Capítulo 19.
Conforme solicitado por Luan, pontualmente o presente chegou ao apartamento de Açucena. Ela acordou com a chegada da encomenda, por isso precisou improvisar um look rápido. Pegou a cesta e deixou em cima da mesa, cuidando primeiramente da higiene matinal e logo em seguida do devocional.
Colocou o louvor tema do congresso de jovens para tocar na televisão da sala, enquanto lia alguns salmos, após a leitura, concentrou-se no presente, temia no íntimo, tratar-se de outro presente macabro, mas não restavam dúvidas de que vinha da confeitaria.
Procurei deliverys de sushi matinais, como não encontrei, tomei a liberdade de mandar esse presente para você. Espero que goste. - Era o que dizia o cartãozinho.
Sorrindo ela fotografou o embrulho antes de verificar o que tinha dentro. Enviou a foto aos pais e fez o mesmo com Luan.
- Procurou mesmo? Não creio! — enviou a mensagem, ciente de que era humanamente impossível ele ter feito aquilo.
- Não. Mas eu quis fazer charme. — respondeu imediatamente, como se aguardasse a resposta com ansiedade.
Ela comeu o tanto que aguentou dos doces, separando metade do bolo de ninho com nutella para dividir com Luan e Samara, não conseguiria comer tudo nem se quisesse. Ainda assim foi uma moça bem egoísta e guardou as trufas, os pães de mel e os brownies na geladeira, teriam que matá-la antes de tirar algum daqueles doces dela!
- Amei o presente! Já sabe que têm alternativas além do sushi. — enviou a mensagem e ele respondeu com um emoji, deixando-a toda boba.
- Vai arrumar a igreja ou o Héctor te contratou para trabalhar? — ele quase podia vê-la revirando os olhos enquanto escrevia a mensagem.
- Eu começaria hoje, mas parece que ele ficou sabendo do congresso e me liberou. Vamos lá çu, você tem que concordar que foi uma atitude nobre, não é todo chefe que faz isso. — Luan enviou a mensagem e ficou no aguardo de uma resposta feroz.
- Eu estou começando a ver o Héctor como um homem doente, talvez eu consiga até sentir pena dele. Por isso vou começar minha marcação em cima dos outros suspeitos, encarando ele como realmente é, um homem doente, desequilibrado, que está buscando um culpado para o sofrimento que teve na vida. O que não significa que eu vá me aproximar, ao contrário, eu me manterei afastada para o nosso bem. Que ele encontre a paz dele, e que possa se perdoar por alguma culpa que carregue, mas ainda assim, longe de mim. — aquele texto finalizaria o assunto, Luan não argumentou.
- Terei o prazer de encontrar a senhora intérprete durante a arrumação da igreja hoje? — ela sorriu ao ler.
- Sim, meu futuro pastor! Eu vou só dar um jeito na minha casa e na minha cara, colocar meu reboco de rosto e já, já, nos encontramos. — os dois deram sorrisos largos ao encerrar a conversa.
...
A igreja inteira se reuniu para apoiar os jovens na ornamentação do templo para o congresso, os que não trabalhariam naquele dia passariam o dia inteiro lá então cada um ajudou com o que deu. Alguns foram se juntando e com um pouco do que tinham em casa foram até a cozinha do local, preparando as refeições.
Contrariando as expectativas da maioria, Megan e Brian se juntaram a eles na arrumação, por mais difícil que fosse a compreensão do inglês. A intérprete estava à altura da animação deles, deixando-os cada vez mais entusiasmados.
- Ela fica bonita falando em inglês né? — provocou Isaac.
- Linda! — Luan concordou, corando na mesma hora. — Isaac, vai trabalhar vai? Vai fazer tua parte! — o jornalista sorriu.
- Por que você não fala logo para ela?
- Quando o Pai dela me der permissão eu falo. — respondeu Luan.
- Você quer esperar a permissão daquele cujo nome não pode ser mencionado? Vai morrer solteiro! O Jefferson gosta de ti homem, aproveita que ela não reconhece o pai biológico e já passa na frente. — aconselhou ele.
