Capítulo 9: A fuga
Benício
A semana passou voando e já é sábado novamente. Hoje acordei e a primeira coisa que pensei foi que faz uma semana desde que saí com Charlene e Elaíse. Eu me diverti muito com as duas e por vários momentos pensei que seríamos uma boa família. Mas Charlene não merece um homem incompleto como eu, e nem Elaíse. Então, eu mantive a distância novamente.
Quer dizer, dessa vez, eu fugi. Eu praticamente fiquei enfiado no escritório da livraria o tempo inteiro. Fui embora de lá sempre em um horário que não tivesse risco de nos encontrarmos. Tudo deu certo porque não as vi nenhuma vez, então, por que isso me incomodou tanto?
Estou preparando um café, quando minha irmã entra na cozinha e murmura um bom dia estranho. Violeta bate a porta do armário e, aparentemente, não sou o único incomodado com algo.
- Tudo bem? - Pergunto.
- Tudo...
Ela responde, mas claramente não está. Não sei direito o que fazer. Eu gosto de respeitar o espaço das pessoas, mas ela é uma adolescente e precisa saber que pode contar comigo.
- Como foi a festa ontem?
Ela foi em um churrasco no sítio de seus amigos. Como era perto, ela voltou de carona. Nós temos o combinado de ela sempre passar em meu quarto e avisar quando chega, assim ela fez e não me parecia ter nada de errado.
- Horrível. Eu preferia não ter ido.
Um alerta soa em minha mente. Primeiro, me preocupo que algo de grave tenha acontecido e em seguida, percebo que eu nem notei que ela não estava bem.
- O que houve, Vi?
Ela não responde e solta um suspiro. O cabelo rosa caindo em seu rosto.
- Preciso saber se fizeram algo com você.
Eu digo preocupado e nada sutil. Péssima abordagem, nem parece que quase me formei em psicologia.
- Não fizeram nada.
- Vi...
- É sério, Beni, não fizeram nada. - Então, ela abaixa o olhar e brinca com sua xícara de chocolate. - Eu que fiz. - Diz envergonhada.
Meu coração acelera e muitas coisas passam pela minha cabeça. Violeta bebendo muito - não sou iludido, sei que adolescentes da idade dela já bebem um pouco -, Violeta se drogando, Violeta transando sem camisinha. Jesus, eu ainda não tinha vivido essa parte de ser responsável por uma adolescente.
- O que você fez?
Eu pergunto controlado dessa vez porque eu preciso que ela se abra. Recebo o silêncio de volta. Então, a água do café ferve, eu vou preparar e pego mais biscoitos. Minha irmã continua em silêncio e algo vem em minha mente. Eu não sou um pai. Ela e eu nunca tivemos essa relação, então eu não preciso manter a pose que os pais geralmente mantêm. Eu posso mostrar que também erro e sofro. Não que pais não possam, mas sei lá, não sei se pais mostram vulnerabilidade.
- Estou fugindo de Charlene.
Digo enquanto me sento novamente e isso chama a atenção dela, embora agora eu esteja me sentindo um bobo.
- Vocês não saíram semana passada?
Ela me pergunta. Ela não quis ir com a gente porque Alane tinha acabado de voltar e Violeta quis ir para a pousada.
- Sim e foi excelente.
- E por que você está fugindo?
Dou de ombros e pago na mesma moeda que ela: o silêncio. Ela revira os olhos, mas sorri um pouco.
- Você é um bobo, Beni.
Então, ela suspira e pega um biscoito.
- Eu briguei com a Fabiana ontem.
Fabiana é a melhor amiga de Violeta.
- Por quê?
- Ela está com um namorado novo e ele é horrível. E ela só quer saber dele, só sai com ele, só dança com ele, só anda a cavalo com ele. Não podemos mais fazer nada juntas. - Ela balança a cabeça em negativa. - Não, ele não é horrível, ele é lindo e trata a Fabi muito bem e vai tirar minha amiga de mim.
Eu prendo a respiração por um segundo porque Violeta finalmente está se abrindo para mim e porque minha intuição começa a gritar algo que eu sempre percebi. Violeta desvia o olhar novamente e continua:
- Eles não param de se beijar o tempo todo e aí ela e eu discutimos e...Ah, deixa pra lá.
Mais uma vez ela para de falar. Dessa vez, eu não uso jogos ou adivinhações, eu apenas falo a verdade.
- Vi, estou aqui para te ouvir e tentar ajudar. Você pode contar comigo e pode confiar em mim.
Os olhos dela se enchem de lágrimas e ela não foge do meu olhar. Confesso que estou em um momento agridoce, odeio que ela esteja magoada com alguma coisa, mas estou estranhamente feliz por ela não se esconder de mim.
- Eu dei um beijo nela, Beni. Eu... Não acredito que fiz isso, sabe.
- E ela? Como ela reagiu?
- Ela me beijou de volta e saiu correndo, depois ficou fugindo de mim e peguei carona com a primeira pessoa que foi embora, mas eu queria ter vindo antes.
- Certo, antes de falar sobre isso, preciso te lembrar: você me liga. Quer ir embora de algum lugar e não tem como vir, me liga. Eu sempre vou te buscar.
Ela sorri para mim.
- Tá bom, obrigada!
- Sobre a Fabi, você vai ter que deixar a vergonha de lado e pedir desculpas. Não dá pra fingir que não aconteceu nada.
- Eu sei e odeio isso.
- E sobre o beijo... Você tem todo o direito de querer explorar isso.
- Já faz um tempo que eu tenho me interessado por garotas também, mas nunca tive coragem de fazer nada e aí eu faço justo com minha melhor amiga?
- Talvez seja porque você confia nela.
- Você não está bravo?
- Vou ficar bravo se você deixar de viver por medo. Você não está sozinha e se alguém te fizer mal, eu estou aqui. As pessoas dessa cidade já me odeiam mesmo, posso dar motivo para alguém me odiar de verdade, se esse alguém machucar você.
Ela sorri de novo e para minha surpresa, ela me abraça e beija minha bochecha.
- Obrigada, Beni. Você está perfeito nessa coisa de irmão mais velho.
E eu sinto mais uma parte do meu coração derreter.
Ela se levanta, lava sua caneca e o prato que comeu os biscoitos. Começa a sair da cozinha, mas para na porta.
- Então... Aquele papo de não viver por medo, talvez você devia ouvir seus próprios conselhos.
Irritante. Garotinha irritante. Porém, antes que ela saia, nós escutamos um barulho vindo do lado de fora, parece uma cerca quebrando e vasos de plantas também. Violeta e eu nos olhamos e corremos para o lado de fora. Meu sexto sentido me dizendo o que é e eu me recusando a acreditar nisso, mas ao abrir a porta, eu confirmo meu pesadelo.
- Evaristo!!!
Violeta grita.
- Não é possível que Flora e Erik não aprenderam a controlar esse maldito bode!
Evaristo é um bode do demônio que tem na pousada. Ele sobe em telhados, quebra coisas, come flores. Virou até uma celebridade na internet porque uma vez invadiu o restaurante da pousada.
Aliás, olho para Violeta e ela está gravando o filho de satã correr por meu jardim e comer minha flores. Eu vou até ele e consigo segurá-lo.
- Inferno!
Eu tinha acabado de acordar quando Violeta entrou na cozinha, ainda estou sem camisa e quando ele começa a pular, tenho alguns arranhões.
- Vou levá-lo para Flora.
Digo a Violeta e imediatamente, entro em meu carro. Vai ficar cheio de pêlos e Erik vai ter que limpar depois.
A pousada não é longe, chego em cinco minutos. Assim que estaciono, Vicente - um dos funcionários da pousada - fica aliviada ao ver Evaristo.
- Ele foi até sua chácara? - Me pergunta.
- Sim, esse bicho está sem controle!
- Aqui, nós compramos uma guia.
Quem diz isso é Charles, outro funcionário. Eu abro a porta do carro e Evaristo sai imediatamente. Charles e Vicente conseguem contê-lo.
Vejo Ana Flora - a dona da pousada na piscina - e vou até ela. Meu coração dispara porque quando eu me aproximo, vejo que Charlene está com ela.
Eu fico sem fôlego. Ela está com um biquíni vermelho e seu corpo faz o meu tremer. Imagino como seria afastar cada peça e ver seu corpo descoberto.
- Ué, é hoje que vamos tirar fotos do calendário dos trabalhadores rurais?
Ana Flora pergunta debochando e só então percebo que vim sem camisa.
- Você não controla seu bode maldito.
Digo.
- Evaristo fugiu?
- Você nem percebeu?
- Estou em um dia de meninas, Erik é quem está trabalhando.
- Então volte ao trabalho porque seu noivo não está dando conta.
- Ah, sim, você sabe como é... Erik não sabe mesmo gerenciar um negócio.
Ela diz brincando. Erik foi um dos empresários mais importantes do país. A família dele e de Flora eram donos de uma rede de lojas de varejo. A história é longa, mas uma tragédia fez Flora desistir de tudo e vir parar aqui. Anos mais tarde, Bernardo (que sabia onde Flora estava) fez com que Erik viesse para cá e reencontrasse Flora. Agora, os dois estão noivos e transformando a pousada em um resort.
- Você está machucado?
É Charlene quem me pergunta.
- Desculpa, eu nem te cumprimentei.
- Ah, você precisava destilar seu ódio ao Evaristo. - Ela diz brincando - Tudo bem.
Eu sorrio para ela e noto Elaíse dormindo em um pequeno colchão entre Flora e Charlene. Ela parece um anjo.
- É só um arranhão. Presente do querido Evaristo de vocês.
- Está sangrando. Você devia limpar.
Ela diz observando meu abdômen. Eu sinto meu coração disparar. Sei que ela é médica e que não está me observando da mesma forma que eu estava olhando para ela, mas seu olhar em mim...
- Vou fazer isso quando chegar em casa. Eu já estou indo.
- Você devia aproveitar que tem uma médica aqui e deixar que ela resolva. - Ana Flora diz.
- É só um arranhão. - Eu repito.
- Dois, na verdade. - Flora diz. - Eu fico olhando a Elaíse, vocês podem ir até minha casa. No armário do banheiro tem um kit de primeiros socorros.
Ela diz e nos deixa sem alternativa. Charlene vai em minha frente e sou um bastardo porque o tempo inteiro olho para sua bunda. O tecido vermelho do biquíni não tampa muita coisa e mesmo assim eu queria ver mais.
Noto uma tatuagem e ela tem uma Colombina. Quais as chances disso?
- Você e Elaíse dormiram aqui?
Eu digo para puxar assunto e esquecer que ela tem tatuada a representação da imagem que nomeia minha livraria. Se eu fosse um desses caras sonhadores, diria que é o destino.
- Sim. Tomamos café e fomos para a piscina.
- Eu também tinha acabado de tomar café, por isso estou assim.
Eu digo como se eu estar sem camisa fosse pauta de conversa.
- Hum, bem... estou assim porque eu estava na piscina.
Ela diz sorrindo e eu sorrio sem graça. Chegamos até a casa de Ana Flora e Erik. Eu hesito um pouco. É a casa que eu cresci. Entrei poucas vezes aqui desde que minha mãe morreu. Nada aqui está igual, mas ainda sinto um desconforto.
- Tudo bem?
Ela me pergunta.
- Sim, só pensando como tudo está diferente.
Menos eu. Menos essa sensação de impotência e de covardia que me assolam.
- Hum... Eu nunca tinha raciocinado que você tinha crescido aqui. Qual era seu quarto?
- O de frente para o da Flora, acho que Erik o transformou em escritório.
Nós chegamos no banheiro e ela pega tudo o que precisa.
- Está realista.
Ela diz olhando para baixo. Sigo seu olhar e ela está vendo a minha tatuagem das garras do Wolverine. O sangue do arranhão escorreu um pouco e sujou a ponta das garras.
Quando ela passa o algodão molhado, eu recuo um pouco. Ela sorri.
- Dói, né?
- Arde um pouco.
A mão dela é leve e eu aproveito para fechar os olhos. Preciso me controlar. Ela limpa o outro e eu estremeço. Então, quando ela para, eu abro os olhos. Agora ela está olhando para a fênix renascendo do fogo que eu tenho tatuada.
- É minha preferida.
- Você é todo tatuado, consegue ter uma preferida?
- Algumas... Mas essa... é mais pelo momento. Fiz quando completei um ano sóbrio.
Ela leva a mão para tocar minha tatuagem, mas para no meio do caminho. Eu seguro sua mão e a levo até a fênix. Charlene sorri e contorna o desenho com o dedo, como se estivesse fazendo a imagem. Ela solta um suspiro.
- Benício...
- Sim?
- Eu gosto quando a gente não briga. - Ela diz e sorri.
- Eu também.
Então, ela olha para mim. Seu rosto está tão perto do meu. Nossos corpos quase encostados por causa do banheiro minúsculo. Nesse momento eu gostaria tanto de ser um desses caras que aproveita todas as oportunidades para sexo ou um amasso. Cristo, eu estava há minutos em minha cozinha, conversando com minha irmã. Eu nem disse para Violeta que hoje resolvi tirar o dia de folga para irmos ao shopping em São Bento. Agora estou aqui, quase sem ar porque tudo o que eu quero é beijar Charlene. Seguro novamente sua mão, minha respiração pesa um pouco quando ela olha as tatuagens do meu braço porque sei que ela pode ver além das tatuagens. Seus olhos fixos ali me dizem que ela viu tudo.
- Mas às vezes, brigar é mais fácil do que me contar sua história, certo?
Ela diz em tom profundo que mais uma vez quebra meu coração. Minha história... Eu já contei parte dela, partes que mesmo feias, não chegam perto de tudo o que vivi. Partes que formam apenas a ponta do iceberg. Eu não posso beijar essa mulher, não posso ceder. Ela tem uma família. Ela tem uma filha. As duas se bastam e se um homem entrar na vida delas, não pode ser para pesar.
- Certo.
Eu digo derrotado. Ela se afasta e vai até a porta do banheiro.
- Você nunca vai me deixar entrar, não é?
- Charlene...
Ela para e me olha. Eu a observo novamente, de cima a baixo. Tento guardar essa imagem para mim.
- Eu é que não posso sair. - Digo. Eu realmente sinto que não tenho força para sair do casulo que criei.
Ela balança a cabeça em sinal de reprovação. E sai. Eu me encaro no espelho e mais uma vez sinto a covardia me encher.
- Como foi sua quarta-feira?
Charlene diz e eu olho para a porta para ver que ela voltou. Por um instante, não entendo.
- Minha quarta?
- Sim...
Eu ainda fico sem entender, até lembrar que quarta-feira, Erik e Ana Flora foram até minha chácara e me convidaram para ser um de seus padrinhos. Aparentemente, a mulher em minha frente sabe ler minha mente porque ela diz:
- Quem diria que você seria um dos padrinhos logo deles, não é? Acho que você já está saindo, Benício, mas não dá para fazer isso pela metade.
Então, ela sai e dessa vez não volta.
Notas da autora:
Olá, Lindezas, desculpa o sumiço, fim de ano é corrido aqui. Vou voltar a postar regularmente nas obras, não desistam, Benício ainda tem muito para nos mostrar (e mostrar pra Charlene também!)
Beijinhos
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro