13. Júlia
Bom dia para você que acordou com o rosto inchado, o corpo dolorido e... no lixão. O lixão está dentro da minha casa. O lixão está no meu quarto. Ele não tem mais hora, nem precisa de convite.
O cheiro viaja pelas ruas de Aroeiras, encontra o condomínio perto do lago, se esgueira pelas frestas das janelas, das portas, entra na minha casa, sobe as escadas e contamina o meu quarto, entope as minhas narinas.
Sou arrebatada pelo cheiro de lixo sujo e molhado, nojento e asqueroso, no meu quarto, nos meus lençóis, em mim. Entro no banho. Me sinto suja. Me sinto imunda. A água fria refresca meu corpo, mas não tira essa sensação de sujeira.
Perdi a hora. Dormi demais. Não tenho tempo de tomar meu café, nem de me sentar na varanda, mas então me lembro que eu não faria isso. Não hoje. Hoje começa tudo de novo. Que nem no primeiro dia da faculdade. O medo de encontrar o Miguel, de ver o Miguel por aí, todo lindo, cheiroso, confiante, e me sentir... rejeitada, uma ninguém.
Não quero me sentir assim, mas esse sentimento se esgueira pelo meu estômago que nem o cheiro ruim. Checo meu celular e não tem nada. Nenhuma mensagem. Ele veio aqui ontem, mas não insistiu, nem nada... Não sei se eu queria que ele tivesse insistido.
Visto qualquer coisa. Calça jeans, blusa branca, um suéter vermelho. Estou com nojo de tudo. Não consigo comer, mas pelo menos comi bem ontem à noite. Foi a melhor parte do nosso encontro desastrado.
Assim que chego ao restaurante, percebo que preciso fazer qualquer coisa pra tirar esse cheiro da minha cabeça. Decido que hoje vai ser dia de frango crocante com creme de milho. Não é o dia tradicional, mas tradições podem ser mudadas e serão. Para o bem da minha sanidade. Assim que o milho começa a ser preparado, o cheiro invade a cozinha e pronto.
Perfeição.
Delícia.
Estou nas nuvens.
Não preciso mais do Miguel. Posso viver em paz.
Posso viver cheirando milho.
Decido que vou sair na hora do almoço e comprar muitos milhos lá pra casa. Vou fazer tudo de milho, vou ter sempre um milho na bolsa.
Quando o almoço dos clientes termina, me sento com a equipe para comer. Todos já estão no meio da refeição, quando eu coloco a primeira garfada na boca. Finalmente, estou comendo algo que sinto o cheiro. Estou salivando. Mordo o frango e imediatamente me arrependo. O frango está podre. Está horrível, nojento, quero vomitar. Cuspo.
Cuspo que nem uma criança malcriada.
É a minha primeira reação e agora todos os meus funcionários estão me olhando.
- Ahn... Achei que tivesse uma espinha – invento.
- Dona Julinha, isso é frango – diz o Edu, me observando atentamente.
Eu sei, droga, só não sabia o que falar.
- Não está bom o frango? – pergunta o Edu.
Olho ao meu redor e sei que o frango está bom. Todo mundo está comendo o frango e ele parece estar ótimo. O ponto está correto. Está crocante... Nenhum cliente reclamou. Começo a entender que tem algo errado. Não é o mesmo gosto, mas é parecido. É um gosto de coisa podre, é o gosto do ovo, da tangerina...
- É claro que está – minto. – Está ótimo.
Edu cruza os braços e me observa. Está esperando que eu coma.
Corto um pedaço. Coloco na boca. Estou tentando não pensar. O gosto é horrível. Não é como comer algo que você não gosta.
É como comer algo estragado, vencido, podre.
Engulo. O gosto desce pela minha garganta.
Vou passar mal.
Saio correndo antes mesmo de pensar e chego no banheiro.
Edu está segurando meus cabelos. Minha garganta arde. O frango boia na privada. Tenho vontade de chorar. Estou chorando. Estou com fome.
O que está acontecendo comigo?
Começou com o covid. Foi quando eu parei de sentir qualquer cheiro. Mas eu tive covid há meses! Meses! E isso só está aparecendo agora...
Posso estar com covid agora?
