01| ANCIENT HOLY MATRIMONY
[ ANTIGO SAGRADO MATRIMÔNIO ]
ESTOU ANDANDO PARA lá e para cá enquanto a noite cai. Posso identificar cada estrela e cada astro na vista que o Olimpo oferece, mas de forma alguma as constelações me acalmam. Ele estava chegando. Aperto minhas mãos uma sobre a outra, sentindo a brisa noturna do grande salão onde me encontro atingir meu rosto. Aquela noite em especial parecia fria para mim. Eu não era alguém sensível às mudanças climáticas, mas qualquer vento que cruzasse o meu caminho estava causando calafrios. Talvez fosse uma questão completamente emocional.
Sob o meu vestido longo claro, praguejo para a cauda branca quando tropeço em meus pés descalços pela terceira vez naquele momento. E então escuto um barulho. Meus olhos encaram diretamente o canto de onde vem o som, uma zona aberta que permite a passagem do Olimpo para as terras mundanas. As risadas, antes um tanto distantes, se tornam calorosas e presentes no grande salão, e eu posso ver quatro figuras masculinas, exuberantes em seus corpos musculosos e idealizados, correspondendo a algum comentário espontâneo do homem que estava a frente. Ele definitivamente era uma figura de liderança, e mesmo que seus irmãos e companheiros não o amasse como ele os amava, ainda sim o respeitavam e o temiam o suficiente para rir de qualquer piada.
Ele havia chegado. Zeus havia chegado.
Pouco a pouco, os rapazes se aquietam, comprimindo suas vozes grossas a um sorriso miúdo. Eles haviam me visto. E perceberam que a minha cara não era a das melhores.
─ Boa noite, Zeus. ─ Hefesto se despede, e os outros, Ares, Dionísio, Hermes e Apolo, pronunciam algo de cunho semelhante antes de se retirarem.
Mas Zeus continua sorrindo, porque a caça deve ter sido muito boa.
Ah, sim. Ele adorava caçar. Era como um momento de família para alguns de nós, apesar de soar meio primitivo. Mas às vezes um homem precisa se sentir forte, imponente, superior. E essa sensação definitivamente alcançava a cabeça indecifrável de meu marido.
Ele se aproximou, os olhos castanhos brilhando, e estendeu os braços em minha direção.
Oh! Por Gaia! Isso vai ser difícil.
─ E aqui está ela... A mulher mais deslumbrante de todo o Universo. Sabe que eu adoro esse vestido, não é?
Eu me afasto quando seus braços tentam me apertar em um abraço, e Zeus franze o cenho.
─ Está tudo bem?
─ Precisamos conversar.
A cara dele se fecha. Posso imaginar que, daqui a alguns bons segundos, o céu deixará de ser uma noite primaveril aconchegante para se tornar um misto de tempestades e trovões.
Eu abraço meus próprios braços na intenção de me aquecer, porque de alguma forma, estava ficando frio. O clima já estava ficando pesado antes mesmo de eu ter sibilado o assunto em questão. Mas tomei coragem mesmo assim.
─ Eu estou farta, Z. Zeus. ─ Me corrijo rapidamente. Preciso ser fria, objetiva e até um pouco cruel. Só assim ele me escuta.
─ Mas eu faço caçadas desse tipo toda semana. ─ Ele tenta se justificar, mas sei que ele sabe que o assunto não é esse.
Está tentando transformar tudo em uma questão humorística que vai me fazer esquecer do assunto. É o primeiro obstáculo que eu preciso ultrapassar.
─ Não é disso que eu estou falando... E você sabe disso.
─ Hera...
─ Não posso continuar vivendo dessa forma. Isso não é vida.
Quero continuar, quero dar um longo discurso que se abrange desde o nosso casamento até os dias atuais. Quero explicar de uma forma muito clara que estou muito cansada da minha rotina, dos julgamentos, do título de "esposa maluca" que me persegue entre os mortais. Quero explicar que não suporto mais não estar conversando com minhas sacerdotisas. Ou que detesto o fato de agora, muitas delas me servirem por medo e não por admiração.
─ Olha o que eu me tornei... O que nós dois nos tornamos.
─ Não sei onde você quer chegar, minha rainha. ─ Ele costuma me chamar assim, mas é de uma forma muita carinhosa. Não consigo identificar isso em sua voz.