- Eu quero ver se tu vai ser macho de chamá-lo por esse apelido se um dia aparecer na tua frente! — um sorrisinho travesso escapou dos lábios de Luan.
- Eu chamo! Tu duvidas? — Luan fez uma pausa, deixou o rodo de lado e sentou no banco ao lado do amigo.
- Não, eu não duvido. Você é uma criatura escabrosa e com certeza é capaz de tudo! — Isaac sorriu orgulhoso. — Eu estou falando de Deus cara pálida, ainda não é hora de me declarar para ela. Quando for o momento eu vou saber, por enquanto, não dá. — a réplica do amigo deixou o jornalista sem palavras.
— É meu amigo, Deus não escolheu você à toa! — afirmou Isaac, visivelmente tocado pelas palavras de Luan.
...
Naquele dia Héctor estava mais estressado que o normal, para não fazer algo do qual pudesse se arrepender mais tarde, do tipo falando algo que pudesse ofender seus funcionários ele resolveu dar uma caminhada na praia para espairecer. O local estava deserto, provavelmente por ser uma sexta-feira, além disso, as pessoas estavam envolvidas com o evento na igreja, não se falava em outra coisa na cidade.
Abriu um pequeno sorriso ao ver a figura ao longe, observando a imensidão azulada. Um arrepio percorreu sua espinha ao se lembrar das palavras de Açucena, referentes à morte de Dália.
- Se você não me conhecesse poderia dizer que eu estou te seguindo, não é? — disse delicadamente, se aproximando dele.
- O que faz aqui Samara? É perigoso para você estar andando por aí desacompanhada, não deveria estar com os outros no evento? — ele já a conhecia o suficiente para saber que ela percebera o cansaço em voz, ainda assim ele se esforçou para parecer indiferente.
- Não estou desacompanhada, você está aqui. – disse displicente. - Eu estava trabalhando, por isso não pude ajudar com os preparativos para o evento, não podia deixar meus pacientes na mão. Respondeu fechando o cardigã.
- "Eu deveria leva-la para casa está ventando frio, vai acabar adoecendo, aliás, ela nem deveria estar aqui, mas é teimosa como uma mula" – pensou sorrindo por dentro. – "Até parecia minha filha". – Concluiu o pensamento se dando conta de que gostaria que essa moça forte e corajosa fosse de fato sua filha.
- Eu vim caminhar um pouco, aproveitar que as coisas estão tranquilas esses dias e espairecer.
- Sei! Espairecer na praia deserta? – perguntou com escárnio.
- Pois é e Deus é tão bom que colocou você aqui no momento em que eu estaria espairecendo para que nada aconteça comigo. – disse em tom de brincadeira.
Ele sabia que ela falava sério, se ela fosse outra pessoa lhe lançaria um sorrisinho como quem se sentia útil por ajudar, mas não queria envolvimento, mas não era mais o caso, ela insistira tanto em não deixa-lo em paz que ele já sentia sua falta quando não aparecia.
- Apesar de que, - ela o encarou profundamente, deixando-o constrangido, coisa rara de acontecer, - pela sua expressão, acho que é bem o contrário. – disse mantendo o olhar no dele.
Ele também manteve o olhar, ela gostava de se fazer de inocente, era vista por muitos como uma criatura frágil, ao menos era o ele que pensava pelo que ouvira e percebia que ela própria algumas vezes se sentia insegura, mas ele conhecia sua força, era capaz de ver coisas que ela não conseguia; para seu desespero o mesmo acontecia com ela, ela era capaz de ver através da fachada de homem insensível e grosseiro que ele criara, estranhamente estava orgulhoso por tê-la em sua vida, jamais imaginou que no momento em que decidiu ajuda-la, estava ajudando a si mesmo também.
