Capítulo 5: Duas inquilinas
Benício
Um mês passou tão rápido que nem percebi. A livraria está conseguindo caminhar bem, confesso que fiquei receoso já que a cidade é pequena, mas a cidade inteira tem comprado lá.
Tive a ideia de fazer uma área de livros usados, assim os clientes podem fazer trocas e comprar com preços mais baratos. Sofia me convenceu a fazer uma área de jogos de tabuleiros e isso, definitivamente, foi uma excelente ideia porque fez meu público aumentar.
Minha rotina com Violeta tem sido maravilhosa. Todo dia, como agora, tomamos café da manhã juntos. Eu dou carona até a escola, depois, ela vai para a livraria e nós almoçamos juntos em casa com Margarida. Às vezes, ela ainda ajuda na pousada ou no restaurante do deck, mas agora que está no terceiro ano, tem diminuído seus afazeres. Outras vezes, ela apenas vai lá ver todo mundo. Ela cresceu naquele lugar, com aquelas pessoas.
— A Flora disse que hoje a Charlene vai vir de vez.
— Hum… não achei que ela viesse tão rápido.
Eu digo fingindo desinteresse. Depois do exame de Priscila - que confirmou os cálculos na vesícula - eu não ouvi mais falar de Charlene. O que foi um pouco de tortura porque sem novas lembranças eu repassei em detalhes tudo o que nós dois conversamos.
Não aconteceu nada demais, mas foi um dia intenso. Exigiu bastante da minha bateria social, mas as conversas que tivemos no carro… Foi como se eu estivesse em um universo paralelo. Eu fui sincero, eu fui receptivo… tudo o que ela me perguntou, respondi sem esforço.
Estar com ela me fez esquecer todo o aperto que se instalou desde quando Cecília me falou sobre o Luan.
Eu até pedi desculpas. Além disso, eu fui sincero quando disse que estava aliviado por saber que Elaíse não tinha um pai escroto. Aliviado até demais.
— Eu estava pensando uma coisa. - Ela continua dizendo.
— O que?
— Pensei em perguntar se Charlene não vai precisar de uma babá.
— Vi, você sabe que não precisa trabalhar, não sabe? Você pode me pedir se precisar de dinheiro. Eu quero que você estude.
— Eu sei, mas estou acostumada a ter uns trocados. Alane sempre me deu um dinheiro quando eu ajudava. Eu gosto de ter algo meu.
— O meu dinheiro é seu também.
— Não é a mesma coisa.
Eu não digo nada, pois entendo. Eu nunca esqueci o sentimento de liberdade quando comecei a trabalhar e ganhei meu dinheiro.
— Então… - ela continua - Ser babá pode ser uma forma de trabalhar sem largar totalmente os estudos. Eu posso estudar um pouco nas horas de descanso da Elaíse, e eu nem sei se a Charlene precisaria de algo todo dia. Talvez a Elaíse já vá para a creche.
— Isso faz sentido. Bom, perguntar não ofende. Quando você estiver com ela, você pergunta, mas me promete que se isso atrapalhar seus estudos, você vai pensar em outra coisa.
— Eu prometo! Obrigada.
— De nada!
Termino de tomar meu café e sigo em direção a pia.
— Beni…
Eu conhecia aquele tom e sabia o que ela ia perguntar.
— Sim, Vi?
— Nada ainda?
Eu suspiro. Ninguém sabia o que tinha acontecido naquela maldita pousada. A única pessoa que sabia, era leal demais a minha mãe e não contava.
Eu tentei, juro!
— Nada, Vi.
— Talvez eu devesse falar com a Margarida.
Eu deixo minha xícara na pia e me viro para Violeta que me olha ansiosa.
— Olha, Vi, eu tentei e percebi que ela ficou angustiada. Ela prometeu a nossa mãe que nunca contaria.
Margarida é quase nossa segunda mãe, não dizer faz ela sofrer. Eu acho que se você perguntasse… Acho realmente que ela ficaria muito triste, não sei se ela merece esse peso.
Ela suspira e parece pensar no assunto.
— Você tem razão…
— Mas o detetive que o Erik indicou… vamos dar tempo a ele, quem sabe ele não descobre. Certo?
— Certo. Tudo bem.
Sorrio para ela e vou terminar de me arrumar, ela parece mais animada no caminho para a escola e eu realmente torço para que um dia, eu tenha a resposta que ela quer.
Mais tarde, Sofia chega quinze minutos atrasada. Ela tem um semblante preocupado.
— Desculpe, eu tive uma emergência.
Eu franzo a testa.
— Não tem problema, 15 minutos não são nada. Você está bem?
Quando eu pergunto, seus olhos estão cheios de lágrimas. Eu fico nervoso, não sei lidar com isso.
