Adágio
O que está acontecendo comigo?
Suponho que essas mudanças bizarras não caracterizam o básico da puberdade: cabelo trocando a tonalidade, episódios esporádicos de manifestações de supostas habilidades sobre-humanas e fantasmas, não são sintomas naturais e normais dessa fase.
Talvez eu fosse uma anomalia.
Vai saber, não é?
Chacoalhei a cabeça discretamente, tirando-a do delírio que confundia minha percepção e, consequentemente, ludibriava meus olhos com impressões estranhas. Nesse mundo, fiquei fora de órbita e sem rumo — o que prejudica minha adaptação. Resmungando para mim mesma, empenhada em limpar as distrações e seguir o fluxo das coisas, mordi a ponta da unha do polegar, ponderante.
Concentre-se, Skarlet!, encorajei-me. Não perca a razão. Foi só coisa da sua cabeça. Não houve nada.
Foquei em um mantra que costumava utilizar para conter a explosão de ansiedade e limpar a mente para conciliar os fatos e voltar a razão. Assim que me recompus, meu material retornou ao lugar sem grandes problemas e sem atrair olhares curiosos pra mim.
Aizawa-sensei, com seus hábitos peculiares de renovar suas noites insones no meio das aulas, deu-nos a responsabilidade de escolher um Representante da Turma, o que estimulou a sala a uma desordem de auto indicações para liderança. Como uma espectadora, assisti Iida, em seu tom mais imperativo e certinho, pôr moral e ordem na baderna anunciada.
Mesmo se quisesse arriscar na competição apenas pela diversão da disputa, sabendo dos resultados da votação, não teria nenhuma lógica.
Pobre Midoriya ter que assumir o cargo junto de Momo.
Não duraria muito, no entanto.
Sob os efeitos do fenômeno estranho de mais cedo, rumei ao refeitório massageando as têmporas e recolhendo a refeição em silêncio aborrecido. Iida, Uraraka e Midoriya conversavam entre si quanto a decisão de representante. Minha intenção inicial era inteirar-me da conversa, entretanto na minha condição atual, as palavras flutuavam até mim um pouco desconexas, como se meu cérebro perdesse a capacidade de assimilá-las adequadamente.
Meu campo de visão desfocou-se, gerando pânico que guardei para mim.
Arrependi-me de negar a consulta de imediato ao médico oferecida pelo All Might, praguejando a medida que o incômodo transformou-se em uma dor difícil de processar tamanha sua intensidade. Desajeitadamente levantei-me, virando os holofotes todos para mim com a ação, no meu pior estado de espírito possível. Cambaleei imperceptivelmente, amparada por Iida que disse algumas coisas que não captei pelo atordoamento. Em um lapso fugaz de razão, o ouvi sugerir que me acompanharia a enfermaria, prontamente neguei e agradeci a preocupação. Deixei minha bandeja na mesa e, a passos lentos, percorri o que parecia ser o trajeto mais longo que tinha feito. Bati a porta, esperando que a Recovery Girl estivesse lá dentro, caso contrário, não suportaria mais tempo. Pisquei inúmeras vezes para resistir a falha gradual de consciência, lutando para ficar com os sentidos alertas.
A última coisa que lembro antes de abraçar a escuridão é de alguém chamando meu nome.
Minhas pálpebras pesavam muito, atrapalhando minha inútil e infrutífera batalha para acordar. Meu braço direito pinicava e tudo ao redor girava vertiginosamente, embrulhando meu estômago. Dopada, tateei o rosto, estranhando a textura de um esparadrapo em minha testa, guiando a mão errante para o lado oposto, notando um o cateter de soro conectado ao meu braço.
— Onde...? — minha garganta estava seca e doía horrores. — Onde...?
— Enfermaria — pequenas mãos afastaram meu braço grogue do conector, posicionando-o gentilmente rente ao meu corpo. — Você desmaiou na entrada. O que andou aprontando para chegar a ponto de ter um colapso?
— Colapso? — endireitei-me, aprumando-me na cama. — Eu não... Me lembro...
— Tente não se esforçar — instruiu, anotando algo em sua prancheta.
— Minha cabeça dói — murmurei roucamente. — Muito.
— Não se preocupe que isso vai passar logo. — assegurou, indo para a mesa.
— Eu acho...
Gritei com a pontada dolorida bem no centro do cérebro, esta cresceu e cresceu anunciando um mau presságio, porejando em um nível difícil de classificar. Jogada em um mundo de sensações afloradas, pressionei a mão livre contra minha testa, ansiando ardentemente aplacar as dores insuportáveis que ofuscavam qualquer outro pensamento, impondo-me a terrível vivência daquilo em sua totalidade, impossibilitando-me de escapar. Sentei-me incapaz de permanecer quieta e parada, quase chorando descontroladamente, debati-me contra os braços restritivos que se opuseram ao meu ímpeto de espaço.
A pressão latejante no crânio somado a overdose de emoções e sensações desencadeou uma força estranha; uma explosão interna, como acionar um gatilho, que miraculosamente não doeu, em compensação, passado segundos, desfaleci, sem forças, em meu leito, com o cansaço proclamando poder, sentindo-me desligada da realidade por fim.
Dedos trêmulos ajeitavam algumas mechas soltas do meu cabelo com extremo cuidado, como se o mero toque fosse o suficiente para quebrar-me devido a minha evidente fragilidade. Um tecido úmido foi pressionado levemente em minha testa, fazendo-me estremecer. Não identifiquei de quem se tratava por não conseguir abrir os olhos logo de cara, foi uma ação lenta e pouco confortável o ritual padrão de acordar. Meus olhos desacostumados ditaram uma figura familiar, encarando-me preocupado com aquela expressão tão gentil que me comoveu.
— Mi... Midoriya... — balbuciei sôfrega e a garganta em chamas. — Água. Água.
Atendendo meu pedido, Midoriya amparou-me a beber poucos goles de água para amenizar a secura — o líquido desceu queimando. Tossi ligeiramente, ofegante e exausta.
— Melhor?
Assenti debilmente.
— O que faz aqui? — não pude conter o sorriso, o que fez com que me questionasse se os efeitos colaterais da medicação tivesse mexido no meu filtro e diminuído a parte que controla as emoções. Não tinha pudor nenhum em mostrar como sentia-me com sua nobre apreensão sobre mim.
Midoriya é um amor de rapaz.
— Você não voltou mais para aula... E queria saber se estava melhor — era maluco admitir que a doçura dele e sua postura educada para comigo, inflaram meu coração com boas energias. No obstante, um sentimento tímido começou a desabrochar desse carinho.
— Ele ficou cuidando de você enquanto estive fora — a voz de Recovery Girl estava cheia de graça, expondo Izuku que, diante do constrangimento, evitou me olhar diretamente, jogando sua atenção para pontos aleatórios do quarto. Um ato que o tornava mais adorável.
— Obrigada, Midoriya — segurei fracamente sua mão, o que o desconcertou ainda mais.
— Não precisa agradecer, você é minha amiga e é meu dever oferecer cuidados — explicou apressadamente, corando mais. — Além disso, você fez o mesmo — demorou um pouco, mas ele retribuiu meu gesto.
Separamo-nos ao escutar um pigarreio, que quebrou qualquer possível clima que rolaria. Não que fosse o caso... Quem sabe?
All Might veio até mim afagando minha cabeça de um modo paternal, bagunçando um pouco meu cabelo que já não estava lá muito arrumado. Agora que estava desperta, muito autoconsciente, tinha certeza que minha cara não estava das melhores e minhas madeixas deveriam estar uma zona. Se o Midoriya ficou comigo nesse interim, significa que ele me viu no modo “soneca”.
— Vocês dois ainda vão me matar — brincou, porém, havia certas verdades naquilo. No fim das contas, Midoriya e eu desenvolvemos uma ligação única com o herói número um e sabíamos sobre seu segredo.
— Você ainda viverá muito, tio Might.
Izuku riu, apesar de também ter sentido o peso do que a menção daquilo poderia significar pro mundo e, principalmente, para ele mesmo.
— O que eu perdi esse tempo?
— Eu passo a matéria — Midoriya sugeriu como um bom colega que era. — No geral, não perdeu muita coisa.
— Isso pode ser recorrente
— Isso? — Midoriya repetiu sem entender.
— Você me salvando — brinquei, aludindo a futuras ocorrências semelhantes.
Midoriya me fitou e sorriu, não um qualquer que ele daria para qualquer pessoa que necessitasse de incentivo. Era como se fosse moldado pra mim e somente pra mim, um especial e único. Meu coração que transbordava afeição natural se delirava com o gesto, batendo rápido.
— Sempre que precisar de ajuda, vou estar por perto.
Droga. Droga. Droga. Não podia domar aquela força da natureza que me engolia e me desarmava com tanta facilidade e que instigava emoções poderosas que não conseguia descrever com propriedade.
— Vou te proteger, Skarlet. Tem a minha palavra.
Meu primeiro impulso foi abraço, contudo, me mantive imóvel incapaz de agir e desejando que o momento nunca tivesse fim.
— Obrigada, Midoriya.
×××
— Eu tomei a liberdade de pedir um traje de heroína para você — All Might, que aquela altura voltou ao aspecto magro, contou com semblante dúbio, pairando com uma dúvida no ar. Não precisava ser muito inteligente para deduzir que sua reação vinha da minha — talvez — oposição a sua solícita e fofa solicitação em meu nome. Ele segurou uma folha com rascunhos de desenhos, um pouco mal feitos, no entanto, promissores levando em conta a riqueza de detalhes nas descrições seja do tecido ao mais pequeno acessório, tudo aparentemente providenciado pelo herói número um em pessoa. Ele dedicou tempo, tendo em vista que era um homem bastante atribulado, e estudou o melhor pra mim.
Não tinha como detestar aquilo!
— Como vê, não sou um artista. Pedi ajuda nessa parte, porque não entendo o gosto de uma jovem de quinze anos — elucidou sem graça, porém, ainda com um sorriso amistoso. — Espero que o modelo seja do seu agrado — entregou-me o projeto do traje, com o olhar esperançoso.
— Eu adorei, muito obrigada, tio Might! — disparei para meu quarto analisando o desenho com animação. Lendo as observações escritas em letras desleixadas e duras que marcavam o papel, havia nomes de materiais que desconhecia e as setas indicavam a paleta de cores escolhida: predominante vermelho e preto.
Mal via a hora de provar minha roupa de heroína, exibi-la e tudo mais.
Bem disposta, como agradecimento pela cortesia e a hospedagem, resolvi que eu prepararia as refeições do dia. Claro que All Might foi contra, mas com o tempo livre para organizar suas aulas, ele permitiu, contanto que tivesse cautela. Não que fosse grande coisa, não tinha graduação e nem nada para chegar no patamar de um chef de cozinha — nem o extenso currículo —, longe de mim gabar-me de minhas competências culinárias, só que conseguia me virar bem — aprendi a cozinhar bem jovem.
Esses dias convivendo de perto com All Might, vendo seu esforço diário em manter intacta sua imagem como Símbolo da Paz sobre os progressos lentos de Midoriya, até seu interesse em meu bem-estar enquanto estivesse sob sua tutela, ganharam mais respeito da minha parte, ele era, sem dúvida, um homem de fibra — com princípios e coragem inabaláveis. Arrumei a mesa com tudo que fiz com amor e, assim como ele tem feito, o chamei para comer. A nossa dinâmica melhorava no mesmo ritmo que minha admiração crescia.
— Sei que não é da minha conta, mas... Como se sente sendo professor de um monte adolescentes? — cutuquei o purê, rindo.
— Não estou acostumado com a ideia de ensinar, ainda mais uma nova geração de heróis — pigarreei, ele percebeu o “erro” e entrou na brincadeira. — e heroínas. Estou tentando ser o melhor professor possível.
— E você é, tio Might. Está de parabéns! — faço sinal de positivo com o polegar aprovando categoricamente sua atuação como nosso mentor.
Ele deu uma generosa garfada no bolo de carne, degustando-o em seguida.
— Isso está ótimo.
— Eu tenho meus truques culinários e acho que é uma boa hora para revezarmos as tarefas, não quero viver completamente dependente. — enchi um copo de suco para mim e para ele. — Se isso não for problema para você.
— Eu não vejo problema, você cozinha até melhor do que eu poderia — comentou, saboreando a refeição. — Como sente?
— Estou bem melhor, foi um susto o que aconteceu e...
All Might franziu o cenho, intrigado.
— O que foi?
— Seu cabelo está completamente vermelho — um vinco estranho formou-se em sua testa. — A Recovery Girl disse que poderia ser um surto evolutivo da sua quirk.
— Acho que o estresse causou isso — contra-argumentei, não muito crente dessa teoria.
Primeiro: não tenho uma quirk.
Segundo: não dá pra evoluir algo inexistente.
Terceiro: não tem como eu sequer ter um poder. Isso se dá pela genética e meus pais são pessoas normais. De outro mundo.
— Seja o que for, tome cuidado. E ligue-me se sentir algo fora do normal.
— Sim, senhor — bati continência, sorrindo. — Agora preciso ir, amanhã será um longo dia de aulas e preciso repor o que eu perdi. Boa noite! — acenei.
— Boa noite — respondeu com os olhos meticulosos estudando-me.
Respirei fundo, ansiosa pelo dia seguinte, embora sentisse que estava esquecendo de algo importante, esse era o que, minha mãe chamava ironicamente, de talento — o que não poupava-me de ouvi-la dizer as frases típicas “só não esquece a cabeça por estar grudada no pescoço”. A impressão amnésica ficou maior e tudo que pude refletir em meio aquilo foi: o que será?
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