- Seja específica Samara. O que você quer comigo e por que pensa que Deus te mandou aqui, sendo que eu e ele não temos nenhum tipo de relação? Não sou ateu, estou bem longe disso, acredito que o primeiro passo, para adquirir sabedoria é reconhecer que nós meros mortais somos frutos de algo muito maior, que merece o máximo de respeito, inclusive, eu não deveria sequer mencioná-Lo por não ter proximidade com Ele para isso. — ela sorriu.
- Vou responder a sua pergunta com outra. — disse suavemente, ele se preparou ela sempre ficava muito dócil quando estava aprontando alguma. — Você nunca quis alguém para te ouvir? Nunca se abriu para ninguém? Nunca permitiu que alguém te visse de verdade?
- Sim. Para a Olívia e foi a pior ideia que eu já tive em toda a minha vida. E não vou agir como um idiota e dizer que não vou me abrir mais porque o ser humano não merece confiança, e toda essa baboseira. Eu não confio nas pessoas não é por elas, e sim por mim. A única pessoa para quem eu me abri destruiu a vida da minha filha sendo filha dela também, e não vou dizer que destruiu a minha porque estou vivo, mas eu também tenho minha parcela de culpa por ter me deixado levar pelas emoções e ficado vulnerável diante dela. Eu nunca servi para isso Samara, sempre fui uma pessoa sozinha e deveria ter continuado assim, então sim, não vou mentir, algumas vezes, sim, eu desejo que alguém me ouça, mas certas coisas estão fora do meu alcance, não são para mim, e eu preciso deixar esse sentimento de lado e continuar vivendo. — ela engoliu em seco. — Não me olhe desse jeito. — repreendeu-a, no mesmo tom frívolo.
- Como? – perguntou olhando para o mar.
- Não preciso de piedade Samara, não precisa ficar assim. – respondeu tenso.
- Pelo menor carinho que existe dentro de você por mim, me deixa simplesmente ouvir você! Se você quiser, eu não digo nada, na verdade, eu não vou dizer nada, eu fico quietinha, e se você quiser nunca mais toco nesse assunto, por favor, me deixa te dar essa liberdade, como você tem me dado desde que a gente se conheceu. — pediu ela.
- Por quê? – perguntou a encarando. - Por que você insiste nisso mocinha? Por que acredita em mim, mesmo quando a minha própria filha não consegue? O que você vai ganhar com isso Samara? Por que não se afasta de mim e fica longe, como ela tem feito? Não estou desesperado por companhia, estou bem do jeito que estou; não precisa se importar tanto comigo. Você tem uma família, família essa que com certeza já te aconselhou a se afastar de mim. – disse sorrindo. - Não precisa se sentir em dívida comigo, fiz o que fiz por você e não me arrependo em momento nenhum, mas não precisa estar sempre por perto ou preocupada. Eu realmente estou bem. — concluiu voltando o olhar para o mar, não queria que ela percebesse que na verdade gostaria mesmo que ela não se afastasse.
Não era uma questão de estar mentindo para ela, ele estava mentindo para si mesmo, era mais do que explicar a confusão de sentimentos que ele estava sentindo e não conseguia compreender, era mais fácil ignorar e esconder os sentimentos do que deixá-los fluírem, fora machucado demais para se permitir sentir e amar outra vez, por isso tomara tal decisão.
- Não tenho respostas para as suas perguntas, - começou gentilmente pegando em seu braço, - mas sei que não aprendi a amar você pelo que fez por mim, amo você porque de alguma forma conheço a pessoa que se esconde aí dentro, e queria muito que ela se abrisse para mim. — ele vacilou diante das palavras dela, não esperava por algo assim.
- Eu não sei lidar com as emoções que falar sobre isso provoca em mim, eu perco o controle. — disse em voz baixa. Sua garganta ardia, as palavras queimando.
- Pode perder o controle, quem nunca? – perguntou sorrindo, ele fechou a cara. – Eu meio que não me incomodo com pessoas perdendo o controle, vivi algum tempo com alguns garotos que constantemente estavam perdendo o controle. – disse voltando a olhar o mar, ele ficou ali parado a encarando, ela era mais persistente que ele. – Confie em mim, como eu confio em você. – disse voltando a encara-lo, confuso ele enfrentou o olhar amável e corajoso, suspirando tocou na mão que ainda estava em seu braço puxando-a para sentar-se na areia em silêncio ela o acompanhou.