Me afasto do Edu. E se eu estiver passando covid pra ele? Ele já é um senhor e eu não posso arriscar a sua segurança, nem a dos meus funcionários, e ainda beijei o Miguel...
Preciso saber. Imediatamente.
Escovo os dentes que nem uma louca pra tirar todo aquele gosto. Meu estômago ronca em protesto. Coloco um chiclete na boca. Pego a minha bolsa e saio do restaurante, decidida. Quando passo na frente do restaurante do Miguel, me esforço pra não olhar lá dentro. Não quero encontrar com ele. Não quero suas explicações, nem sentir seu cheiro maravilhoso. O cheiro do milho não resolveu. Já faz uma semana que não consigo comer direito. Minha calça escorrega na minha cintura. Estou passando mal de fome.
Abro a porta da farmácia e dou de cara com a Antonella atrás do balcão. Ótimo, mais uma mulher que teve o prazer de dormir com o Miguel.
- Boa tarde, Antonella. Você tem um daqueles testes rápidos de covid?
Ela diz que sim e vai buscar. Eu sei que esses testes não são 100% confiáveis, mas não posso ir ao hospital agora e preciso saber.
- Quais os seus sintomas, Júlia? – pergunta Antonella.
Loucura.
- Nenhum sintoma, só quero ter certeza.
- Você foi exposta ao covid? - Seu olhar se perde atrás de mim. – Oi, quanto tempo...
- Covid? O que você está sentindo? – ouço a voz do Miguel atrás de mim.
Me viro e dou de cara com o Miguel. Pelo jeito, ele me viu e me seguiu até aqui. Seus olhos estão cheios de preocupação. Lembro que meus olhos estão vermelhos, acabei de chorar. Ele vai achar que estou chorando por causa dele. Que merda. Ainda bem que estou de máscara.
- Não estou sentindo nada, só quero ter certeza...
Ele me parece magoado. Ele passa a mão nos cabelos. Me lembro da textura dos seus cabelos nos meus dedos. Visivelmente angustiado, ele começa a falar muito rápido.
- Júlia, eu não tive contato com aquela mulher, eu juro... Eu não faria isso com você, tá? Eu sei que estamos no meio de uma pandemia. Eu não tive contato com mulher nenhuma. Eu posso explicar tudo...
Ele está achando que estou fazendo um teste de covid, porque ele é um galinha mulherengo e eu o beijei ontem. Não é nada disso. Quero explicar que não é isso, mas Antonella está olhando pra mim e pra ele, ouvindo cada palavra...
- Miguel, não é nada disso...
- Antonella, quer que eu fique no balcão, enquanto você faz o teste? – pergunta um outro farmacêutico, me salvando antes que eu inventasse uma desculpa esfarrapada.
Antonella me espera. Ela vai me levar para uma salinha.
- Eu já volto – digo para o Miguel e sigo Antonella.
Enquanto faz o teste, ela puxa assunto comigo. Tenho vontade de morrer.
- Então, Julinha, quem diria... Chegou sua vez com o Braga.
- Não é nada disso... – resmungo, mas depois decido ficar calada. É meio que isso. Era pra ser, mas não foi.
- Sei... Deixa disso, garota, aproveita. Ele vale cada segundo.
Não respondo nada, mas ela quer tagarelar.
- Nossa, nunca me esqueci da noite que tive com ele. Foi em um carro apertado, no estacionamento do campus... Achei que não era possível fazer tantas posições em um carro.
Ela tá de sacanagem? Não estou acreditando que estou tendo essa conversa na farmácia.
- Foi o melhor sexo da minha vida... – Ela suspira, depois se corrige: - Quer dizer, depois do meu marido. Meu marido é perfeito.
Nem ela parece muito convencida disso.
- Nossa, uma vez, eu estava com ele em um pub, daí ele me arrastou pro banheiro...
Eu já escutei muitas histórias sobre o Braga, mas de repente, percebo que não quero mais ouvir. Ela continua falando, mas eu me sinto... Ofendida. Todas essas mulheres saem falando assim sobre ele como se ele não tivesse direito à privacidade, como se ele fosse um objeto, como se não tivesse qualquer sentimento... Isso não é certo.
