Rarden - 4
- Eu já sei o nome dele - disse Ângika, fazendo um gesto com a cabeça em direção a Rarden. - Mas eu ainda não sei o seu.
A garota tentou iniciar um diálogo com Botrovin, mas ele não queria conversar.
Rarden não lembrava qual fora a última vez em que presenciou seu amigo tão calado quanto naquela manhã. Mas era fácil de entender o que lhe passava à mente. Sim, Rarden entendia muito bem.
Olhou a redor e observou os entalhes de madeira adornavam o grande salão da fortaleza de Lorde Maeskro. O castelo não era grande, mas os detalhes eram primorosos.
No dia anterior, após os corpos serem enterrados sob terra e lágrimas, Caonas sugeriu que Rarden, seus pais, Botrovin e Nissa se abrigassem sob os cuidados de Lorde Maeskro.
Toromin informou que seria mais coerente pedir proteção a Lorde Cordovin, o senhor feudal dono das terras da aldeia, mas Caonas contou-lhe que Cordovin não teria uma percepção adequada dos fatos e que Lorde Maeskro seria uma opção melhor.
O velho amigo de Roggrer também conhecia Maeskro, e isso facilitou a entrada do grupo, quando chegaram aos portões do castelo na noite anterior.
Naquela manhã, enquanto todos se alimentavam com o desjejum preparado pelo anfitrião, Caonas e seu companheiro Gui'k, o mago de cabelos nos ombros, terminaram a refeição mais cedo e se reuniram em outro aposento com o nobre da fortaleza.
O motivo da reunião era, obviamente, a permanência dos moradores da aldeia no castelo.
Na entrada do salão, três homens conversavam em sussurros, observando Rarden, enquanto, vez ou outra, exibiam feições de excitação.
Ângika desistiu de arrancar de Botrovin qualquer palavra. Ela tinha um nariz arrebitado, o que lhe dava um ar orgulhoso e teimoso, e provavelmente o orgulho abundou sobre a teimosia, fato que a deixou muda pelo resto da refeição. Apenas continuou comendo um pedaço de pão mergulhado em um caldo de carne de coelho.
Os adultos comiam em outra mesa, maior e mais abastada.
No dia anterior, durante o percurso entre a aldeia e a fortaleza de Lorde Maeskro, Rarden teve tempo suficiente para aprender o nome daqueles que salvaram-no.
Além de Ângika, Caonas e Gui'k, o grupo de bruxos - Caonas revelou que todos eram bruxos - tinha ainda Vadylia, a mesma que cobriu o ferimento do velho Roggrer com ervas vermelhas; Ternamud, o espadachim forte e careca que o livrou das grades da carroça; Tadla, uma maga de poucas palavras e sorrisos.
A voz grave a alta de Ternamud alcançava o salão inteiro, mesmo que ninguém além daqueles que sentavam em sua mesa soubesse exatamente sobre o que ele falava. Alguém fez-lhe uma pergunta e ele estava respondendo. Durante a viagem com os cavalos deixados pelo grupo morto na aldeia, Ternamud emendava uma história em outra, quase não dando vez para outra pessoa se pronunciar.
Mas Rarden ficou grato por isso. Os moradores da aldeia não tinham o ânimo necessário para conduzir um diálogo.
Mais um riso vindo da outra mesa. O homem musculoso ria sozinho de suas próprias palavras.
Rarden fitou a sua mesa. Ângika e Botrovin permaneciam quietos. Seu amigo apenas empurrava grãos de ervilha de um lado para o outro do prato.
Se ele estivesse em seu clima natural, Ternamud teria um concorrente à altura na luta pelo título de mais falador do bando.
Ao final da refeição, servos do castelo retiraram os restos e Rarden se viu sem ter o que fazer. Botrovin e Ângika permaneceram sentados com cara de poucos amigos. Na outra mesa, Ternamud manifestava sua satisfação acerca do desjejum.
Vadylia ria dele e zombava de suas palavras, mas ele parecia não se importar, pelo contrário, ria junto.
Rarden estava observando-os e não notou quando os três homens da entrada do salão se aproximaram, levando um susto quando um deles o chamou.
- É verdade que você é o garoto que foi atacado pelos homens de Caloman? - um deles quis saber.
O jovem fitou o pai rapidamente, que já o olhava de volta. Ele não sabia o que responder, mas sabia que se faltasse com sinceridade, provavelmente seria desmascarado em breve.
- Sim, sou eu.
Um homem cutucou o outro com o cotovelo.
- Eu te falei - ele se gabou.
O outro parou por um instante, como se buscasse as palavras certas.
- Podemos ver as cicatrizes?
Rarden olhou novamente para o Toromin, que àquela altura já se aproximava despretensiosamente da mesa do filho.
O garoto ficou de pé e levantou a camisa.
Os homens o rodearam, esquadrinhando seu tronco.
- Aqueles malditos - disse o primeiro homem. - Mercenários assassinos. Tentaram matar alguém desarmado. Mas eles não imaginariam que estavam mexendo com alguém como você, garoto.
- E eu que sempre achei que vocês fossem lendas - disse o segundo. - O Checky não vai acreditar quanto contarmos.