- Se você diz, depois não diga que eu não avisei. – disse sério, dando a ela a chance de fugir e deixa-lo sozinho com os seus fantasmas.
- Tudo bem, eu estou te ouvindo. – Respondeu desafiadoramente.
- Hoje seria o aniversário de vinte e nove anos das gêmeas. - começou com a voz embargada, sentiu um alivio misturado com dor quando ela pegou em suas mãos em um claro sinal maior do que suas palavras de que não iria a lugar nenhum.
- Eu tinha ouvido algo sobre você ter tido três filhas, mas não sabia que as primeiras eram gêmeas. Sem contar que é muito surpreendente que o aniversário delas seja dois dias antes do de Açucena — ela se lembrou da promessa feita de que não diria nada — Desculpa! – pediu colocando a mão na boca. Ele sorriu sem de fato sorrir.
- É até bom você fazer comentários, eu tenho tempo para pensar nas palavras certas, se é que vai dar para dizer alguma coisa coerente no meio de toda essa bagunça.
Delicadamente ela na sua mão e ficou no aguardo da continuidade, pacientemente, como se não houvesse nada mais importante, e de fato naquele momento não havia, ela só queria que ele compreendesse que ela amaria ter um pai como ele.
- Seu grupinho de investigadores deve ter mapeado minha vida toda né? — no meio de toda aquela fragilidade ele foi capaz de tentar minimizar um pouco a situação.
- Na verdade, eu prometi para a minha mãe não me meter nessa investigação, eu mal suporto a minha própria, então eu não sei de muita coisa, as coisas que eu sei geralmente é a Açucena quem me diz.
- Ela parece gostar muito de você. – Ele comentou verdadeiramente feliz.
- E a recíproca é verdadeira, eu também a amo, não sei explicar desde que nos vimos a primeira vez que houve uma conexão entre a gente. – respondeu emocionada, na verdade em seu coração a via como uma irmã, sentia por ela o mesmo que sentia pelo Eric. Olhando as ondas esperou que ele continuasse.
- Eu tive uma educação muito fria, meu pai cuidava da minha mãe adotiva, dava todo carinho a ela por ter que me suportar, eu ouvi isso por várias vezes. Até os meus cinco anos, eu tinha muito medo, ficava triste e chorava muito, na verdade eu tentava agradá-los o tempo todo e quando não fazia isso me trancava no quarto para eles não brigarem comigo por eu simplesmente estar ali. A minha mãe nos visitava uma vez por semana, almoçava conosco aos domingos e eu sempre esperava, muito ansioso, mesmo só podendo chamá-la de Norma, era bom tê-la por perto. – ele deu um leve sorriso. - O marido dela me tratava melhor que ela, aliás, me tratava melhor que qualquer um deles, ele não sabia que a mulher tinha um filho que fingia não existir. Mesmo assim, eu ouvi que podia estar incomodando ele então deveria ficar quietinho quando os dois estivessem em casa, não era para eu me aproximar, assim eu comecei a me afastar dele também, imagino que no intimo eles temiam que eu lhe dissesse a verdade.
- Talvez você devesse ter dito, era um direito seu. – resmungou mordaz.
- Eu nunca desafiei os meus pais. O que eu podia fazer, Samara? Eu era considerado um estorvo, e aquela era a única família que eu tinha. Pensei no que fariam comigo se eu fizesse alguma coisa. o Heitor tentava conversar e eu era monossilábico, não podia falar muito, eu não queria que nenhum deles ficasse chateado comigo e assim eu afastei a única pessoa que se importava comigo de verdade. Se bem que não foi de todo ruim, eu aproveitava a solidão para ler e estudar, sem contar com a facilidade que tinha para aprender coisas que não eram para minha idade.
- Por que será que isso não me surpreende! – Comentou sorrindo, ele também sorriu.
