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Música: Good goodbye, Lianne la Havas
(a música está na mídia e na na playlist "Café com Suga" E também em uma playlist especial que fiz para o capítulo "good goodbye", as duas no meu perfil do Spotify - @mclarah. Bem, escolham sua música triste e vamos lá!)
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Promessa
Taebaek, setembro de 2018.
Quinze horas de avião, duas escalas, 6 horas de carro, duas crises de ansiedade e um comprimido de rivotril depois. Sinto o aperto da mão do manager Kim no meu ombro e noto que falhei em me despedir quando ele se distancia, balbuciando algo que sou incapaz de compreender. Mesmo assim, maneio com a cabeça, sentindo o universo em câmera lenta enquanto volto os olhos para a construção à minha frente. Salmão, verde água e branco são as cores descombinadas das paredes de cimento daquele conjunto comercial, em muito já descascadas e sujas pelo descuido e pelo tempo. Respiro fundo fitando a escada que me levaria à sobreloja, sentindo o ar me faltar no meio, e me esforço para pegar minha mala do chão, em uma subida apressada, como se esse minuto fosse compensar tudo que já perdi.
Quando preciso respirar mais uma vez sou detido diante da porta pelo medo. Sinto medo de tocar na madeira, medo de passar pela porta, medo do que vou encontrar ali dentro, desde a disposição dos móveis, suas cores, seu estado de conservação até a quantidade de cômodos do apartamento. No fundo, não é nada disso, mas minha cabeça ainda tenta me proteger do que de fato me espera. O medo me congela por segundos e só noto que estou segurando o ar quando sinto minhas mãos formigando. Aperto os dedos contra o punho e, como se meus braços pesassem toneladas, toco na porta branca, os olhos tão apertados quanto os punhos, enquanto espero pelo som da maçaneta que não vem. Queria ter tido a ideia de pegar meu celular no bolso da calça e fazer uma ligação, mas meu punho direito se abre até girar a maçaneta em um movimento quase reflexo, sem muito compreender quando o pequeno apartamento de Mirae se projeta para mim, por trás do portal de madeira branco.
O cômodo é, em partes, como imaginei: único, apertado, poucos móveis, cozinha conjugada, uma porta ao fundo que exibe o banheiro pela porta entreaberta, as paredes claras, piso de madeira gasto e um sofá creme que destoa de todo resto, e não porque é a única coisa que parece nova ali, mas é porque é sobre ele que Miyoung dorme. Encolhida, braços cruzados na frente do corpo coberto por uma camiseta branca larga, sua cabeça encostada sobre uma almofada, os cabelos caindo sobre o rosto num balançar discreto, pelo qual o ventilador de pé no canto do cômodo é responsável, ela dorme.
Entro com cuidado, levantando a mala do chão para não acordá-la, e fecho a porta atrás de mim que range discretamente. Tiro os sapatos e antes que pudesse encostar a mala na parede, meus movimentos são travados pelo que vejo disposto ao lado da televisão, sobre o aparador de madeira escura. Desejo conseguir engolir o nó que se forma na minha garganta enquanto meus olhos vacilam entre o objeto e Miyoung, dormindo a poucos metros de tudo o que restou da sua mãe.
Talvez não tenha me dado conta, mas só o pensamento da insignificância da existência, da minha existência, me faz hiperventilar. Pontos escuros tomam minha vista e me sinto um idiota, ainda que não me surpreenda, quando as lágrimas descem quentes pelas minhas bochecha.
A urna guarda silenciosa as cinzas de Mirae. Tudo, literalmente, reduzido a pó. Toda a sua breve existência, quarenta e oito anos compactados em cerâmica, com alguns detalhes pintados em ouro. Eu sei porque foi um pedido meu, uma demanda a empresa que pagasse por todos os gastos, sem economizar em nada. Mirae teria um velório tradicional, no melhor salão de Taebaek, com os melhores adereços e a urna mais "bonita", o que, geralmente, é proporcional ao preço. E por um instante abstraio do significado daquilo e comparo o objeto com o restante dos enfeites da casa e ele destoa, de forma que a delicadeza dos desenhos em fio de ouro, as flores sobre o fundo branco, pareça grosseiro e de mau gosto. Não há nada que indique que Mirae estaria satisfeita de ter seu conteúdo depositado em um objeto que não parece fazer par com seu gosto. Ali aquilo parecia só um "enfeite" deslocado, talvez pudesse ser um "presente" caro de um primo distante, algo pago por alguém rico sem um pingo de bom gosto. Se eu era o alguém rico que custeou todas as despesas do velório, desejava ao menos ser alguém capaz de compreender e honrar os desejos finais de Park Mirae.