O terceiro homem, que estava mais afastado, riu.
- Não mesmo - concordou. - Uma pena o pai dele não estar mais vivo para ver o garoto.
Os três guardas continuaram conversando e suas palavras soavam como se Rarden fosse uma anomalia extraordinária.
Toromin já estava perto o suficiente para ouvir as palavras de espanto daqueles desconhecidos, mas não interviu. Preferiu o silêncio e a observação.
Ele estava pensativo desde a viagem, Rarden percebeu. Mal conversou, nem mesmo com Trya.
Subitamente, Toromin se afastou, chamou Trya com um gesto de cabeça e ambos caminharam para o lado contrário do salão, onde trocaram palavras que mais ninguém podia ouvir.
Seja lá o que fosse, a mãe de Rarden não estava gostando da conversa, pois gesticulava e abaixava as sobrancelhas sobre os olhos em tom desafiador.
Toromin também não parecia feliz, mas exibia rigor nos gestos, enquanto apontava para Rarden e para a mesa com os companheiros de Caonas.
De repente, um som de porta se abrindo ecoou no salão e o casal cessou a discussão. Lorde Maeskro, Caonas e Gui'k surgiram de uma porta lateral.
O nobre do castelo vinha acompanhado pelo homenzarrão que Rarden viu no largo de Vila de Alto Mar. Fez um sinal com a mão e os três guardas se retiraram, fechando a porta em seguida.
Então, todos fizeram silêncio, até mesmo Ternamud, e se prepararam para ouvir a resposta de Lorde Maeskro. O fidalgo gesticulou sutilmente com a cabeça em direção a Caonas e este entendeu que fora dada a permissão para anunciar a decisão.
- Não posso negar que Lorde Maeskro foi benevolente em aceitar a todos vocês, principalmente Rarden - Caonas falava com franqueza. - A permanência do garoto aqui pode acarretar em visitas inoportunas, mas ainda assim ele está disposto a abrigá-los...
- Caonas - Toromin interviu de modo súbito.
Trya virou a face, como se não quisesse dar ouvidos ao que o marido diria.
- Se vocês não se importarem - Toromin prosseguiu. - Eu gostaria que Rarden os acompanhasse.
Aquelas palavras pegaram o velho de surpresa. Rarden não foi capaz de afirmar se ele estava satisfeito ou não com o pedido de Toromin. Já Lorde Maeskro estava visivelmente agradado em ouvir a decisão.
Após o espanto, Caonas soltou um sorriso amistoso.
- Trarei seu filho de volta - prometeu.
Todos pareciam de acordo, porém Botrovin pigarreou, chamando a atenção dos demais.
- Se o senhor não se importar - disse timidamente -, eu também gostaria de ir com vocês.
Caonas e Gui'k se entreolharam.
- Eu não serei um estorvo - Botrovin garantiu, agora falando com mais confiança. - Aquelas pessoas tiraram tudo de mim. Não tenho motivos para ficar aqui, mas tenho motivos encontrar o responsável pela morte dos meus pais. Eu não consigo fazer o que vocês fizeram ontem, mas posso caçar, pescar e posso aprender depressa a manejar uma arma.
Ele olhou para o pai de Rarden.
- Por favor, senhor Toromin, me dê a sua permissão para ir com eles.
Rarden sentiu vontade de chorar. Toromin era agora o que mais se assemelhava a um pai para Botrovin.
Os olhos de Toromin pareceriam mais brilhantes, úmidos.
- Truto e Gaella estariam orgulhosos por sua coragem.
Botrovin olhou novamente para Caonas. O homem de cabelos brancos fitou Ternamud, que deu de ombros.
- O garoto tem músculos - Ternamud observou. - Se eu puder lhe ensinar a não morrer na primeira estocada inimiga, poderá ser útil.
Olhou para Botrovin bem nos olhos.
- Qual o seu nome, garoto?
Botrovin olhou para Ângika, encabulado.
- Botrovin.
Ternamud fungou.
- É um nome péssimo, mas um nome é um nome. Agora me escute, Botrovin - disse, abraçando o jovem. - Se você morrer e me der trabalho te enterrando, eu mesmo irei te reviver só para te matar novamente.
O jovem engoliu a seco, o que fez com que o espadachim careca soltasse uma gargalhada.
Seremos bons amigos, garoto - Ternamud afirmou.
Os outros riram ponderadamente. A mulher de gibão e calça, Tadla, nem se deu ao trabalho de mostrar os dentes, permanecendo sisuda, como desde a primeira vez em que Rarden a viu na aldeia.
Tudo se estabeleceu, por fim. Antes da partida, Toromin e Caonas ainda conversaram por um breve período. Naquela mesma manhã, o grupo liderado por Caonas partiu, deixando para trás, em segurança, Toromin, Trya e Nissa.
"Cuide-se, filho", foi o último conselho de Toromin, enquanto que Trya se limitou a abraçá-lo e chorar.
Lorde Maeskro cedeu cavalos descansados para o bando e o grupo partiu em direção ao sul. Rarden ainda não sabia o destino, mas tinha certeza de que sua vida jamais seria a mesma.
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