- Aos onze anos, meus professores concluíram que eu era avançado demais para escola, assim me transferiram para o ensino médio e eu tive um desempenho muito avançado, então, entrei na faculdade.
- Desculpa Héctor, mas é assustadora a naturalidade com a qual você diz coisas como. 'meu pai dava todo o carinho a minha mãe adotiva por ter que me suportar', 'não podia chamar minha mãe biológica de mãe', ou 'o marido dela me tratava melhor que ela', lembrando que esse marido não era o seu pai, era um estranho.
- Eles nunca me quiseram Samara, só estavam me tratando como achavam que eu deveria ser tratado por ter estragado as vidas deles.
- Que lindo! Na hora de irem para cama estavam gostando né? Ai! Ai! — até ela se surpreendeu com o tom ríspido da própria voz, ele gargalhou voltando logo a ficar sério e em silêncio. – Em que está pensando?
- Na morte deles. Os dois faleceram no intervalo de três meses, estavam tentando ter outro filho. Ela morreu de tuberculose, e ele voltou de uma viagem que fez para tentar superar o luto e enfartou. Morreu jovem aos trinta e dois anos em casa, ao meu lado. — e o desconforto começava a tomar conta dele, ela percebeu porque a mão que segurava estava começando a suar.
- Vocês chegaram a conversar? Quero dizer você e o seu pai, enquanto ele enfartava, ele falou alguma coisa? Quantos anos você tinha na época? — perguntou ela, com voz vacilante.
- Eu tinha 15 anos, já estava emancipado por causa da faculdade. Não, nós não tivemos tempo de conversar. Ele ficou me olhando, esperando que eu dissesse algo, mas não sabia o que dizer, eu travei, eu deveria ter dito alguma palavra de consolo, do tipo 'você vai ficar bem', ou qualquer outra coisa. – disse triste. - Eu acho que fui um tanto insensível nessa hora, aliás, para essa coisa de luto, não sou muito sensível, não sei se não sinto nada ou se não consigo demonstrar o que sinto.
- Você sente sim, só não aprendeu a colocar para fora, dá para ver nos seus olhos o quanto algumas coisas te machucam, se a gente olhar bem de perto. – disse sinceramente olhando dentro dos seus olhos, ele virou o rosto para o mar.
– Na ocasião eu pensei que a Norma fosse finalmente cuidar de mim, mesmo eu sendo emancipado era muita responsabilidade para mim. Então, me dediquei à pós-graduação, mas concentrei o máximo das minhas forças na empresa e acabei me pós-graduando em todas as áreas que eu queria aos 16 anos, mesmo nunca tendo parado de estudar na época. Devo admitir que, a princípio, fiquei morrendo de medo, Samara, mas não tinha outras opções além de aceitar a solidão e me conformar com ela.
- Aquela ali só cuida de si mesma! – censurou. Mordendo a língua resolveu mudar de assunto. - E aonde entram a Olívia e a Virgínia? Eu conheci a Virgínia e dá para ver que ela tem alguns sentimentos por você, e pela forma que ela fala não foram correspondidos. – comentou triste pelos dois.
- A Olívia me contou antes de morrer desse sentimento da Virgínia por mim, mas eu não sabia, talvez se eu não fosse tão idiota teria percebido e escolhido a irmã certa. – disse duramente. - A Virgínia trabalhava na minha casa como arrumadeira, e um dia a Olivia apareceu por lá, supostamente havia alguém tentando lhe fazer mal e muito nervosa teve uma crise na porta da minha casa, desmaiou por causa do pânico, do medo que tinha do pai.
- Supostamente? Por quê? Não havia ninguém tentando fazer-lhe mal?
- Se você puder me desculpar Samara, eu não quero falar desse assunto, vou falar sobre a minha relação com ela e a questão com as meninas, mas tudo que envolve essa mulher que não envolve uma das minhas filhas, eu prefiro não comentar, não é da minha conta.
- Como você quiser!