O pensamento tem um gosto amargo na minha língua que tenciona o céu da minha boca e, de repente, sinto um espaço vago em um lugar onde nunca estive. Me questiono como é possível que o "não estar" seja um lugar quase que físico: a ausência. Seguro um soluço na garganta e apresso o passo até o banheiro. Bato a porta com o mesmo cuidado que tive até agora e os soluços soam baixo no cômodo apertado e de iluminação precária. Aperto os olhos e tento secar as lágrimas, enquanto pensamentos contraditórios me atravessam. Afinal, o que importava mesmo a opinião dela se ela não estava mais aqui?
Na verdade, tudo o que um dia Mirae expressou ativamente, em forma de opiniões, agora não passavam de fragmentos que permaneciam naqueles em que ela conheceu. Naquela em que eu conheço. Talvez seja isso: vivemos nos outros na medida em que somos lembrados. O timbre da voz de Miyoung faz com que tudo em mim se ajuste por um bem maior, quando ela chama o meu nome. Respiro fundo e mesmo que o meu pulmão me deixe na mão, insisto e seco os olhos, lavando o rosto na pequena pia, encarando o meu reflexo quebrado e amedrontado no espelho retangular.
Abro a porta e Miyoung está de pé, logo ao lado da porta, coçando os olhos que, ao notarem minha presença, se direcionam a mim com pesar. Suas pálpebras estão inchadas e há rastros de que infinitas lágrimas caminharam por ali, mas apenas rastros, pois eu seus olhos estão secos, mas, sobretudo, vazios e perdidos. Seu peito se move em uma respiração lenta e profunda quando eu a cerco com os braços, sem dizer uma palavra sequer. Ela descansa a cabeça sobre meu peito e sinto todo o peso do seu corpo sobre mim, como se ela só estivesse de pé por minha causa. Reforço o meu abraço cruzando os braços por suas costas e afago com uma mão seus cabelos, aperto-a tão forte que sinto as batidas calmas do seu coração tocando em mim, e é doloroso.
— Eu sinto muito. — digo, finalmente, quase em sussurro, incapaz de colocar força na minha voz, em uma batalha interna com as lágrimas que se formam no canto dos meus olhos. Sinto sua cabeça se mover contra o meu peito em uma resposta silenciosa. E seu silêncio me engole, é angustiante.
Aprumo seu corpo apenas com uma das mãos, pois me adianto secando com a outra uma lágrima que escapou dos meus olhos marejados, mas Miyoung rompe nosso contato de forma brusca e desvia seus olhos dos meus, me oferecendo um café, perguntando sobre a viagem, em uma sequência de palavras apressadas, enquanto caminha pelo cômodo. Sigo seus passos, mas nego o café e vou atrás de suas mãos, puxando Miyoung para perto, acolhendo-a da forma silenciosa que posso com um beijo na testa.
— Eu vou fazer um café pra gente, bem forte e sem açúcar. — declaro, soltando suas mãos, só para senti-la me puxando de volta.
— Yoongi, — ela respira fundo e sinto o meu ar se esvair com a forma que esconde seus olhos vacilantes dos meus. — obrigada.
Nego com a cabeça, afinal, não há nada que ela precise me agradecer, até porque qualquer coisa que eu fizesse não seria suficiente.
— Não, é sério. Obrigada... por tudo. Eu prometo que vou te pagar os gastos, você sabe...— Miyoung segue evitando meus olhos e passa a mão pelos cabelos lisos, agora amarrados em um coque.
— Jagiya, por favor... não me agradeça. Eu queria tanto ter chegado antes. — disse, e eu sentia mesmo muito. Eu queria muito ter chegado antes, ter jogado tudo pra cima, ter pegado o primeiro voo de Malta para Seul, ter acompanhado ao menos o último dia do velório, estar ao lado dela quando ela mais precisou de mim, segurar sua mão, apoiá-la pessoalmente. Eu não queria ter sido quem envia um preposto de Seul para assinar os cheques e pagar as contas.
