado. – disse Héctor se afastando. - Na realidade eu preciso voltar. É melhor você descansar um pouco, já andou demais por hoje, e o médico exigiu prudência nessa gravidez. — alertou ele. Virgínia concordou com o cunhado a irmã era muito imprudente com aquela gravidez.
- Você está sem paciência? Eu fiz alguma coisa errada? — perguntou ela, toda fragilizada, às vezes Virgínia tinha a impressão de que a irmã fazia todo aquele melodrama apenas para fazer com ele se sentisse culpado.
- Não estou sem paciência e você não fez nada de errado, por que está me perguntando isso?
- Você ouviu o jeito que falou comigo? — falou de uma maneira que até Virgínia que ouvia da cozinha sentiu-se culpada por ter pensado mal dela segundos antes.
- Pedir para você se cuidar agora é ser arrogante Olívia?
- Não é a preocupação que me magoa, mas a forma que você fala, será que poderia ser um pouquinho menos frio quando se refere a mim e aos seus filhos que estão na minha barriga, me deixando gorda e feia? O jeito que você fala me faz entender que eu estou colocando os bebês em risco propositalmente, que eu estou cometendo erros e eu me sinto mal como mãe.
Virgínia levantou a cabeça de onde estava poderia vê-lo e por um segundo viu toda a vulnerabilidade presente no rosto dele e imaginou que as feições no rosto da irmã eram de destroçar um coração para deixá-lo desestabilizado daquela maneira.
- Me desculpa Oli, eu não quero que você pense isso é que eu não tenho muito jeito para me expressar mesmo e você sabe, além disso, de onde você tirou que está feia e gorda? Você está linda!
- Eu só espero que você não trate seus filhos assim, como se fossem seus funcionários, como você faz comigo às vezes.
- Eu vou me esforçar para ser um marido melhor e um pai melhor do que os que nós tivemos. – disse a beijando.
- Assim eu espero. – respondeu sorridente.
- Eu realmente preciso voltar ao trabalho, eu sinto muito.
- Tudo bem. Mas o que aconteceu que você resolveu sair do seu lugar favorito?
- A Ágata se feriu e a Virgínia ficou nervosa, eu vim ajuda-la.
- E cadê os pais dela? – Perguntou se levantando e olhando na direção da irmã pela primeira vez.
- Eles precisaram sair, e não podiam leva-la. – respondeu Virgínia.
- E desde quando pagamos você para ser babá?
- Olívia por que você está falando assim com a sua irmã? – perguntou Héctor surpreso.
- Porque se a gente não fala sério com ela, todo mundo monta em cima dela, ela não sabe dizer um 'não'. – respondeu mais amena. Ele encarou Virgínia que assentiu e sem dizer nenhuma palavra subiu as escadas rapidamente voltando para o laboratório.
- Não vejo a hora de me livrar dessa gravidez, esses hormônios estão me matando. – disse se jogando no sofá, Virgínia lhe trouxe o chá.
- Você precisa ter paciência.
- Ele realmente saiu do laboratório apenas para te ajudar? – perguntou a encarando, Virgínia ficou corada.
- Na verdade foi para ajudar a Ágata que estava chorando.
- Eu detesto essa menina. – disse irritada.
- Ela é só uma criança.
No dia seguinte Virgínia e os pais de Ágata foram despedidos da casa de Héctor.
Com a visão embaçada pelas lágrimas, Virgínia viu a moça entrando com várias sacolas deixando o portão aberto, sem pensar saiu correndo.
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