- Eu gostava demais da Virgínia, ela era uma pessoa muito querida e me fazia muito bem, mas me encantei pela beleza da Olivia, pela resignação, ela era a mais frágil das duas e eu sentia que deveria cuidar dela, tornar a vida dela melhor, fazê-la feliz. Nós nos casamos três meses depois que ela desmaiou na porta da minha casa, e ela descobriu a gravidez pouco tempo depois. Foi uma gravidez difícil de risco e na época por maior que fosse a minha fortuna, não podia fazer muito por ela, fui pai aos vinte anos pela primeira vez, dois meses depois do meu aniversário, as duas nasceram prematuras e a Lírio. — ele não queria continuar, implorando mentalmente para que ela não o obrigasse a fazê-lo.
Seus olhos ardiam, mas nenhuma gota de lágrima saiu, a respiração era descompassada não havia formas de colocar aquele turbilhão para fora, se ele parasse naquele momento depois de tantos anos ele estava falando e não pararia.
- Como eu disse dois meses antes das gêmeas nascerem foi meu aniversário, nem a Olívia nem a Norma se Lembraram. apenas a Virgínia, ela queria dizer à irmã, eu pedi para não dizer nada, mas a grande verdade fora que aquilo me feriu terrivelmente, e por isso eu viajei Samara, eu não estava lá com elas, porque fui mimado e egoísta, quem se importa com um aniversário? Eu nunca havia tido um bolo de aniversário até a Virgínia começar a trabalhar lá em casa.
- Elas nasceram prematuras, você não estava esperando que elas nascessem naqueles dias. – tentou acalma-lo.
- Exatamente eu não sabia que as duas iriam nascer, mas a gravidez era de risco eu sabia que havia esse risco o doutor Lucio me disse inúmeras vezes para não deixa-la sozinha, não a estressar e etecetera e tal. Eu não pensei direito ao viajar, a Norma me avisou por telefone do nascimento da Dália e da morte da Lírio, foi tudo tão rápido que eu não conseguia assimilar, se ao menos eu não tivesse feito aquela droga de viagem, por puro capricho.
- Héctor, você não poderia fazer nada para evitar, foi uma fatalidade. Eu não sei se alguém jogou a responsabilidade em cima de você, mas não foi culpa sua, além disso, mesmo que você pudesse deixar de viajar eu tenho certeza que a viagem realmente era importante.
- Sim era importante, mas eu poderia deixar para depois. Quando eu retornei tentei confortar a Olívia, mas não conseguia vê-la daquela forma e a única coisa que eu sabia dizer é que ela precisava se acalmar, que não podia se deixar sucumbir pela dor, até que ela se chateou e me disse que não era obrigada a encarar as coisas da forma fria que eu fazia, e realmente ela estava certa, pelo menos era o que eu acreditava na época. Eu pensava que ela tinha o direito de sofrer pela filha, então acabei concentrando toda a minha atenção na Dália, a mãe já estava no chão e eu não podia cair também, tinha que cuidar da minha família.
- Como era a Dália? — Samara perguntou, tentando enxugar uma lágrima. – Era uma mini Açucena?
- Fisicamente ela não tinha nada da Açucena, enquanto ela parece comigo a Dália parecia demais com a Olívia, ela era loira igual a mãe, mas era geniosa, e bagunceira brincava com tudo que não era brinquedo, nisso eu sei que a Açucena era igual a ela. – disse sorrindo. – A Dália preferia mexer no meu guarda-roupa no meu quarto a brincar com as coisas que a gente comprava para ela. Brincava com uma pelúcia ou outra, sempre gostou de neném tanto que a primeira palavrinha dela foi 'neném'. Eu não sabia a forma certa de falar com ela, então sempre falava no mesmo tom normal com ela, e nunca me pareceu que ela se importasse, nunca pensou que eu estivesse irritado ou alguma coisa do tipo. Não fui o tipo de pai muito carinhoso, por não saber como agir com ela, mas eu não sei o que ela via em mim para achar tão bonito, às vezes pegava uma pelúcia, mesmo que soubesse andar tinha medo de subir as escadas e ia engatinhando até o meu laboratório, batia na porta e me mandava olhar o 'neném', o mesmo 'neném' que tinha me mostrado três vezes no dia anterior só para depois me dizer que tinha medo de descer e que eu tinha que levar ela no colo lá para baixo, depois olhava para quem tivesse perto da escada toda pomposa, de narizinho empinado, fazendo pose porque se sentia mais alta.