— Eu sei que você fez o que pôde... — e não foi o suficiente, pensei em resposta à sua fala, mas me resumi a acariciar sua mão.
— Eu vou fazer o café... e sobre os gastos, nem pensar. — balancei a cabeça negativamente, depois de deixá-la, indo em direção à bancada da cozinha. Ela me seguiu posicionando uma cadeira ao lado de uma pequena mesa de apoio fixada à parede, onde debruçou-se com queixo apoiado nas mãos, enquanto me passava orientações sobre onde encontrar o café solúvel e os demais utensílios. Enchi o ebulidor e, enquanto aguardava a água ferver, apoiei as costas sobre a bancada, fitando Miyoung que parecia, em segundos, ter sido transportada para outro lugar. Tudo nela indicava seu estado de esgotamento físico e mental, as olheiras, as pálpebras inchadas, os olhos avermelhados e rosto pálido que abrigava um olhar opaco e desolado.
Misturei o café solúvel nas canecas e ouvi ela resmungar quando eu perguntei onde ficava o açúcar e, mesmo que a contragosto, me indicou a localização no armário retangular, deixando escapar um esboço de algo que, em outro dia, teria sido um sorriso, pois na sequência adocei com uma colherada generosa o meu café. Posicionei as canecas sobre a mesa e puxei outra cadeira, me sentando ao seu lado. Miyoung me agradeceu e aproximou a caneca do rosto, soprando o café, talvez mais para se distrair do que para, efetivamente, esfriar a bebida. Toquei seu braço em um carinho delicado e a vi apertar os olhos, como se sentisse dor física com minha manifestação de afeto e recolhi a mão, sem saber muito o que fazer e me concentrei no meu café, bebendo devagar a bebida doce. Afinal, de amargo já bastava todo o resto, é o que pensei.
— Sabe que muitas pessoas foram? — ela disse olhando para a parede cor de creme, a tinta gasta, as ranhuras na parede, xícara na altura do rosto, e riu sem um pingo de humor. — Até pessoas que nunca falaram comigo no colégio... Devem ter ficado com pena.
— Miyoung, sua mãe era uma pessoa querida... não pense assim. — disse com cautela, escolhendo as palavras.
— É, acho que sim... Inclusive, as pessoas contribuíram bastante, a Sra. Hwang disse. Agora não sei o que fazer com o dinheiro, você sabe que é uma tradição... — comentou sem ânimo e senti meu coração apertado imaginando Miyoung tendo que passar pelos três dias de velório sozinha, recebendo condolências de pessoas semi-desconhecidas.
— Jagiya, era a única coisa que eu podia fazer... — disse me sentindo impotente.
Esse sentimento trouxe de volta à memória a ligação que recebi dela na última quinta-feira, e era inevitável, meus olhos já estavam ardendo e sinto um nó se formando na minha garganta. "Yoongi, a minha mãe... a minha mãe, ela... morreu.", a sua voz embargada partida por soluços. "Eu não sei o que fazer." Parei no meio da rua, me sentei no meio-fio, abracei os os joelhos e escondi o rosto enquanto repetia incansavelmente "eu sinto muito, não se preocupe, vou cuidar de tudo". Miyoung estava entrando no ônibus quando desligamos, logo antes de dizer destruída: "Ela estava sozinha, Yoongi, não tinha ninguém com ela, ninguém..."
Park Mirae foi vítima de um AVC quando preparava o café da manhã antes de ir trabalhar e foi encontrada, muito provavelmente, próximo da onde estávamos agora. Ninguém a socorreu ou sabia o que tinha acontecido até que sua patroa notasse que a loja não havia sido aberta pela mesma mulher que fazia isso há quase trintas anos. E, certamente, segundos antes de descobrir sua morte, estava reclamando sobre a funcionária irresponsável que havia deixado os clientes esperando, sem que soubesse que o curso daquela vida havia sido interrompido abruptamente. Sua mãe morreu sozinha, Miyoung verbalizou algumas vezes no telefone, como se a morte não fosse, essencialmente, solitária. Ela estava fixada pela ideia de que talvez pudesse ter evitado, mesmo que isso dependesse que sua vida fosse redesenhada, o relógio girando ao contrário, que ela tivesse continuado morando com a mãe, desistido da faculdade, de Seul, de tudo. E eu sabia que, em silêncio, ela se culpava, presa às armadilhas infinitas do que cabe no "e se", desconsiderando nossa impossibilidade de mudar o passado.
