Capítulo XVII ⌛
Josh
Cielo andava estranha há algum tempo. Já havíamos convivido o suficiente para eu poder dizer que seu comportamento estava diferente. Seu humor parecia uma montanha-russa, indo do pico da alegria para uma profunda irritação. Seu ciclo de sono estava uma loucura e a libido também. Nos últimos dias passamos mais tempo fazendo sexo do que qualquer outra coisa. E havia a comida. Cielo comia o tempo todo, de tudo, mas nada durava lá dentro por muito tempo. Gripe estomacal, era a sua suspeita.
Foi o episódio na cozinha que fez um click no meu cérebro. Quando Cielo correu e se inclinou sobre a pia, senti um forte déjà vu. O corpo dela se contraindo, o som, o suor se formando em seu pescoço. Eu voltei seis anos no tempo, quando Jenny estava nos primeiros meses de gravidez. Morávamos juntos na época, eu acompanhei cada mudança do seu corpo e humor. Enquanto ajudava Cielo, minha cabeça voava a mil, ligando seus sintomas à Jenny. Não era exatamente o mesmo, mas definitivamente algumas coisas batiam.
Eu me sentia dormente enquanto caminhava para lá e para cá pela casa. Meu cérebro entrou em um vazio surdo enquanto lavava o vômito da pia. Não podia ser aquilo, eu estava chegando na mesma conclusão que todo mundo ao ver uma mulher vomitar e era ridículo. Cielo tomava anticoncepcional.
Gripe estomacal. Não uma gravidez.
Mas todo contraceptivo era falho. Usamos camisinha quantas vezes? Duas? Na praia? Eu não conseguia lembrar bem. Mas se fosse isso ela desconfiaria, não? Era o corpo dela, como não saberia? E sua menstruação? Quis perguntar, fui até a sala, mas parei. Cielo estava deitada, o braço cobrindo o rosto, a cara pálida. Eu não tinha coragem. E se ela também desconfiasse? Ela teria me dito? E se ela não desconfiasse?
Resolvi sair e comprar um teste. Eu tinha que tocar no assunto, eliminar aquelas dúvidas. Se Cielo começasse a rir e me chamar de louco, eram só alguns trocados desperdiçados, caso não... Bom, faríamos a prova.
Dirigi até uma farmácia não muito longe da casa dela. Meu estômago estava contorcido de nervosismo, a sensação de além corpo ainda não havia passado. Caminhei entre as prateleiras, procurando pelos testes, mas sentindo que não estava realmente vendo os produtos. Encontrei, junto com vitaminas e mais coisas para grávidas, comicamente próxima a parte das fraldas.
O cara do balcão, um homem com mais de sessenta, pegou o teste e tentou ler o código de barras com a máquina, mas não estava funcionando.
– Desculpe, anda travando ultimamente. – ele falou.
– Tudo bem.
Batuquei os dedos enquanto esperava. Ele me olhou por cima dos óculos.
– É para a sua namorada?
Eu levei um segundo para perceber que ele estava falando comigo.
– Ahn, sim.
– Ela também tentou matar você?
– Desculpe, o quê?
– Minha namorada tentou me matar quando desconfiou que estava grávida. Ela até pegou uma faca.
Encarei, sem saber o que dizer. O senhor riu e balançou a cabeça.
– Mas foi só com o nosso primeiro filho. Com o segundo a notícia foi melhor recebida.
– Ela ainda não sabe.
– Que está grávida?
– Sim, quer dizer, acho que ela não desconfia.
A máquina finalmente apitou. Coloquei o dinheiro sobre o balcão. Ele mexeu as sobrancelha e apertou os lábios.
– Bom, se eu fosse você eu esconderia as facas antes de mostrar isso aqui pra ela.
Balancei a cabeça e peguei a sacola. Estava pronto para ir, mas acabei perguntando:
– Quanto anos tinha? Quando aconteceu?
– Dezenove. Beth tinha dezoito. Duas semanas antes da formatura dela.
– E foi... Muito difícil?
O senhor soltou um uuf.
– Foi como ir para a selva sem qualquer experiência ou guia. – seus olhos voaram para mim, parecendo notar o que havia acabado de falar. – Não quero assustar você, garoto. Também houve momentos maravilhosos.
– Eu ajudei a criar meu sobrinho, já estive na selva.
– Ah, não estava falando do bebê. Beth mudou completamente, os hormônios e tudo isso, às vezes eu olhava para a garota de fitas e sorrisos doces e encontrava... – ele balançou a cabeça. – As facas continuaram escondidas.
Peguei a sacola.
– Obrigado.
– Boa sorte, garoto.
Acenei e fui embora.

Cielo estava dormindo quando cheguei. Tirei os sapatos e subi com cuidado na cama, para não acordá-la. Toquei seu rosto levemente, mas ela se moveu então afastei a mão. Procurei alguma mudança aparente em seu corpo, o rosto estava arredondando? Olhei para sua barriga coberta pela camisa. Virei a cabeça rapidamente e levantei. Peguei o teste, para que ela não o encontrasse caso acordasse, e desci.
Na cozinha, procurei por água e limões. Cielo poderia acordar ainda com náuseas e precisaria de algo natural para ajudar. Ela andava tomando algum tipo de medicamento? Aquilo poderia fazer mal ao... Merda, ela precisava acordar.
Fui até as gavetas, peguei uma faca e a fechei. Antes de soltar o puxador, pensei melhor e voltei a abrir. Recolhi todas as facas, olhei ao redor e as escondi junto com os panos de prato.
Espremi os limões na água e coloquei um pouco de açúcar. Remexi os armários procurando algum recipiente que pudesse usar. Jenny costumava ter muitos enjoos nos primeiros meses e eu preparava picolés de limão para ela. Cielo não tinha formas de picolé, então teria que comer como sorvete, de colher. Quando acabei com aquilo, limpei a mesa do café e lavei a louça.
Enquanto secava as mãos ouvi um celular vibrar na sala, o aparelho se movia sobre a mesinha de centro. Era o de Cielo. Dei uma olhava e vi “Mãe”. O aparelho ficou imóvel por um segundo, então voltou a vibrar. Olhei para as escadas, depois para o celular de novo. E se fosse alguma coisa com o sr. Irvine? Atendi.
– Alô?
– Cielo?
– Ah, não, sra. Irvine, aqui é o Josh.
– Olá, Josh. Como vai?
– Tudo bem.
Eu estava ainda mais nervoso. Não havia voltado a encontrar a mãe de Cielo desde aquele dia humilhante.
– Onde está a Cielo?
– Ela está dormindo.
– Oh. A essa hora?
Sentei no sofá, apoiando o braço livre no joelho e passando a mão no rosto. Talvez fosse coisa da minha cabeça, mas também me sentia um pouco enjoado.
– Ahn, ela não estava se sentindo muito bem, resolveu deitar de novo.
A sra. Irvine ficou em silêncio do outro lado da linha por um momento.
– O que ela tem?
– Eu... Não sei muito bem, um mal estar. – tive medo de falar a palavra “náusea” e que ela chegasse logo na mesma conclusão que eu. Estava paranoico.
– Entendo. Bom, peça para ela me ligar quando se sentir melhor, por favor.
– Claro, pode deixar.
– Até mais, Josh.
– Tchau, sra. Irvine.
Coloquei o celular de novo na mesinha e levantei, me perguntando quanto tempo Cielo dormiria. Caminhei pelo andar térreo, colocando coisas no lugar e acabei esvaziando o cesto de roupa dela, ligando a máquina de lavar. Acabei na cozinha outra vez e comecei a preparar o almoço, o prato mais complicado que eu consegui lembrar, para manter minha mente ocupada. Quase no fim percebi que levava muita pimenta, nada bom para um estômago sensível, então terminei aquilo e comecei a picar legumes e os cozinhei no vapor.
Era quase meio dia quando subi outra vez para olhá-la e a encontrei na mesma posição. Estava dormindo como uma pedra. Ocupei o lugar ao lado da cama e esperei, pensando em Jenny e em como nossas vidas deram um giro após a chegada de Garnett.
– Que horas são?
Baixei o olhar e a vi acordada, a cara amassada.
– Quase meio dia.
– Eu dormi tudo isso?
Fiz carinho em seu rosto, percebendo que havia sentido saudade. Foi estranho estar em sua casa sem a voz dela me seguindo.
– Como está seu estômago? – perguntei.
– Bem, eu acho. O que foi?
Desviei o olhar para a janela. Meu coração martelava com força e meu corpo formigava. Eu precisava acabar logo com aquilo, a ansiedade estava me matando aos poucos.
– Eu comprei uma coisa e eu acho que... Eu acho que você deveria experimentar.
Cielo sentou, desengonçada.
– O quê?
Peguei a sacola com o teste, hesitando, revendo minhas alternativas. Não havia nenhuma. Coloquei sobre sua perna e esperei. Cielo abriu e deu uma olhada lá dentro. Vi seu rosto congelar, então seus olhos vieram para mim.
– Isso é um teste de gravidez.
Balancei a cabeça, devagar.
– Por que você... – ela segurou a caixinha entre os dedos, olhando mais uma vez, como se fosse descobrir que se tratava de outra coisa. – Eu não estou grávida.
– Não está? – minha voz saiu incerta, mas com uma ponta de esperança. Agora seria o momento em que ela diria algo que eliminaria aquela hipótese.
– Não posso estar.
– Por que não?
– Porque... Porque eu tomo a pílula. Você sabe... – enquanto explicava, sua voz subia, como se ao mesmo tempo que falava sua cabeça lhe mostrasse os mesmos sintomas que eu observei.
– Cielo...
– Não posso estar.
– Quando foi a sua última menstruação?
Ela me olhou e minha barriga gelou, como quando estamos andando em uma calçada e, sem percebermos, ela acaba.
– Eu não tenho certeza...