- Ela devia ser a coisa mais fofa do mundo! — Samara disse, observando a agonia transparente no rosto dele.
- Sim, ela era a única garota que existia para mim, quando eu via outras meninas não pensava em nada, mas quando olhava para ela parecia que tudo tinha sentido na minha vida. Uma semana depois da festinha de dois anos, a Olivia entrou com ela no meu escritório na empresa, dizendo que as duas iriam à praia. A Dália me pediu para ir com elas, e resmungou quando eu e a mãe dissemos que não era possível, me fez prometer que era eu quem a colocaria para dormir naquela noite, e mesmo assim saiu triste, ou brava, não sei direito, mas me recordo do olhar dela pelo ombro da mãe quando elas saíram do escritório. A Olívia fazia questão de dizer para a menina que eu não tinha tempo para ela, e hoje me pergunto se ela não estava certa, afinal mais uma vez eu estava ausente, se eu tivesse ido!
- Me perdoa do fundo do meu coração pelo que eu vou te dizer agora, vai doer! Mais ela queria matar a pequena Dália se não tivesse sido aquele dia seria em outro momento. — Samara disse algo que ele já sabia, mas não amenizava a dor.
Ele soltou sua mão da dela passando-a nos olhos, queria olhar nos olhos dela, para não passar a impressão de que estava ressentido pelo que ela dissera, mas a visão estava turva, e não importava o quanto ele quisesse desfazer o nó na garganta, algo parecia impedi-lo uma espécie de medo.
- Desculpe-me, eu falo mais que a boca, foi mal! Mais eu só quero que você saiba que nada disso é culpa sua.
- Eu tenho sim a minha parcela de culpa, e não importa o que você diga ninguém vai mudar esse pensamento de que minhas filhas estão mortas, e não importa o que eu sinto Samara, eu preciso cuidar para que a outra não tenha o mesmo destino. — a voz dele estava trêmula, ela pensou em se mover para abraçá-lo, mas teve medo. – Eu sei que você tem razão, a Olivia a teria matado e também teria matado a Açucena se não tivesse morrido naquela noite.
- Eu sinto muito. – disse abraçando os joelhos. - Foi por isso que você me salvou? Como uma recompensa por não conseguir salvar as gêmeas?
- No início sim. - respondeu olhando em seus olhos não via motivo para lhe mentir ela merecia a verdade. - Para mim era inaceitável que outro pai sofresse a dor que eu senti e quando aquele policial me disse que era o seu próprio pai que estava tentando te matar eu fiquei horrorizado, e percebi que existem mais 'Olivias' por aí do que eu imaginava, e decidi que te protegeria o quanto eu pudesse, mas agora acredite em mim é difícil admitir isso, mas também me afeiçoei muito a você. Eu não sei, sua existência torna minha vida mais fácil. — admitiu, recebendo um sorriso emocionado dela.
- Pensei que você fosse dizer que torna sua vida mais agitada, já que tem um maluco atrás de você para te matar por minha causa. — e novamente aquele revirar de olhos, constrangido pelo humor dela em relação à situação. - Posso te perguntar o que aconteceu naquela noite no resort? Eu não penso que você a matou, mas aconteceu algo, não é possível que você só tenha falado com ela e não tenha visto nada de incomum.