Se parar para analisar, sua postura está mais rígida, visto que outrora se encontrava tão relaxada quanto nunca. Os olhos castanhos perderam parte do brilho, algo que ele mostra naturalmente quando está feliz. Os lábios estão um pouco comprimidos, como se ele estivesse selecionando quais palavras deveria dizer para me manter ao seu lado.
─ O Olimpo deixou de ser o meu lar há muito tempo. ─ Eu digo, e estou cansada, dá para ouvir em minha própria voz. ─ Estou envergonhada pela forma como fui abordada durante todas essas centenas de anos, e como todos acataram isso.
─ Os deuses gregos raramente são vistos como figuras de inspiração, Hera.
Posso ver a indignação em seus olhos. Ele não está errado. Muitos de nós somos narcisistas e egoístas, e não nos preocupamos em filtrar nossas ações e anseios. É por isso que acabamos por ostentar uma cultura de ira, traição e vingança. Mas isso não sou eu. Na verdade, sinto que a maioria dos Olimpianos não são assim de verdade.
Mas agora tudo se trata da nossa reputação.
─ O que você quer? ─ Ele pergunta, se aproximando. Me permito estar próxima dele dessa vez, apesar de ainda ter ressalvas.
Não posso chorar, não posso gritar, não posso ser dramática. Não posso demonstrar qualquer fraqueza, porque isso será usado contra mim.
Quero o meu melhor amigo de volta, eu quero responder para ele, mas é inútil. Porque Zeus não é o mesmo de antes, e assim como grande parte de nós, ele já foi corrompido. Pelo poder, pela independência, pela liberdade.
Oh! Veja como somos ridículos, demonizando coisas boas porque não controlamos elas, mas sim somos controlados por elas.
Sei que se eu responder que quero a minha liberdade, ele interpretará errado. Vai achar que se trata sobre ir a lugares, ou estar com pessoas, ou fazer certas coisas. Mas não era sobre isso. Ou não parecia ser. Eu nunca soube o que era ser livre.
Repentinamente, quero abraçar o meu marido. E isso se dá porque, o que muitos contadores de histórias não sabem, é que ele é a única pessoa do Olimpo em que realmente confio os meus pensamentos e angústias. Preciso que Zeus me diga que as coisas vão ficar bem, que ele estará do meu lado, que iremos continuar tentando. Mas não foi isso o que fizemos há dez anos atrás, na última vez que ousei confrontá-lo sobre isso? E no final daquela história, ele me garantiu um prazer momentâneo e a ilusória ideia de que as coisas iriam mudar, progredir.
Não posso me dar ao luxo de me entregar para ele dessa vez.
─ Hera... ─ Ele está muito perto dessa vez, e percebo que ele ainda aguarda por uma resposta. O deus toca o meu rosto com uma de suas mãos, e eu cometo o meu primeiro erro: cedo ao toque. Diferente de mim, Zeus tinha as mãos quentes, o que tornava o seu toque muito desejado.
Então ele encosta a testa na minha, e quando me dou conta, estamos nos abraçando. Aquele tipo de abraço demorado, onde os dois corações se encontram e passam a sincronizar os batimentos cardíacos. Eu cometo o meu segundo erro quando o puxo para mais perto, acariciando os fios castanhos de sua nuca, me permitindo chorar enquanto ele enrola seus braços em minha cintura.
─ O que houve, meu amor eterno?
Eterno. De repente, Zeus comete um vacilo, mas acho que ele não percebeu.
Depois do choro, posso imaginar meus olhos ficando vermelhos, mas isso também está fundido à raiva.
Ele estava me seduzindo! Como sempre faz, como sempre fez desde que passamos a discutir, me oferecendo sexo, presentes e palavras bonitas para compensar a sua falta de esforço em me garantir o que todo marido deveria garantir à sua esposa: segurança. Ele estava me mantendo sob as suas asas de novo, mas com a clara finalidade de aprisionamento, e não para me proteger, e isso ficou muito claro com aquela única palavrinha que ele ressoou com inocência. Eterno.
Eu estava fadada a ser sua companheira por toda a eternidade, porque criaturas como nós não morrem com facilidade, então é mais fácil assumir o papel de imortalidade.
Empurro Zeus para longe, e ele parece confuso.
─ O que...?
─ Está fazendo isso de novo! ─ Eu vocifero, me aproximando e o empurrando e socando pelo peito. É claro que não surte algum efeito notável nele, principalmente se considerarmos a diferença de força. Mas isso não me impede de continuar ─ Como você se atreve, Zeus!?
O líder dos deuses segura os meus pulsos, em um gesto muito rápido e até involuntário, me arrisco a dizer. Mas aquilo não me machuca. Ele não quer me machucar, quer apenas que eu pare. Zeus parece confuso. Sei que uma parte de si está desnorteada com as minhas ações, mas sei que a outra parte está ciente de tudo e acha melhor se fingir de desentendido do que aceitar a realidade.
Zeus era um sedutor. E isso era algo fácil de saber, porque ele tinha tudo ao seu favor. O rosto, o corpo, a voz, o sorriso, o charme, e até mesmo o repertório na hora de conversar com alguém. Sua companhia era desejável, porque ele sempre seria uma figura de luxúria ─ para homens e mulheres, para todos os tolos que ansiavam por coisas que não poderiam ter. Para todos que queriam ser amados. Zeus não entendia o que era amor. Ele confundia isso com desejo. E foi assim que nossa história começou e se estendeu por dezenas de milhares de anos.
Mas eu estava farta.
─ Hera, você precisa se acalmar e...
─ COMO VOCÊ OUSA!? ─ Eu grito, me libertando de suas mãos no processo. Talvez fosse a primeira vez que eu realmente levantei a minha voz para ele, e ficou nítido no seu rosto que ele detestou.
Um segundo depois, um trovão percorreu o céu.
─ Eu fui o seu fantoche por tantos anos e você nunca fez questão de mudar isso. Eu fui a esposa maluca, desesperada pela aprovação de seu marido. Eu fui a vingadora infeliz, que culpava seus amantes pelo seu erro. Eu fui a responsável pelos desafortunados casamentos de tantas mulheres com homens que não desejavam, porque você nunca entendeu o significado de compromisso!
─ Já tivemos essa conversa antes.
─ Então vamos repetir ela, meu amor. E dessa vez, você quem irá me ouvir.
Mais um raio no céu. Mas eles não conseguiam me intimidar naquele momento.
─ Achei que nós estávamos de acordo quando... ─ Ele tenta, mas eu o interrompo, o que o deixa furioso.
─ Não! Você quer um relacionamento aberto, ou sabe lá Gaia como chamam essa infelicidade hoje em dia. Mas eu nunca quis. Você saiu com tantas pessoas e eu continuei aqui, te esperando voltar, tendo metade de você quando você sempre me teve por inteiro. E ainda fez com que eu me sentisse culpada, insuficiente, horrenda demais para ser a única em seus pensamentos.
─ Hera...
─ NÃO! Eu estou falando agora, alteza. ─ Todos esses adjetivos são ditos com escárnio, e eu levanto o queixo como se fosse superior a ele. Talvez eu fosse. Porque mesmo sendo uma das deuses mais fracas do Olimpo, eu ainda era a pessoa que administrava tudo, que deixava as coisas nos conformes, que evitava parte do caos entre nossos filhos e irmãos.
Porque por trás de todo grande homem, existe uma vadia maior ainda.
─ Você permitiu que eu recebesse esses títulos. Permitiu que eu fosse rotulada como louca!
─ NENHUM DE NÓS AQUI É UM MODELO DE INSPIRAÇÃO, MINHA RAINHA! ─ Ele se exalta, mas quando percebe um sobressalto de minha parte, diminui a voz. ─ Eu já fui acusado de estupro.
─ O que você fez! ─ Digo, e agora que isso foi dito em um ótimo tom, me sinto enojada por nunca ter o repreendido por isso. Talvez eu devesse ter feito como Gaia quando castrou Urano. Talvez Zeus aprendesse se tivesse o destino selado de forma tão semelhante à de seu avô.
─ Você matou Mégara! ─ Ele acusa. Eu cogito estapear a sua cara ali mesmo.
─ Foi um mal entendido e você sabe! Eu não sou um monstro!
De repente, há um silêncio. Os raios e trovões lá fora se acalmam por um instante.
Eu sinto que em algum momento, poucos de meus irmãos e irmãs podem ter vindo espiar a nossa discussão, e agora me sinto envergonhada, repentinamente.
Quero chorar de novo, mas seguro as lágrimas. Ou pelo menos, tento.
─ Você não é um monstro. ─ Ele vacila a própria voz. Eu nunca disse isso em voz alta para ninguém, então é de se esperar que Zeus fique atordoado.
Deusas raivosas não costumam ter sensibilidade em seus corações. Ou pelo menos, foi o que eu ouvi uma vez. Em meu próprio templo.