- Desculpa, Antonella, mas não quero ouvir.
- Ah – ela parece envergonhada por um segundo, mas depois dá uma risadinha: - Então, você é uma dessas?
- Uma dessas o quê?
- Acha que vai conquistar o coração do Braga?
Que merda de cidade pequena, ninguém tem mais o que fazer?
- Não acho nada disso, não tenho nada com o Miguel.
- Miguel – ela repete. Estala a língua. Esperamos o resultado do teste rápido na salinha. Ficamos em silêncio por um tempo, então ela diz: - Sabe, Julinha, a gente se conhece desde o colégio, então vou ser sincera aqui... Ouça os conselhos de uma mulher casada, tá bem? Não é à toa que estou casada. Aproveite a sua vez com o Braga, mas não se iluda, garota. Ele não passa de um cafajeste sem coração. É uma pica de ouro e nada mais.
Filha da puta.
Quero que ela cale a boca, mas decido não falar nada.
Estou borbulhando de ódio.
Quem ela pensa que é pra falar assim comigo? Quem disse que eu quero os seus conselhos idiotas? Foda-se que ela é uma mulher casada! Quem disse que eu quero me casar com o primeiro barrigudo calvo que aparecer na minha frente? Como ela ousa chamar o Miguel disso? Ela saiu como ele o quê, duas vezes, no máximo três, e acha que tem o direito de classificá-lo assim?
Estou revoltada, estou enojada, quero gritar que ela é uma pessoa fútil, superficial, que não conhece o Miguel, que não sabe a primeira coisa sobre o Miguel...
O resultado sai. Negativo. Saio da salinha que nem um furacão, deixo a grana em cima do balcão e atravesso as fileiras de cremes e desodorantes. Abro a porta e estou do lado de fora, o sol faz meus olhos doerem e quero chorar.
Não tenho covid.
Uma parte de mim estava com medo de ter covid de novo. Outra parte queria ter. Isso explicaria tudo. Se eu estivesse com covid, eu não estaria louca.
Essa parte que desejava estar com covid quer chorar. Essa parte faminta e confusa está triste, arrasada, cansada. Quero chorar, mas o Miguel está na minha frente. Ele estava esperando no banco em frente à farmácia.
Ele se levanta devagar. Não consigo olhar pra ele agora. Não quero lidar com isso agora. Estou mais preocupada comigo.
Estou com fome, meu estômago ronca, minha garganta dói, vomitei mais vezes na última semana que na minha vida inteira. Não sei o que tenho, só sei que não tenho covid e estou confusa, tão confusa. Viro as costas pra ele. Dou passos rápidos pela rua, em direção ao restaurante. O sol está forte hoje, minha calça está caindo, estou meio tonta.
Ele chama meu nome, se coloca à minha frente, acho que ele vai falar alguma coisa, mas não diz nada. Suas mãos estão nos meus braços, depois na minha testa. Ele afasta a minha franja, seus olhos são dois poços de preocupação.
- Não tenho covid – falo pra ele. – Não precisa se preocupar, deu negativo.
- Eu te falei, eu não estive com mais ninguém...
- Não é você, sou eu...
- Por favor, não fala isso – ele diz.
Não sei que conversa é essa, acho que estou muito aérea para ter uma conversa normal, são 17h da tarde e não comi nada o dia todo. Me sinto fraca. Apoio a minha cabeça no seu peito. Sinto a sua mão na minha nuca. Ele fala alguma coisa no meu ouvido, mas não entendo. Seu coração martela contra a minha testa. Não estou ouvindo mais nada, só ouço um zumbido...
Tudo fica preto.
Acordo no restaurante. Minha cabeça está pesada. Acho que desmaiei. Eu nunca tinha desmaiado antes... Maria e Renata cochicham em um canto, Edu está falando baixinho com alguém.
- Pode ter sido o calor, mas... Não come direito... Está passando mal a semana inteira... Não sei o que ela tem...
Estou deitada em um dos sofás do restaurante. Minha cabeça está no colo de alguém. Sei, pelo peso da mão na minha cabeça, que é o Braga.
- Entendi. Vou levar a Júlia para o hospital – escuto a voz do Miguel. Edu concorda.
- Eu posso levá-la, Braga... Aí, você não precisa largar o seu restaurante por causa disso – diz Renata, de repente muito solícita. - Certeza que é só pressão baixa, um salzinho resolve.
- Deve ser pressão baixa – concorda Edu – e fome. Maria e Renata, acho que vocês podem começar a preparar tudo para o jantar, a Júlia não vai ajudar a gente hoje.
- Mas...
- O Miguel está com a Júlia – resolve Edu. – O Carlos pode ajudar na sua cozinha, Seu Miguel. Eu fico aqui.
- Não preciso ir para o hospital – murmuro. Tento me levantar, tudo fica preto de novo.
- Me deixem sozinho com ela – pede Miguel. Ouço passos, Renata resmunga alguma coisa, Edu fecha a porta da cozinha.
Abro os olhos devagar. Vejo o rosto do Miguel me encarando. Ele está sem máscara. Seus movimentos parecem lentos, como se eu estivesse debaixo d'água. Ele passa álcool-gel nas mãos. Tem um prato na frente dele, um copo de água gelada. Ele abre o saleiro no prato, dá uma batidinha. Ele lambe o próprio dedo, pressiona o prato cheio de sal. O sal gruda no dedo dele e ele coloca o dedo no meu lábio.
- Abre, Júlia – diz ele, pressionando meu lábio com seu dedo cheio de sal.
Eu abro a boca, seu dedo encontra a minha língua. Isso é ridiculamente íntimo, mas estou muito fraca para questionar esse método de tratamento.
- Você desmaiou – ele me conta, tirando o dedo. Faz um carinho na minha bochecha. Ouço o saleiro de novo. O sal me anima, o cheiro do Miguel me preenche. Seu dedo está na minha boca de novo, ele passa sal na parte de dentro do meu lábio inferior. – Desculpa por ter te deixado tão nervosa.
Fecho os olhos, respiro fundo.
- Não desmaiei por sua causa.
- Essa história toda, eu posso explicar se você me der uma chance...
- Não ligo pras suas mulheres, Miguel – suspiro de olhos fechados. O sal se mistura ao gosto de menta na minha boca. Quero mais sal, estou morrendo de fome. Ele está dizendo que não tem outras mulheres, mas eu o interrompo: – Pode fazer isso de novo?
Ele coloca mais sal no dedo, mas eu me sento. Minha cabeça está leve agora. Não me sinto mal, não sinto nada além do cheiro dele. Quero esquecer que estou ficando louca. E apesar do nosso encontro interrompido na noite anterior, não sinto raiva. Só sinto essa vontade de esquecer, de me perder no cheiro dele, de ignorar que ontem não deu certo. Ele está aqui agora.
Me viro pra ele, subo no seu colo, passo as pernas em volta do seu troco. Ele parece apavorado. Seu dedo está cheio de sal e ele pressiona o meu lábio, enquanto eu coloco as mãos na nuca dele.
- Você está passando mal... – ele diz, mas seus olhos estão na minha boca. – É minha culpa.
Lambo o sal do dedo dele. Devagar. Ele se remexe embaixo de mim, fecha os olhos por um instante. Sei que ele não está raciocinando direito, porque ele fala meu nome de um jeito que me dá um arrepio. Tudo bem, também não estou raciocinando.
- Você não é capaz de me fazer desmaiar.
Ele sorri: - Vejo que você está se sentindo melhor... Acho que tenho que te levar para o hospital.
- Odeio hospital – confesso, chegando mais perto.
- Preciso fazer alguma coisa. Preciso te ajudar...
- Não quero ajuda.
- O que você quer, então?
Quero você. Quero um beijo, agora.
Encosto meus lábios nos dele. Ele abre a boca um pouquinho. Nosso beijo tem gosto de sal. A língua dele encontra a minha. Passo a mão na sua barba. Ele me beija devagar, sua mão hesita na curva do meu quadril, outra mão toca a minha nuca. Quero aprofundar o beijo, mas lembro que todos os funcionários estão na cozinha e eu estou montada no Miguel. Alguém pode passar na rua e ver. Miguel se afasta, passa o nariz no meu com carinho.
- Quero um sanduíche – respondo e ele sorri.
***
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