14. Miguel
Não sei muito bem o que pensar. Achei que a Júlia estivesse chateada comigo, mas agora ela está devorando um hambúrguer na minha frente. Fiz um cheeseburguer pra ela, com muito queijo, batata frita, onion rings, quase um banquete. Eu não sabia que uma menina tão pequena podia comer tanto. Ela parece estar nas nuvens.
Abro a boca pra tentar, mais uma vez, me justificar, mas ela parece tão satisfeita com o hambúrguer e... Não quero estragar nada. Ela me beijou... Mas, ao mesmo tempo, ela disse que não ligava para as minhas mulheres... Isso me incomoda. Não tenho outras mulheres. Quero que ela saiba...
Estou prestes a falar isso, quando Sam entra no restaurante. São 18h, então o restaurante está completamente vazio. O movimento só começa mesmo às 19h. Lembro que marquei com a Sam de tirar umas fotos para as redes sociais do Braga Burguer.
Júlia está com a boca cheia de batata e os olhos dela vão do hambúrguer pra Samantha, de Samantha pra mim. Percebo que ela reconhece a Sam da garupa da minha moto.
Fico em pânico por dois segundos até lembrar que Sam é minha prima, então, isso é, na verdade, bom. Só preciso garantir que a Júlia não vá sair correndo antes que eu deixe isso bem claro... Mas ela ainda está no meio do hambúrguer e não parece nem um pouco disposta a largá-lo.
Me lembro do conselho de Lorena: vou bancar o casual, sem me explicar muito. Ela vai ver que não tenho nada a esconder.
- Sam – abro os braços pra minha prima. Ela me dá um abraço antes de tirar a máscara. Então, ergue as sobrancelhas em direção à Júlia.
- Sua namorada, Miguel? – ela me dá uma piscadela e logo se vira pra Júlia: - Prazer, sou a Sam, prima do Miguel.
Consigo perceber as sobrancelhas da Júlia sumindo completamente por trás da franja.
- Prazer... – ela responde, abrindo um sorriso lindo. Ainda está meio pálida, mas a cor começa a voltar pras suas bochechas.
- E você deve ser a Júlia, né?
Júlia estreita os olhos.
- Sam – advirto. Como ela sabe?
- Lorena me ligou, Miguel. Rimos muito. Que tal você ir pegar umas coisas pra eu fotografar... E vou querer beber uma caipirinha... E, você, Júlia?
- A Júlia acabou de des... – começo a dizer, mas ela me interrompe.
- Também quero uma!
Ué.
Não está chateada comigo. Não liga pras "minhas mulheres". Quer beber caipirinha depois de desmaiar. O que está acontecendo com essa garota?
Quando eu volto, com duas caipirinhas, deixo os assistentes da minha cozinha preparando os hambúrgueres pra Samantha fotografar. Edu estava certo. Júlia só estava com fome. Agora, ela está com uma cara ótima. Sam e Júlia estão morrendo de rir e temo que eu seja o motivo.
- E ele sempre foi meu único primo mais velho, era tipo o único menino que eu conhecia de verdade... – conta Sam. Não sei do que ela está falando, mas me sento ao lado da Júlia. – Eu tinha oito anos e uma menininha da minha sala disse que já tinha beijado um menino. E eu era apaixonada pelo Miguel. Achava que eu ia crescer e nós iríamos nos casar.
Começo a rir, não sei por que a Sam está contando aquilo. Passo o braço pelos ombros da Júlia. Falo no ouvido dela: - Está se sentindo melhor?
- Sim... Estou ouvindo a história sobre o primeiro amor da Sam... – Ela sorri, olha pra mim, mas logo volta a atenção pra minha prima.
- Então, eu virei pro Miguel e disse que estava na hora de beijar um garoto. E que ele tinha que me beijar, porque ele era meu namorado e eu já tinha 8 anos! Se eu tinha 8 anos, então você tinha...
- Eu tinha 16 – conto, meio envergonhado com aquela história.
