Sangue do Profeta
Um desejo que transcende o tempo e as realidades.
O artefato que permaneceu durante um longo período inativo, com seu gêmeo retornando ao seu lar, preencheu de ânimo quem esteve no limbo e agora poderia reviver em toda glória. Absorvendo o sopro de vida, seus dedos mexeram para alertar a equipe que a ascensão se aproximava.
Um calor estranho e invasivo, localizado no centro do peito, inundou seus sentidos letárgicos e, aos poucos, empurrou-o de volta para a realidade. Seu cérebro desacostumado com as novas percepções e vagamente sonolento enviou impulsos para que o restante do corpo reagisse progressivamente, adaptando-se ao ambiente. Tudo em si concluiu que a hora finalmente chegou – durante os últimos anos, sabia que faltava pouco para emersão à nova vida.
O gatilho que precisava acionou-se e, como consequência, seu profundo sono criogênico no tanque de estase fora desativado prontamente.
Tinha mais consciência do fluído amniótico congelado que estava sendo drenado de dentro, escutou o som das máquinas antigas, porém funcionais, executando seu trabalho programado. Um clique suave destrancou a passagem e, lentamente, abriu os olhos, piscando inúmeras vezes para abrandar o incômodo em sua retina com a luz parca.
Quando seus pés vacilantes tocaram o chão frio, caiu sobre seus joelhos, ainda não totalmente situado com as ações do próprio corpo. Endireitou-se, abandonando a fraqueza inicial, tocando o pingente que sempre carregava consigo: no qual uma safira encontrava-se afixada. A pedra ressoava profusamente, emitindo uma leve descarga pela atmosfera comprimida do laboratório secreto, o brilho azul denso que diminuiu a força conforme os segundos passavam.
Perguntou-se, a princípio, quantos anos tinha ficado estagnado, mas logo desatentou-se a essa mera informação.
Para testar seus limites atuais, projetou sua mente fragilizada na busca do que serviu como ponto de ruptura do seu estado de animação suspensa, não conseguindo um bom alcance. Entretanto, independente desse atraso, sabia muito bem o que seria e, dessa vez, ninguém o deteria em sua implacável vingança contra toda sociedade de heróis.
Reascendendo as chamas da raiva que o consumiam, lembrou do que perdeu, sentindo suas células incendiarem ferozmente.
Uma figura com trajes brancos, tão obsoletamente familiares, veio para saúda-lo como parte do protocolo, meneando a cabeça em uma forma de respeito.
— Bem vindo de volta, Senhor Lionheart.
— E você é? — indagou com frieza, mal reconhecendo a própria voz.
— Eu sou a responsável atual pela empresa e os experimentos e estive há um longo tempo aguardando seu retorno. — o sorriso de deleite dela se converteu em algo perverso. Identificou algo nela que recordou tempos passados, uma lembrança fresca de seus últimos passos antes de sua hibernação. — Eu lhe darei os dados coletados durante esses anos, sobretudo, a respeito do desenvolvimento das quirks.
— Ainda falta um assunto.
— Um assunto? — repetiu, cética.
— Está na hora de retomar onde parei.
E esse assunto pendente, aguardando tempo o bastante, não teria mais atrasos.
×××
Naquela manhã, não muito mais cedo do que costumava acordar no meu mundo – mesmo nos fins de semana –, fui agraciada com um convite do meu tio postiço, All Might, para acompanhá-lo nas comprar de alguns suprimentos em um mercado nas proximidades. Apesar de todo clima estranho e o fato de estarmos nos conhecendo, ele se esforçava para ser um bom anfitrião e desenvolver um entrosamento melhor com uma adolescente desconhecida que se abrigou em sua casa, tinha créditos pela tentativa amigável. Como sendo um dos personagens que mais gostava na trama, não recusei sua oferta e mostrava estar aberta para a aproximação. Talvez por não ter filhos durante sua ocupada carreira como Símbolo da Paz, sua experiência para lidar com crianças em fase de crescimento não era das mais refinadas.
De certa forma, ambos aprenderiam melhor um com o outro pela convivência.
Fascinada, admirei as ruas com pessoas de diferentes aspectos transitando tranquila e livremente, indiferentes às particularidades físicas de alguns, o padrão de aparência naquela realidade, sem dúvida, era surreal comparado ao outro, sequer interferia na beleza exótica bastante proeminentes na sociedade. Sem perder o ritmo, prossegui o trajeto pensando em como tudo soava feito uma fantasia, um devaneio louco e intrigante.
Chacoalhei a cabeça, limpando a mente e obedientemente segui meu tutor para o mercado em um silêncio solene – escolhendo mentalmente uma oportunidade para abordá-lo e romper a atmosfera embaraçosa. De longe, pela vidraça do local, tive um rápido vislumbre de uma figura familiar caminhando errantemente para uma direção oposta à nossa. Enquanto All Might estava centrado nas compras, fui sorrateiramente, movida pela curiosidade, atrás do que pudesse ser, assustando-me com a vidente que Nora e eu consultados antes de parar ali. Ela não transpareceu surpresa com o encontro tampouco com minha presença tão intempestiva para confrontá-la.
Uma coincidência um tanto quanto bizarra, mas é mais uma pra minha coleção.
– Finalmente! – resfoleguei pela breve corrida, impedindo-a de qualquer possibilidade de fuga. – O que raios você fez? Por que estou aqui? – despejei uma corrente de perguntas sem tempo para pausas.
– Eu não fiz nada, apenas uma previsão. E como vê, não estava enganada. – a suavidade refletida em sua explicação por pouco não fez com que esquecesse o impulso colérico.
– Por que me enviou para esse mundo? – recobrei a calma, mas não apagando a raiva, unicamente contendo-a para não perder o controle. – Como volto para casa?
– Como eu disse: não fiz nada. – encurtou a distância simbólica que nos separava. – Lembra o que comentei da última vez?
Vasculhei os recantos da minha mente, escavando por baixo de todo choque dos eventos recentes, e relembrei o tópico de “ser filha de dois mundos” e dos Anunciadores.
– Se refere aos árbitros do destino e essas balelas?
A vidente riu da minha observação descrente.
– Você vai entender na hora certa.
– E o que tenho a ver com isso? E que hora certa? – proferi impaciente. – Preciso de respostas!
A mulher, sem titubear, apontou incisivamente para os Anunciadores como se a mera manifestação deles fosse uma surpreendente revelação.
– Você é como eles, alguém que deve preservar o balanceamento natural do destino. – sua resposta inconclusiva não esclareceu nem metade das minhas dúvidas, mas antes que pudesse processar o ocorrido, ela me entregou um cartão. – Quando estiver pronta, procure-me, até lá, faça o que precisa ser feito.
Engoli em seco, a ponto de protestar, quando um chamado cortou minha ação bruscamente. Virei-me para a origem do som, deparando-me com All Might, carregando algumas sacolas e estudando minha feição surpresa.
– O que houve? – era perceptível uma pontada de desconfiança na preocupação externada em sua voz mais grossa.
Guardei o cartão discretamente.
– Eu estava... – abismada, procurei a vidente que desapareceu magicamente. – Ajudando uma moça... – corri para perto do herói e peguei metade das bolsas de compras, assumindo uma postura mais solícita.
Retornando à estaca zero, suspirei com a falta de diálogo, mesmo não sendo o melhor exemplo para iniciar um. Na verdade, até a atual circunstância, não tínhamos nada para compartilhar um com o outro.
– All Might. – escutei alguém dizer euforicamente, mas, pelo volume vocal restringido, bastante prudente. Meu coração disparou ao ver, ao vivo e a cores, o garoto que protagoniza o anime e mangá homônimo de Boku no Herói Academia: eu não estava mentalmente preparada ainda para esse encontro mais cedo do que o previsto, no entanto, deveria entender bem que eventualmente isso aconteceria.
– Jovem Midoriya.
Izuku Midoriya era o, bastante promissor, futuro novo Símbolo da Paz que substituiria o All Might, nada mais óbvio que ele procurar a orientação do seu ídolo. Puramente por um instinto, um tanto anormal e constrangedor, escondi-me atrás do pro-herói, aturdida com minha própria ação sem sentido.
Calma, Skarlet, respirei fundo, obrigando meus pulmões a se encherem mais que o necessário para amenizar meu nervosismo, falhando miseravelmente.
Ignorei deliberadamente uma boa parte da conversa, despertando do torpor com o par de olhos sobre mim. As orbes verdes me analisaram com minúcia, tal qual geralmente fazia ao escrever, em um de seus cadernos de anotações, sobre um herói e suas aptidões físicas.
– Você é... Sobrinha do All Might? – seu tom interrogativo parecia uma cuidadosa inspeção no terreno novo, embora sua intenção não fosse, pela minha avaliação, deixar-me assustada. Um sorriso brilhante emergiu da fisionomia doce e amigável que dele emanava. – Prazer em conhecer, sou...
– Izuku Midoriya – cortei com um grau de confiança. – O herdeiro do One for All.
Com o terror estampado em seu rosto, com aqueles olhos esmeralda adoráveis que lembravam um cervo, alternou sua atenção de mim para o herói em um pedido mudo por explicação – consciente do segredo que os dois guardavam, não tinha como alguém de fora possuir tal conhecimento.
– Esse é o meu poder. – tomei a iniciativa, não querendo intimidá-lo com meu excesso de informações para um primeiro encontro. – Prever o futuro, saber de segredos, essas coisas.
Ele suspirou mais aliviado.
– É uma quirk interessante.
– Obrigada. A propósito, prazer, sou Skarlet. Lamento não ter me apresentado corretamente. – estiquei a mão em um saudoso gesto de cumprimento que, de imediato, Midoriya aceitou e retribuiu.
Um sentimento estranho vibrou pelo meu corpo, porém passou rapidamente. Por alguma razão – talvez uma curiosidade infantil –, tomei coragem para apertar de leve sua mão, o que tingiu suas bochechas em tons fofos de vermelho, criando um contraste com as sardas que lhe cobriam a tez macia.
Ele é muito fofo tanto no anime quanto na vida real!
– Eu também vou estar na U.A., espero que sejamos grandes amigos. – sorri animadamente.
– Claro. – anuiu com igual entusiasmo.
– Fico feliz que vocês tenham se dado bem. – o All Might magro transformou-se no bombado para usufruir da compatibilidade afetiva com seu sorriso largo característico. – E que possam ser amigos também.
– Ter um amigo novo alivia um pouco o medo de ficar sozinha, Tio Might. – comentei, fitando Midoriya. O momento fluía tão naturalmente que me senti verdadeiramente acolhida, tanto que só após ter dito que percebi como chamei o pro-herói.
×××
Fim de semana, pleno domingo, um tic tac incessante do relógio na parede ecoava pelos meus ouvidos como uma desafinada e, ao mesmo tempo, ritmada sinfonia. Por horas a fio, pensei nas desastrosas recepções para minha nova classe, um pouco menos ansiosa com a proximidade da segunda feira. Olhei para minha mão, na qual Midoriya tocou mais cedo, com um misto confuso de emoções.
Suspirei, levantando da cama.
Chequei meu reflexo no espelho, o cansaço evidente em cada detalhe e no meu olhar aborrecido. E, o que realmente me surpreendeu foi a coloração vermelha – literalmente – impregnada nas pontas do meu cabelo. Em termos de genética, herdei os tons loiros da minha avó, embora eles comportassem em ondas em vez do liso semelhante ao dela. Minha genética variava entre os genes do meu pai e os da minha mãe e, de bônus, da minha avó à quem mais me assemelhava. Talvez fosse essa similaridade que tenha unido ainda mais nós duas.
Mexi nas madeixas tingidas e checando no quanto aquilo influenciou no estado dos fios e nas ondulações que tanto me orgulhava.
Nunca fui muito adepta a tratamentos e mudanças drásticas no visual por preferir manter seu estado natural, e achar mechas ruivas que, estranhamente, apareceram do nada, não vinha ser um bom sinal. Refiz mentalmente meus passos desde o segundo que acordei nesse mundo, fazendo um minucioso exame das mínimas tarefas realizadas, visando uma anormalidade, sem sucesso. Passei um pouco de água para remover caso fosse uma tinta que caiu, tendo devido cuidado para não desgastar meus cabelos. Depois de minutos em um trabalhoso e longo procedimento de limpeza, o vermelho permaneceu intacto e até mais brilhante que antes. Derrotada pela exaustão, optei por não mexer mais naquilo e ver onde daria. Não tinha muito o que fazer em respeito a isso além de esperar e se der algo errado, procuro o auxílio do All Might.
– Bem. – peguei o cartão da vidente com um endereço e número de telefone. Com a vigilância sobre mim, não poderia ir até ela tão cedo, então teria que esperar. – Segundo o que ela disse, sou como esses Anunciadores... Um árbitro do destino... – balanceia as pernas distraidamente, mergulhando em meus pensamentos nebulosos.
Se meu papel era ser uma protetora do fluxo do destino, o que teria que consertar afinal?
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