— Você não precisava ter pagado tudo, agora não sei o que fazer com as contribuições... — ela suspirou fundo, entre um gole e outro do seu café que eu imaginava bem amargo. Se para mim, já bastava a amargura da vida. Para Miyoung, o amargor do café nem se comparava ao amargor da sua vida.
— Você pode doar para caridade, alguma ONG... posso falar com os advogados da BigHit. Só me fala pra onde você quer doar... — Miyoung deu de ombros e me senti mal pela pergunta, era óbvio que ela não tinha uma instituição na ponta da língua, era óbvio que aquilo não chegava a fazer coro com suas reais preocupações.
— Quanto tempo você vai ficar? Você vai ter que voltar para Malta? – o que Miyoung tentou ocultar na sua voz, forçando firmeza, transpareceu nos seus olhos aflitos. Ela não queria ficar sozinha.
— Não vou voltar, vou ficar aqui com você... — e eu não a deixaria sozinha. — Quanto tempo for necessário.
— Yoongi, eu não quero causar problemas...
— Miyoung, eu não me importo com o que eles pensam, eu vou ficar com você... Se eles não conseguem compreender isso, me dar só algumas semanas, é melhor me expulsar logo... — tento soar firme, mas não pareço convencê-la.
— Não exagera, Yoongi. Ninguém vai te expulsar de nada, eu não vou deixar isso acontecer, não posso carregar mais essa culpa. — ela voltou a apoiar o rosto sobre as mãos, cotovelos sobre a mesa, e desviou o seu olhar do meu.
— Não vai acontecer nada, jagiya, eu já combinei tudo...
— Ninguém parou a agenda de vocês quando a avó do Tae faleceu... E foi só a sua sogra Yoongi, sei lá... — a voz de Miyoung não chegava a expressar a indignação de outros tempos, estava monótona e cansada, muito cansada.
— Miyoung, eu não sou mais nenhum rooker, ou eles entendem a situação ou entendem a situação. Não se preocupe com isso... — quis passar segurança, mas ela só suspirou, terminando de beber o que restava na caneca.
— De qualquer forma, eu não quero ficar aqui... Tudo me lembra dela e só de pensar que... — ela não vai voltar, era o que queria dizer eu sabia. Sua voz, porém, se quebrou e ela escondeu os olhos com as mãos. — Bem, também não faz mais sentido ficar aqui e eu tenho que esvaziar o apartamento, ele é da Sra. Hwang. Sabe... — soltou um suspiro pesado. — A vida da minha mãe me deixa deprimida, não quero pensar muito nisso, mas ela não tinha nem um apartamento próprio, vivia sozinha, não amava ninguém, morreu sozinha. Eu não quero pensar que ela foi infeliz, mas é inevitável...
— Sua mãe te amava e sentia muito orgulho de você, Miyoung. Ela te amava muito e tenho certeza que isso bastava pra ela, jagiya... — disse sem nenhuma segurança de conseguir consolá-la. Acariciei sua bochecha e vi uma lágrima solitária descer por seus olhos até tocar meu polegar. A partir daí foi impossível tentar conter as minhas, afinal, aquela havia sido a primeira vez que Park Miyoung chorava na minha frente. A primeira vez em sete anos.
— Yoongi, eu nunca pensei que pudesse sentir isso, uma tristeza assim... É como se eu estivesse sendo engolida, como se estivesse sumindo, eu não sei... — ela confessa, tentando controlar sua respiração. Miyoung parecia querer engolir toda a tristeza, tentando manter para si as lágrimas que, segundos depois, inevitavelmente, escorreram por suas bochechas sem que eu fosse capaz de secar todas. Aflito, puxei-a pela mão e a coloquei sobre meu colo, aconchegando seu corpo no meu num abraço apertado, de quem queria conseguir pegar toda a sua tristeza para mim.
Levei-a no colo até a cama de solteiro encostada na parede, fechei as cortinas e deitei ao seu lado, abraçando-a apertado, buscando consolá-la com nossa proximidade. Miyoung chorou baixo contra o meu peito até, finalmente, conseguir dormir. Trocamos o dia pela noite e quando eram quase dez horas, pedi algo para comermos, antes que voltássemos mais uma vez para a cama. Entrelaçamos as mãos e ficamos em silêncio um bom tempo antes que Miyoung adormecesse. A madrugada, porém, foi agitada e de tempos em tempos ela acordava sobressaltada e se lembrava que sua mãe não estava mais aqui, que não a veria novamente, pensamentos que vinham sempre acompanhados de soluços inconformados, suas mãos puxando minha camisa, as minhas cercando seu corpo.
Na manhã seguinte, Miyoung acordou decidida a arrumar o apartamento, se movendo apressadamente de um lado para o outro, enquanto me dava ordens sobre quantas caixas precisaríamos, o que tínhamos que comprar na rua, o que eu deveria guardar, onde e como. Contratamos uma empresa para levar a maioria das coisas para doar a instituições de caridade, enquanto o sofá e algumas outras caixas seriam transportadas para Seul. Miyoung disse que o único móvel que queria ficar da casa era o sofá. Sua mãe havia comprado-o há pouco tempo e sempre falava orgulhosa do móvel bonito, como queria mostrá-lo para a filha. Engoli o choro ouvindo Miyoung falar sobre o sofá e prometi guardá-lo em um container até que pudéssemos, finalmente, nos mudar para o mesmo apartamento, já que o sofá não caberia em seu flat. E, enquanto cercava seu corpo com meus braços, depositei um beijo na sua testa, marcando a minha promessa.
O dia foi longo e muito pesado para Miyoung, guardando as coisas de Mirae em caixas, cercada pela ausência da mãe em cada detalhe. A maioria das coisas foi doada, mas Miyoung cuidou de guardar fotos e recordações, e no final do dia restaram apenas poucos móveis para que a transportadora levasse na manhã seguinte. Miyoung mal conseguiu dormir e passamos a noite entre lágrimas e sussurros, em que ela compartilhava memórias de sua mãe, comentários dela sobre nós, sobre mim. Foi quando descobri que eu era a grande aposta de Mirae, quem finalmente conseguiria "amolecer o coração da sua filha", Miyoung soltou bem humorada. Beijei sua testa, pedindo uma confirmação da constatação da sua mãe, e ela se resumiu a assentir com a cabeça, deixando um beijo no meu ombro antes de se afastar alguns centímetros para me fitar no escuro e sussurrar um "eu te amo", intensificado por toda aquela atmosfera densa que nos cercava. E foi ali, naquela madrugada, que eu tive certeza de que eu e ela estávamos construindo algo permanente. E não era apenas uma sensação, era como se nosso futuro fosse tão certo que eu poderia tocá-lo. Essa foi a primeira vez em que a ideia de pedi-la em casamento deixou de ser só uma ideia e tornou-se um plano. Talvez mais que um plano, algo como uma condição, pois ali senti que dependíamos de forma tão intensa um do outro que seria insuportável estarmos separados.
O dia se sobrepôs à madrugada e, naquela manhã, Miyoung encarou pela última vez o apartamento onde cresceu. A casa de tantas memórias, agora vazia diante dos olhos, como se os últimos dias tivessem sido destinados a desconstituir materialmente a existência da sua mãe. Seus olhos estavam marejados e ela me pediu alguns minutos sozinha dentro do cômodo, soltando o aperto da minha mão. Atendi prontamente e decidi esperá-la no carro o tempo que fosse necessário até que ela conseguisse girar a chave, se despedindo de tantas coisas ao mesmo tempo.
— Vamos? — após alguns minutos, Miyoung afivelou os cintos após se posicionar no banco do carona e ajeitou sobre o colo a urna de cerâmica. Olhei-a antes de dar a partida, mas seu rosto estava direcionado à janela, focado no conjunto comercial que, aos poucos, deixávamos para trás.
Acompanhei pelo GPS do celular, apoiado sobre o painel do carro alugado, o endereço até o parque que ficava aos arredores da cidade. A região tinha um relevo montanhoso bonito, com pedras pontiagudas intercaladas entre regiões verdes, a qual integrava o Parque Nacional de Taebaek. A estrada passou a se tornar cada vez mais curvilínea e íngreme e o painel indicava que a temperatura do lado de fora havia caído alguns graus devido à altitude.
Não demorou mais que meia hora para que encostasse o carro em um pequeno estacionamento, em uma das entradas do parque. Me adiantei e abri a porta do carona para Miyoung que segurava firme a urna. Ao sair do carro, ela se direcionou a um mapa a poucos metros da estacionamos que indicava a direção de algumas trilhas e pontos turísticos na extensão do parque. Acompanhei-a silenciosamente, enquanto caminhávamos trilha à dentro, os olhos divididos entre a vegetação, ao mesmo tempo atento a qualquer ressalto que pudesse ter na estradinha de chão, preocupada com o objeto delicado que carregava Myoung. Alguns minutos depois, pegamos um desvio na estradinha à direita, um caminho de cascalhos em descida. Quando o caminho tornou-se mais íngreme, um barulho discreto de correnteza fez-se audível e Miyoung precisou se apoiar em minha mão para conseguir completar a trilha até a pequena queda d'água que nos esperava abaixo. Quando estávamos diante do córrego, Myoung procurou os meus olhos como se quisesse se certificar de algo e eu olhei nos seus e entendi que havíamos chegado. Assenti lentamente, entendo que esse era um momento seu, e me sentei um pouco afastado sobre uma pedra na lateral da correnteza assistindo o movimento da água, respirando fundo, sentindo o ar fresco devido à altitude do lugar.
A imagem de Miyoung, porém, não estava alheia à minha contemplação e notei que ela se agachou na margem do córrego e agora desfazia o laço que havia em volta da tampa da urna de cerâmica, posicionando, em seguida, a tampa sobre uma pedra. Ela pareceu encarar por algum tempo a urna aberta antes de abaixar a cabeça, observando o movimento da água, até virar calmamente o conteúdo da urna, despejando as cinzas de Mirae no córrego. As cinzas eram como areia densa, mas foram se dispersando aos poucos por entre as pedras, descendo água abaixo, se integrando ao movimento da correnteza.
A urna foi tampada novamente e Miyoung deixou-a na pedra ao lado, onde também sentou para tirar o par de tênis e dobrou a calça jeans, deixando que a água entrasse em contato com os seus pés. Meu coração estava apertado, encarando-a ao largo, mas o barulho da água tinha um efeito calmante, que eu esperava que conseguisse chegar até Miyoung.
Alguns minutos depois, após notar que passava a mão no rosto, ela se virou, chamando pelo meu nome, esboçando um sorriso que contrastava com os olhos avermelhados. Ela colocou sua mão sobre o espaço que havia ao seu lado, o que entendi como um pedido que eu me sentasse e foi o que fiz. Assim que me sentei, os braços de Miyoung atravessaram minhas costas, tocando o tecido da camisa de flanela, me apertando para junto de si. Passei com cuidado meus braços em volta do seu pescoço e depositei um beijo no topo da sua cabeça.
— Obrigada. — sua voz soou fragilizada e eu apenas neguei com a cabeça, ela não precisava agradecer, mas prosseguiu. — Obrigada por estar comigo, por não me deixar sozinha.
Eu entendia nas entrelinhas, ouvia um alívio misturado com medo no timbre da sua voz: ela tinha medo de ficar sozinha, da mesma forma que imaginava ter sido a sua mãe. E quando me peguei apertando-a mais forte, beijando o topo de sua cabeça novamente, eu entendi que esse não era só um medo dela, era o meu também. Talvez seja o de todos nós.
Obrigado, Miyoung, por não me deixar sozinho. Eu não cheguei a verbalizar. Em voz alta, eu apenas reforcei a promessa de cuidar dela, como eu havia feito à sua mãe anos atrás. Dessa forma, eu tinha certeza que estaria fazendo jus à vontade final de Park Mirae, cuidando do bem mais precioso que ela havia deixado.
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"O que a memória ama, fica eterno
Te amo como a memória, imperecível."
(Adélia Prado)
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Hello amores,
eu peço desculpas pelo capítulo triste. Não nego que foi muito difícil escrevê-lo, mas ele já estava no roteiro da história desde o início... Então, queria muito saber o que acharam!
Bem, esse foi o último capítulo da story-line não linear de Café com Suga (2010-2025), mas ainda temos mais dois capítulos pela frente antes de dizermos adeus para o nosso casal!
Sigo aguardando ansiosa os votos e comentários, eles são essenciais para incentivar a autora aqui!
ps. se alguém quiser ler alguma coisa mais feliz depois desse baque, eu publiquei uma coletânea de contos com tema Carnaval (BTS vs. Brasil), "Muitos Carnavais | BTS"! Aguardo vocês lá!
Beijos da Maria ❤️
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