– Você não ficou desde que voltamos. A gente dormiu junto muitas vezes, eu teria notado.
– Não, eu... Foi antes da viagem. A última vez foi alguns dias antes da viagem. Como eu não percebi isso? – ela saiu da cama e caminhou pelo quarto, as mãos na nuca. – Mas é impossível. Eu tomo a porra da pílula. Eu não estou grávida.
– Não é totalmente eficaz.
– Mas sempre foi.
Levantei também e tentei tocar seus braços, mas ela me afastou e virou as costas.
– Sempre funcionou. – repetiu, mais baixo.
– Vamos fazer o teste e...
– Não.
Parei a frase no meio e a olhei.
– Mas precisamos...
– Não precisamos. Estou com a droga de uma gripe estomacal, Josh. Só isso. – Cielo virou para mim, o olhar duro me desafiando a contrariá-la.
A campainha tocou lá embaixo. Continuamos nos encarando até que tocou de novo e de novo.
– Eu vou atender. – falei, me movendo.
– Não, eu vou.
Ela passou por mim e desapareceu. Lancei um olhar para o teste sobre a cama e suspirei. Não poderia obrigá-la a fazer xixi.
Saí do quarto e antes de chegar nas escadas ouvi a voz da sra. Irvine.
– Oh, graças a Deus!
– Mamãe, o que foi?
– Por que não atendeu o celular? Eu fiquei muito preocupada!
– Eu não ouvi tocar, mãe. Por quê está tão angustiada? – o tom dela estava irritado. Ouvi a porta ser fechada e passos. Permaneci no andar de cima.
– Bom, Josh disse que você estava dormindo...
– Josh?
– Sim, quando eu liguei pela primeira vez.
– Eu estava dormindo mesmo. Ah, aqui está o celular. Sete chamadas perdidas, mãe?
– Eu estava preocupada!
– Preocupada com o quê?
– Você não é de tirar sonecas. Não atendeu o telefone e Josh estava aqui... Não sei o que aquele garoto tem, mas ele estava estranho.
– Então a senhora achou que ele tinha me matado?!
– Sim, foi exatamente o que achei! Precisei esperar que Susie chegasse para pedir que ela ficasse com seu pai e eu viesse aqui.
– Encontrar meu corpo e o assassino?
– Não brinque com isso! Aliás, onde ele está?
Caminhei em silêncio até a porta do quarto de Cielo e a bati com um pouco de força, então desci as escadas.
– Sra. Irvine! – cumprimentei, tentando sorrir, mas meu rosto parecia feito de cimento.
– Josh, olá. – ela me olhou de cima a baixo, depois se virou para a filha. – Josh disse que você estava se sentindo mal.
– Josh exagera bastante. – Cielo me lançou um olhar feio. – Estou faminta, vou fazer um sanduíche.
Ela marchou para a cozinha.
– O que há com ela? – a sra. Irvine perguntou.
Apenas dei de ombros.
– Vocês brigaram?
– Não... Quer dizer, eu não sei.
Ouvimos uma gaveta ser fechada com muita força lá dentro.
– Onde inferno estão minhas facas, Raven?!
A sra. Irvine me olhou confusa.
– Acho melhor eu ir embora.
Ela estava abandonando o barco e me deixando sozinho.
– Até mais.
Fui para a cozinha e peguei as facas escondidas. Cielo não me perguntou nada, parecia que não queria mais falar comigo nem mesmo para gritar. Eu a assistir preparar um sanduíche com raiva, não comentei toda a comida que havia cozinhando.
– Por que você não faz de uma vez? – perguntei.
– Porque não há necessidade.
– Se tem tanta certeza...
Cielo largou a faca que usava na mesa e cobriu o rosto com as mãos. Me aproximei devagar, até estar ao seu lado.
– Você também tem dúvidas.
– O antibiótico.
– O quê?
– Eu fiquei doente antes da viagem, estava terminando de tomar antibióticos.
– E isso anula o efeito da pílula?
Ela não respondeu. Continuou escondida por um tempo, então levantou de repente, a raiva explodindo de novo.
– Merda. – grunhiu e saiu apressada.
Eu a segui pela sala e escadas. Cielo pegou o teste sobre a cama e foi direto para o banheiro, fechando a porta na minha cara. Coloquei ambas as mãos na madeira, depois bati os punhos ali. Dei meia volta e sentei na cama.
Quanto tempo levaria? Minhas mãos tremiam, só percebi quando meus olhos se focaram nelas. As apertei em punhos outra vez e pressionei contra meus olhos. Minha cabeça era um mantra. Por favor, por favor, por favor.
Alguns minutos depois ouvi a descarga. Ergui a cabeça e encarei a porta. Nada. Continuei esperando. Levantei.
– Cielo?
Ela não respondeu. Talvez ainda não estivesse pronto. Dei algumas batidinhas na porta enquanto a abria devagar. Passei metade do corpo para dentro e dei uma olhada.
Eu a encontrei no chão. Estava chorando.
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