— Ei, o que aconteceu?
— Querem tirar a casa da minha mãe. Estão dizendo que ela não pagou, mas pagou. Eu mesma ajudei em algumas parcelas. Sempre trabalhei de babá.
— Vocês não tem os comprovantes dos depósitos?
— Minha mãe tinha certeza que estava em uma pasta que ela guarda todos os documentos, mas não estão. Simplesmente sumiram, não sei se foram para o lixo em alguma faxina… ficamos até tarde procurando. Eu liguei para o banco e disseram que como já tem mais de três anos, eles não conseguem ver essa movimentação.
Mais de três anos, o que significa que desde cedo Sofia já trabalhava para ajudar sua mãe. Jesus, nós não temos mesmo ideia de como somos privilegiados quando estamos no alto de nosso castelo.
— Isso é absurdo, com certeza eles devem ter essas transações. Talvez um advogado consiga pedir isso. Você conversou com algum?
— E algum conversa sem ter que pagar? Quer dizer, vou ter que fazer isso, mas primeiro eu tenho que me planejar.
— Bobagem. - Eu digo pegando meu celular. - Vou mandar uma mensagem para o Dominique.
— O que? Eu não tenho dinheiro para pagar os serviços dele e além disso, o cara é mais assustador que você.
— Eu vou ignorar a última parte. Ele é meu amigo, tenho certeza que ele pode ajudar. Fique tranquila. Agora vai lavar o rosto e se acalmar. Tome uma água se precisar.
— Tudo bem. Obrigada, chefe.
Sofia volta mais calma, se Dominique não puder ajudar gratuitamente, eu pagarei os serviços dele.
O dia passa como outro qualquer, até que Charlene, simplesmente entra em minha livraria. Jesus! Ela está de tirar o fôlego. Veste um vestido com as cores do arco-íris, ele tem mangas até um pouco abaixo dos ombros, o tecido é solto e está um pouco acima dos joelhos. Seus cabelos são soltos e ela está com uma franja que não estava na última vez que a vi.
— Oi, boa tarde!
Ela me diz sorrindo e eu não consigo não sorrir de volta.
— Boa tarde. Então… Bem-vinda a Serra Dourada?
— Sim, obrigada!
— Em que posso te ajudar?
Ela morde o lábio inferior e parece hesitar um pouco. Uma mexa escapa para seu rosto e ela coloca atrás da orelha.
— Eu vim com o rabo entre as patas.
— E orelhas caídas? - provoco.
— Totalmente. - Ela suspira. - Gostaria de ver a casa, Benício, eu cheguei hoje cedo e estou procurando uma e as únicas que encontrei não parecem boas.
— Eu avisei…
Ela revira os olhos.
— Eu estava torcendo para você não dizer isso.
— Eu precisava, não seria eu se não dissesse. Sofia?
Ela aponta do corredor que está organizando.
— Sim, Chefe?
— Você fica aqui um pouco? Preciso sair rapidinho.
— Claro! - Ela me responde.
Eu peço licença para Charlene, vou até o pequeno escritório que tenho ali e pego a chave.
— Vem comigo?
Ela assente e nós saímos da loja, a entrada da parte de cima fica do lado. Há uma escada e quando subimos, antes mesmo de Charlene falar algo, eu vejo a satisfação em seu rosto. A sala, copa e cozinha são separadas apenas pela distribuição dos móveis, há dois quartos, um banheiro e um quarto menor que era o escritório, esses são separados por paredes.
— Você disse que era mobiliada, mas não imaginei que estava tão completa assim. Isso é excelente! - Ela diz.
— Eu morei aqui um tempo.
— Tudo isso você que escolheu?
— Não, só a cozinha. Cecília mobiliou para mim.
Eu não dou detalhes dessa época da minha vida. Eu já deixei claro que Cecília e eu não somos namorados e nunca fomos. Charlene não precisa de mais explicações.
— Só tem um probleminha. - Eu digo.
— Qual?
Eu a levo até o quarto menor que foi feito de escritório.
— Não sei se é bem um problema. Essa porta dá para a livraria. Ela fica trancada, nós não usamos. Eu só tenho uma chave e posso deixar com você se quiser. É muito ruim?
— Deus me livre de você deixar essa chave comigo e se sumir algo da sua livraria?
Eu levanto uma sobrancelha.
— Você acha que eu vou te acusar de roubo? O mesmo vale pra mim, se sumir algo de sua casa?
Ela sorri sem graça.
— Não é um problema para mim e eu não me importo de ficar com chave nenhuma. Está tudo bem.
Eu assinto. Nós voltamos para a sala e ela me olha. Eu vejo quando ela morde o lábio inferior e eu penso em beijá-lo. Isso me assusta pra caralho.
Quer dizer. Eu estou curado há anos. Mas eu nunca senti necessidade de beijar alguém assim, de maneira tão aleatória e tão intensa.
— O que foi, Charlene?
— Eu não consigo te fazer mudar de ideia?
— Não. Se eu quisesse alugar essa casa, eu aceitaria seu dinheiro, mas não estava nos planos.
— Mas…
— Olha, se você faz tanta questão assim de me dar algo, apenas me diga que podemos te procurar se precisarmos de você na ONG. Isso é o bastante para mim.
— Não.
Ela diz e eu confesso que fico surpreso, mas ela continua.
— Não posso fazer isso porque uma das primeiras coisas que eu vou fazer essa semana é mandar uma mensagem para Cecília e dizer que quero ajudar. Eu já ia fazer isso sem você pedir.
— Isso é excelente, Charlene!
— Obrigado.
Ela sorri para mim e, inferno, é como o paraíso. A simples visão desse sorriso é o paraíso.
— Você não precisa me agradecer.
Ela se aproxima de mim e toca meu braço. Meu primeiro instinto é tirar. Eu odeio que toquem meu braço. Eu odeio que encostem em mim sem aviso prévio, mas é Charlene, então eu apenas relaxo.
— Eu preciso agradecer. Você salvou minha filha, agora você está me dando uma casa.
— Já faz um ano, Charlene e eu não estou te dando essa casa, você sabe, certo? Ela ainda está no meu nome.
Eu digo fazendo piada porque não sei lidar com isso. Eu sei lidar com discussões, com rispidez. Eu não sei lidar com ela me agradecendo e me tocando. Eu me afasto um pouco disfarçadamente.
— Benício, não sei se daqui há 30 anos nós vamos conviver ainda, se sim, eu ainda vou te agradecer por ter pulado naquele lago, se não, eu ainda vou ser grata. Sobre a casa, talvez eu dê um jeito de passar pro meu nome já que não tem comprovação nenhuma que você está alugando para mim.
Ela diz e sorri de novo e eu sorrio também. Poucas vezes em minha vida eu sinto, como agora, o desejo de ser um homem normal.
Não tenho tempo de responder porque a campainha toca. Eu franzo a testa.
— Deve ser os meninos. Eles estão com a Elaíse.
Ela diz, chega na beira da escada e grita que eles podem entrar. Os tais meninos que ela diz são Erik e um outro homem que eu não conheço. Esse homem segura Elaíse no colo e meu coração se enche ao ver a garota. Ela parece ter a mesma sensação porque quando me vê, simplesmente sorri e desce do colo dele!
— Nini!!!!
Ela vem correndo em direção a mim, eu me abaixo para pegá-la.
— Oi, Lalá! Como você cresceu!
— Eu vou morar aqui!
Eu sorrio porque ela parece feliz. Ela é uma cópia de Charlene e eu não me lembro de ter sentido algo bom assim há tempos.
— Tô sabendo. Você gosta disso?
— Sim e eu também vou ter amigos.
Charlene se aproxima sorrindo e dá um beijo em sua filha. Eu sinto quando seu cheiro me invade e ela esclarece:
— Eu estava falando para a Elaíse que fazemos amigos quando entramos na creche.
— E a daqui é muito legal! Tem muitos brinquedos e um parque enorme! Você vai adorar.
Elaíse sorri e a ternura em mim está ali de novo.
— Venha, querida, vou te mostrar onde vai ser o seu quarto.
Charlene sai e me deixa com Erik e o outro cara.
— Esse é o Bernardo, aliás. - Erik diz, eu estendo a mão.
— Benício, mas não sei gosto de você já que você é o responsável por esse pé no saco estar aqui.
Ele sorri e junta sua mão na minha.
— Você sabe, eu precisava me livrar dele. - Seu olhar vai até o quarto de onde podemos ouvir Charlene e Elaíse rindo. - Mas não sabia que eu ficaria sem elas também.
Algo em mim faz o estômago embrulhar. Ele parece ser muito próximo das duas.
— Então, você joga futebol? - Erik pergunta do nada.
— Estou parado há um tempo, mas sim.
— Estamos querendo organizar de jogar toda semana. Você topa? Bernardo vai ficar uns dias antes de voltar para São Paulo.
— Já tem muitos caras?
— Eu, você e Igor. E o Bernardo quando estiver.
— Basicamente você precisa de um time inteiro.
Penso em negar, mas eu já aceitei que minha vida voltou a ser aqui.
— Vou falar com o Dominique.
— Ah, mais cedo falei com o engenheiro que está responsável pelas obras da pousada e ele topou. - Bernardo diz.
— Já está em casa. - Eu digo. - Quanto tempo para você se mudar também?
— Nah… eu gosto da cidade grande.
— Mas ainda não desistimos de convencê-lo. - Charlene diz voltando.
— Vocês querem mesmo povoar essa cidade. - Ele diz.
— A gente quer você por perto.
Ela diz sorrindo para ele e eu sinto inveja. Quer dizer, Charlene já sorriu para mim, mas não de maneira tão especial, tão genuína.
Depois, Charlene e eu fazemos os últimos combinados. Eu deixo a chave e digo que se ela quiser modificar algo na casa, eu posso tirar os móveis, mas ela diz que consegue transformar o quarto de Elaíse em de criança apenas com as coisas dela.
Duas semanas depois, estou conversando com Cecília em um barzinho da cidade, um dos únicos que conseguimos comer bem e ter tranquilidade para conversar. Houve tempos que não estaríamos tranquilos, outros que não estaríamos aqui, mas agora somos apenas conversa.
— Como está com o Luan?
Ela me pergunta. Cecília não trabalha só na ONG, ela também é uma jornalista, por isso nem sempre ela e eu nos encontramos lá.
— Ele confia em mim para conversas bobas, não se abriu sobre o resto.
Só de conversar você já está ajudando.
Eu queria fazer mais.
— Você saiu da pousada, está se estabelecendo aqui, por que não volta a estudar?
Eu sou um bacharel de letras, trabalhei com edição e editoração enquanto morava em São Paulo, mas depois que aceitei meu passado, comecei a cursar psicologia. Precisei parar quando retornei para Serra Dourada.
— Em São Bento o curso é noturno e é meu horário de ficar com Violeta.
Talvez ano que vem quando ela for para a faculdade…
— Ela ainda quer moda?
— Sim, dona Rosa deve estar se revirando no túmulo.
— Benício...
Reviro os olhos e bebo um pouco do meu suco.
— Foi apenas uma piada.
Ela me lança um olhar de reprovação, mas volta o assunto.
— Eu não acho que Violeta se importaria. Você está aqui hoje comigo.
— Ela não está em casa. Hoje ela está cuidando da Elaíse. Charlene vai ter algum compromisso.
As duas se mudaram para o sobrado no dia seguinte. Eu observei a movimentação, fiquei tentado a oferecer ajudar, mas os amigos de Charlene fizeram isso. Eu resolvi os meus problemas com Erik e Ana Flora, diabos, acho que posso até dizer que somos amigos, mas eles, Charlene e Bernardo são um grupo fechado.
— E como está sendo ver Charlene todos os dias?
— O que te faz achar que eu a vejo todos os dias?
— Pelo que me consta, ela mora em cima do seu local de trabalho.
— Mas eu não a vejo todos os dias, eu não fico vigiando se ela está passando e ela não entra pela minha loja.
Exceto que eu olho pela vitrine cada vez que ela passa na calçada. Sempre que Elaíse está junto, as duas me dão tchau pelo vidro. Quando ela está sozinha, ela passa direto, mas eu a olho mesmo assim.
— Você não pode mentir para mim.
— Não é uma mentira - é sim - e por que você me perguntaria como é encontrar com ela todos os dias?
— Benício, eu vejo.
— O que você vê, Cecília? Porque não estou vendo nada aqui.
— Todos a adoram na ONG, sei que todos a adoram aqui e tem… o que?
Duas semanas, penso. Eu vejo isso. Até o Luan que é arredio com mulheres troca algumas palavras com ela.
— Ela é uma boa pessoa e…
Como se minhas palavras a invocassem, surge aqui. Vejo que ela fica surpresa em nos ver e parece não saber o que fazer, mas se aproxima.
— Olá! - Ela diz.
— Oi. - Eu digo.
— Ei, Char! - Cecília diz e me questiono se duas semanas é tempo o suficiente para essa intimidade. - Você quer se sentar com a gente? Quer dizer, eu já estou de saída, mas Benício pode ficar.
Traíra. Isso é o que Cecília é. Ela não mentiu, já está mesmo na hora que ela costuma ir, mas ela basicamente está forçando um encontro.
Charlene parece ficar sem graça e eu acho que nunca a vi assim. Então, eu me lembro que Vi está com Elaíse. Óbvio que Charlene tem um encontro e está sem graça de falar.
— Charlene tem um compromisso hoje. Por isso Vi está com a filha dela. - Eu digo.
— Eu… hum… na verdade, eu estava indo na sua casa - Charlene diz.
Eu estranho e imediatamente penso em Violeta.
— Violeta não apareceu? Aconteceu alguma coisa?
— Não. Ela está em minha casa, eu a chamei porque hoje eu iria até você.
E eu não entendi mais nada.
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