Uma melancolia preenche meus pensamentos quando me lembro do evento que me fez parar de falar com minhas sacerdotisas, mas não é uma lembrança para agora.
─ Hera... ─ Ele se aproxima, pegando em meus ombros e tentando visualizar, em vão, o meu rosto vermelho pela raiva e lágrimas. Apenas aquilo é o suficiente para me fazer desabar, caindo em seus braços como se tivesse perdido minhas forças ─ Você não é um monstro. Nunca seria um. Eu sinto muito que tenha se sentido assim.
Outra vez, estou em seus braços. Estou soluçando muito, e posso imaginar o quão horrível está a minha face, úmida e avermelhada, como se eu fosse maluca.
Mas Zeus não se importa e continua me abraçando, não como meu marido, mas como meu melhor amigo, como foi há tempos atrás.
─ Nós vamos resolver isso.
Sua voz parece tão certa, tão acolhedora, tão determinada, que quase acredito. Mas como eu disse antes, não é a primeira vez que ele me promete coisas que não pode cumprir.
Quando ele se afasta, nossos rostos estão próximos, e é como se qualquer coisa dita ali ficasse apenas entre nós, longe de quaisquer olhos curiosos. Então juntando a coragem que eu não tenho, eu sibilo, encarando-o nos olhos:
─ Não, não vamos.
Trato de me levantar com pressa, deixando-o onde está.
Ele parece confuso, mas sei que dessa vez, é tudo muito real para ele. Ele não sabia que eu poderia chegar aqui.
─ Irei partir.
─ Como?
─ Não posso permanecer aqui, Zeus.
─ Mas precisamos ficar aqui. O Olimpo é o nosso lar, Hera.
─ É o seu lar. Você não virá comigo. ─ Eu deixo claro, limpando o meu rosto das lágrimas que começaram a secar.
─ Eu não entendo.
─ E eu sei disso. Sei que você quer tentar, mas eu não vou me destruir nesse processo.
─ Estamos...
─ Você me perdeu. ─ Eu assumo, corrigindo a minha postura.
Ele parece realmente abalado agora, como se tivesse levado um soco.
─ Atualmente, os mortais chamam isso de divórcio. Mas acho que tudo está muito claro, então não precisamos de documentos ou advogados para oficializar isso.
─ Hera, você não conhece o mundo lá fora...
─ Irei conhecer. ─ Eu balanço a cabeça, forçando um sorriso para consolar a mim mesma.
Só então me deparo com a cena em que estou inserida.
Pela primeira vez em sua vida, Zeus está curvado a alguém, clamando por algo, quando a situação sempre foi exatamente a oposta. Como se fosse apenas um mortal, implorando para que suas preces sejam atendidas. Ele ainda não se levantou, então eu o encaro por cima. Quem diria que a deusa do casamento estaria abandonando o seu marido, e que ele estaria aos seus pés, suplicando em silêncio para que eu ficasse ao seu lado.
Há dez anos atrás, talvez, isso seria o suficiente para mim. Mas não é mais.
─ Se partir.. ─ Ele se levanta, e vejo seus olhos lacrimejando. Uma única lágrima cai. ─ Se partir, não poderá voltar.
É um ultimato. Mas tudo o que estou pensando nesse momento é em como não acho que eu tenha forças para me teletransportar pra algum canto, então ele quem deverá fazer isso por mim. Eu estou deixando o meu marido, e ele ainda deverá preparar as minhas malas.
─ Por favor... ─ Ele implora, e meus lábios começam a tremer. Mas eu contenho o gesto.
─ Eu aceito o fardo de perder o meu posto, deus dos deuses. Estou solicitando ser enviada ao mundo dos mortais. ─ E então eu me retiro, sem esperar por sua resposta, e caminho com pressa até o portal mais próximo, rezando para não voltar para trás, porque eu ainda o amo. O que é ridículo, visto toda a nossa história.
E simultaneamente, de alguma forma, esse sentimento é compreensível, se for analisar parte de nossa real história, o que ficava apenas entre nós dois, sem sacerdotes, sem deuses, sem contadores de fábulas.
Então eu entro no compartimento que me guiará à Terra mortal, e seguro a minha túnica de cor branca com força, apertando as unhas pequenas nas palmas de minhas mãos e do tecido fino. E quando menos espero, estou desabando para baixo, para algum destino aleatório, mas longe o suficiente da Grécia.
E só então eu me permito entrar em pânico.
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