- O Miguel me deu um beijo na bochecha, eu falei que não adiantava, eu queria um beijo na boca! Mas ele se recusava a me dar um beijo na boca, disse que não era assim que os namorados faziam...
- Eu não ia beijar a minha prima de 8 anos...
- Teria sido melhor do que o idiota que foi meu primeiro beijo, mas enfim... – Sam revira os olhos dramaticamente. – Ele inventou uma história ridícula e, como eu era uma criança, caí que nem um patinho.
- Qual a história? – perguntou Júlia.
- Ele disse que namorados se beijavam na boca, mas nós não éramos namorados... Erámos noivos!
- O quê?!
- Sim! Ele disse que nós éramos mais que namorados! E que noivos não se beijavam na boca.
- E onde noivos se beijavam?
- Nos pés! Ele disse que, quando um homem estava pronto para se casar com uma mulher, ele tinha que dar um beijo no pé dela. Era a maior prova de amor de todo o mundo.
- E você caiu nessa?
- Caí completamente! Então, ele me deu vários beijos no pé e eu fui pra casa me sentindo a garota de 8 anos mais feliz do mundo!
O papo das duas engata depois disso e Samantha parece disposta a contar vários episódios vergonhosos da minha adolescência. Elas já estão na segunda rodada de batata frita extra quando Cléber, meu assistente, grita pra Sam que os hambúrgueres estão prontos na cozinha.
- Tô indo, Clebão! Júlia, foi um prazer te conhecer! Tenho que ir... Compensar por todo delivery de graça que o Miguel me proporciona, mas sei que vamos nos ver mais vezes! Até a próxima!
Meu braço ainda está ao redor dos ombros da Júlia quando ficamos sozinhos. Ela murmura que tem que voltar para o restaurante, sem olhar para mim. Parece envergonhada, mais tímida que o normal. Percebo que eu ainda tenho que explicar a coisa toda com a Carla. Minha irmã me aconselhou a abrir um sorriso sem graça e não explicar muito, mas... Me viro pra ela e começo: - Sei que o final do nosso encontro ontem foi... Horrível. Por favor, me deixe explicar... Às vezes, as minhas exs batem lá em casa... Acontece raríssimas vezes. Ontem foi uma dessas vezes, mas não estou com ninguém... Ela não é o "meu amor" como ela falou, nem eu sou o amor dela, não sou o amor de ninguém.
A Júlia me olha e eu percebo que isso soou um pouco... Patético. Ela ergue as sobrancelhas para mim: - Não estou chateada. Não sei por que insiste em se explicar para mim... Pode guardar um segredo, Miguel?
- É claro...
Ela me parece triste. De repente, a animação do papo com a Sam se foi. Ela pega uma batata frita entre os dedos. Reparo que sua mão é pequena, suas unhas são curtinhas. Ela não usa esmalte, talvez por causa da vida na cozinha.
- Não tive uma semana muito legal... – ela diz, ainda encarando a batata. – Estou passando por algo... esquisito. E você...
Ela suspira, como se estivesse tomando coragem, então vira para mim.
- Você tem sido um amigo bem legal para mim.
Amigo. Merda.
Preciso consertar isso, não posso de jeito nenhum ficar na friendzone. Afasto uma mecha de cabelo que está caindo por cima do olho dela e digo: - Júlia, quero ser mais que seu amigo.
Ela abre um sorriso meio encabulado.
- Eu entendi isso... Mas... Quer ser meu amigo também, não quer? Por isso, está sendo tão... legal comigo.
Não sei o que dizer. Ela percebeu que estou tratando-a de um modo diferente... Mas não consegue imaginar... Não quero assustá-la.
- Não achou que eu fosse um cara legal? – Meu dedão está na sua bochecha de novo. Não consigo me conter.
- Se você foi legal assim com todas as garotas de Aroeiras, essa é a hora em que você descobre que elas se esqueceram dessa parte – ela diz, rindo.
Justo. Não fui legal mesmo. Com algumas, não fui nem ao menos decente. Fui um babaca por muitos anos e agora estou pagando o preço.
- Você tem razão. Acho que não fui legal com muitas garotas... Acho que elas não esperavam que eu fosse também.
- Acho que essa pandemia mudou algumas coisas, então...
Não é a pandemia, é você.
- ... seus sanduíches estão salvando a minha vida, Miguel. Você nem imagina. Desculpa por ter saído correndo ontem... Eu fiquei sem saber o que fazer.
- Não, você não precisa pedir desculpas! Eu que tenho que pedir desculpas, não quero te fazer mal...
- Você não me faz mal – ela se aproxima de mim. – Você deu sal na minha boca, Miguel. Eu nunca vi isso.
Fico um pouco sem graça com a surpresa no seu tom. O sininho da porta toca, delatando que alguém entrou no restaurante. Vejo dois adolescentes se sentando na primeira mesa perto da janela. Os clientes estão chegando para o jantar, mas não quero que a Júlia vá embora. Lá fora, já anoiteceu e a rua está ficando mais movimentada. Me lembro que estamos em Aroeiras e todo mundo se conhece. Ela se encolhe um pouquinho, mas não se afasta. Passo meu braço pelos seus ombros e puxo ela para mim, entrelaço minha mão na sua. Meus lábios estão nos seus quando eu falo: - Também te acho legal.
- Faz parte do meu plano.
- Qual o plano?
- Te convencer a não roubar mais meu peixe.
- Ah, pra isso, você vai ter que se esforçar muito mais...
O sininho toca de novo. Ela parece se dar conta que está praticamente me beijando em público e, além disso, temos que trabalhar. Ela faz um aceno como quem diz "seus clientes". Faz menção de se afastar. Sei que tem gente olhando. Meus funcionários, as garçonetes, clientes e uma rua inteira de moradores de Aroeiras que podem olhar pela janela. Não ligo. Dou um beijo nela.
- Tenho que ir... – ela diz, se afastando.
- Te vejo mais tarde, então?
- Tá legal... – ela sorri pra mim, passa a mão na bolsa, coloca a máscara e sai. Eu fico lá, parado, olhando a Júlia ir embora.
Samantha logo aparece do meu lado.
- E essa cara de bobo aí? Quem diria, hein, Miguel! Na-mo-ran-do!
- Não estamos namorando – rebato. – Ainda.
- Aindaaaaa – Sam solta um assobio e se senta na minha frente, comendo batata frita. – Ela é muito fofa. Adorei. Eu daria uns beijos nela.
- Nem vem, Sam!
- Daria uns beijos até nos pés dela...
- Para com isso, Samantha! – jogo uma batata na cara dela.
- Nunca te vi tão apaixonado, bem que a Lorena me contou.
- Porra, como você sabe que estou apaixonado?
- Essa sua cara aí. É a mesma cara de pânico que você faz quando está perdendo no buraco.
- Nem vem... Só perco, porque você e Lô roubam o tempo todo.
- Está com medo, né? Você é tão óbvio, cara!
- Você é psicóloga agora e não me contou? Tá lendo pensamentos agora?
- Qual o motivo desse medo? Posso saber? A garota gosta de você. Você tá conquistando a Júlia pelo estômago. Sabia que ela é taurina?
- O quê?
- Taurina. É um signo – ela revira os olhos.
- Não sei nada de signos.
- Pessoas de touro são taradas por comida. E, pra sua sorte, você é um cozinheiro. Agora, por que está com medo?
Passo as mãos na cabeça, tentando reunir os argumentos.
- Teve aquela merda ontem... E sei que ela ouviu muitas histórias sobre mim.
- Sua fama por aí? Sabe, Miguel, essa fama é uma coisa que não ajuda... Mas assim. Deixa eu contar uma história aqui... A primeira garota que eu namorei tinha uma fama horrível. Diziam que ela era muito intensa no início, mas logo enchia o saco e pedia um relacionamento aberto. Eu não queria um relacionamento aberto, mas estava apaixonada e achei que pudesse ser diferente...
- E foi?
- Não. Ela encheu o saco e pediu um relacionamento aberto.
- Que merda de história é essa? Se for tipo um dos conselhos de Lorena, estou dispensando...
- Calma aí, por que esse estresse todo? Enfim, continuando... Foi do jeito que me falaram, a fama dela era péssima com isso. Ela me pediu um relacionamento aberto e eu aceitei. Ficamos ainda um ano juntas. Mas, logo, eu vi que aquilo não era confortável pra mim e terminamos. Mas ela nunca me enganou. Sempre foi sincera comigo. E somos amigas até hoje.
- Qual a moral da história?
- Seja honesto e pronto. Ela conhece sua fama e daí? Ela pode querer se arriscar e tudo bem se não der certo... Se você tiver cuidado, não vai magoar a garota. Seja sincero e vá na fé. Não vê o Marco e a Amanda? O cara tinha uma fama muito pior que a sua, Miguel. Você é o pegador da cidade, o Marco tinha fama de assassino. Olha aí, estão noivos agora, deu tudo certo.
Penso por um momento nesse argumento da Sam... Amanda é a melhor amiga dela, uma menina novinha que apostou no relacionamento com o Marco, apesar de toda aquela história bizarra, da diferença de idade, do fato de ele ser o professor dela... É claro que Aroeiras inteira conhecia essa história. Tinha saído até nos jornais. Mas nem todo mundo conhecia o que eu sabia. O quanto o Marco estava no fundo do poço...
Quando você tem um estabelecimento, um comércio, você conhece muita gente. Com a hamburgueria, eu sou o cara que vê os primeiros encontros, os passeios de amigos, os beijos desastrados de adolescentes que ainda não sabem o que estão fazendo. A Júlia, no restaurante italiano, vê os casais consolidados, os encontros românticos, as famílias reunidas. E o César, dono de muitas boates e bares aqui de Aroeiras, vê a noite. A noite pode ser a hora dos animados e loucos, mas também pode ser a hora dos solitários.
Não era raro me ver na noite de Aroeiras e eu era figurinha carimbada nos bares do César. Não era sempre, mas às vezes o Marco aparecia. Me lembro de uma vez em que o César disse que não ia servir outra dose pra ele. Ele resmungou qualquer coisa. O César me olhou, exasperado. Vi que ele me pedia pra ficar ali, dar uma força... Virou pro Marco e falou: - Cara, você não vai reerguer sua vida?
- Que vida, porra? – foi a resposta do Marco. Mas aí depois, ele falou: - Vou, sim. Tô esperando uma coisa.
- Uma coisa?
- É, uma pessoa. Tô esperando o momento certo. Agora, me serve mais uma dose e não enche, César.
Ele bebeu mais uma. Uma mulher qualquer entrou no bar. O Marco pagou, saiu com ela cinco minutos depois.
- E você tá esperando o quê, Braga? Uma coisa também? – perguntou o César, na época.
Mandei o César cortar aquele papo de bartender e ele gargalhou. Mas, se eu for pensar bem... Sim, eu estava esperando também. Que nem o Marco. E, se ele conseguiu, por que eu não conseguiria?
- É, mas não é só a fama... – Confesso, lembrando do que me preocupa mais: - Nós estudamos na faculdade na mesma época. Eu fiquei com algumas amigas dela... Sei que ela sabe demais.
- Demais?
- Detalhes.
- Ah.
- Pois é.
- A cidade inteira sabe esses detalhes, Miguel. Você é uma lenda entre a mulherada.
- Porra, Sam.
- É seu mérito, priminho.
- Ela não me leva a sério, Sam. Por causa disso tudo... Não sei o que fazer. Não sei como mostrar que ela é especial sem assustá-la.
Sam abre um sorriso para mim, como se soubesse algum segredo. Então, diz: - Relaxa. Essa sua cara de bobo fala tudo. Uma hora, ela vai perceber.
~*~
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