- Você deve ter ouvido da boca da açucena toda aquela história de eu ter contratado os pais adotivos dela, que instalei um sistema de segurança no quartinho dela por ter comprado o prédio, que me permitia observar ela durante as noites. Eu não dormia, só ficava de olho, era o meu momentinho com ela e eu aproveitava cada segundo. Então eu me cansei, cansei de tudo aquilo e decidi contar a verdade para a Olivia e avisar que ou ela me entregava a menina, ou eu daria um jeito de ela pagar pela morte da Dália. Eu não apareci lá do nada como os amigos dela disseram, uma pessoa marcou o encontro no resort, a mesma pessoa que me contou toda a verdade sobre a morte da Dália. Quando eu fui, compreendi que a ideia dos amigos estarem juntos com ela era boa para mim, assim eles evitavam que eu cometesse alguma loucura, isso mesmo, me controlei para não mata-la, mas confesso, eu quase a matei quando a ouvi zombando da situação, dizendo que entraria naquele quarto e mataria minha filha dormindo, só para eu ver através daquela câmera. — uma mistura sombria de tristeza e ódio tomou conta da fisionomia dele. — eu não nego Samara, seria capaz de mata-la, e se eu a tivesse matado não creio que me arrependeria disso. Sinceramente? Eu não tinha nada a perder, eu sabia que a Açucena estava em boas mãos com o Jefferson e a Paola, mas então a Virgínia me chamou a razão e eu me controlei.
- Então é verdade que a Virgínia te viu a enforcando?
- Sim, por quê?
- Eu não tenho certeza, mas imagino que o esposo dela brinca com a mente dela com essa lembrança, algumas vezes ela acredita que te viu a enforcando e outras ela pensa que foi ela própria quem a enforcou.
- Coitada da Virgínia. Eu me acalmei por ela, e pelo bem da Açucena. Eu soube que a Açucena recebeu a informação de que eu aceitei ficar no resort, que eles pediram para que eu ficasse para me acalmar, eu não ia ficar, mas tinha que esperar a chuva passar porque a estrada estava muito molhada, estava decidido a entrar naquela casa e pegar a minha filha, nem que tivesse que fugir a vida inteira por sequestro e que o mundo, as farmácias, minha reputação, meu sobrenome, tudo que eu construí fossem para inferno, não me importava com mais nada.
Samara respirou profundamente, estava nítido o quanto seus sentimentos estavam sufocando ele aos poucos, era um homem lesado pela vida, que experimentou a injustiça dos homens, e deveria conhecer a justiça de Deus. Criou coragem e se aproximou dele, a troca de olhares silenciosa foi carregada de sentimentos.
- É muita mania de crente dizer que Deus é a solução para tudo. – disse sorrindo. – E não seria eu se não dissesse isso para você hoje, aqui e agora, não vou dizer para que você dê uma chance a Cristo Héctor, porque Ele já te escolheu, Ele já te chamou, o que você precisa é apenas atender. — a surpresa foi compartilhada entre eles.
- O problema não é Deus Samara, sou eu. Simplesmente não consigo interagir com o público, e aquela igreja é enorme, sem contar que a Açucena não quer me ver nem pintado de ouro, ela não vai gostar de me ver lá. — algo nele havia mudado ou era impressão dela?
- Que eu saiba, somos conhecidos como a igreja de Cristo, não a igreja de Açucena. — o olhar reprovador dele deixou a mesma com certo receio, precisaria controlar a língua de trapo. — É implicância de irmãs, mas estou falando sério. Eu ia amar ter você hoje no congresso, mas também entendo que você precisa de tempo, só quero que você saiba que o dia que você resolver entrar na igreja, vai ser um dos dias mais felizes da minha vida. Não por você estar lá, mas por se dispor a conhecer o Único que pode colocar a verdadeira paz no seu coração. — ela estava decidida a fazer uma campanha de oração para que ele se convertesse.
Aquele era o pai que não tinha seu sangue, mas que Deus havia dado a ela. Tinha certeza disso.
Ele queria agradecer pelo carinho e por tê-lo ouvido, mas qualquer pretensão que ele tinha foi esquecida no exato momento em que ambos viram Virgínia, passando pelos dois como um furacão em direção à água.
- Meu Deus, ela vai se jogar no mar! — disse Samara, quase aos prantos levantando-se junto com ele ambos correndo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro