Rarden - 3
Rarden tentou rir, mas seu tronco ainda doía com movimentos bruscos.
Botrovin tinha chegado ao ápice de mais uma piada naquela manhã. Lyn ria de todas, sem exceção, mesmo aquelas que Rarden não achava graça, mas acabava rindo por achar divertida a risada do amigo mais novo.
As últimas duas semanas foram repetições das mesmas cenas. Rarden se recuperava dos graves ferimentos que sofreu em sua última visita a Vila de Alto Mar.
Foi um milagre, sua mãe não cansava de falar.
Mesmo os mais céticos da aldeia concordaram. Rarden teve duas espadas transpassadas no corpo e todos acharam que ele estava morto, até que o jovem acordou no barco.
Dias depois ele já era capaz de conversar, mesmo com dificuldade para respirar.
Dento comentou que nunca viu nada parecido. Nem mesmo os mais fortes soldados resistiram a golpes fatais como aqueles. Já Truto relembrou de um antigo rei ao norte que teve uma dúzia de flechas penetradas no tronco e ainda assim ele permaneceu de pé no campo de batalha.
O rei Dalvan ainda viveu por mais cento e trinta anos após essa batalha, completou Truto no dia em que contou a história, mas ninguém acreditou que um ser humano teria vivido por tanto tempo, com ou sem flechadas.
- Eu já disse, essa foi a última história - esclareceu Botrovin para Lyn, que protestava querendo ouvir mais uma piada.
- Conte aquela das botas na lama - pediu Lyn.
Botrovin negou com a cabeça.
- Se eu contar todas as minhas histórias hoje, amanhã não terei o que contar.
Lyn fungou, insatisfeito.
- Então chamarei o senhor Roggrer para contar uma história. As histórias dele são melhores que as suas.
Botrovin sorriu, dando de ombros.
- Pode tentar, mas o senhor Roggrer não está muito disposto a conversar nos últimos dias. Duvido que ele queira nos contar alguma história.
O jovem tinha razão, Rarden pensou.
O senhor Roggrer estava calado, não só com os garotos. Ele mal conversou com qualquer um da aldeia nos últimos dias.
Rarden chegou a notar o velho fitando-o uma ou duas vezes, mas sempre que o jovem retribuía-lhe o olhar, o velho desviava seus olhos.
Talvez estivesse ainda surpreso ao saber de toda a história, principalmente o fato de Rarden ter sobrevivido.
A manhã seguiu e os amigos de Rarden foram para a floresta buscar lenha. As tarefas estavam mais árduas para Botrovin e Lyn, já que eles não tinham mais Rarden para dividir as obrigações.
Toromin e os outros adultos concordaram que nenhum garoto teria permissão para voltar a Vila de Alto Mar até que a história tivesse esfriado na língua dos moradores do vilarejo.
Truto comentou dois dias atrás que não se falava em outra coisa na pequena cidade, apenas sobre o garoto que sobreviveu.
"Sua fama logo chegará a Monte Branco", Truto ressaltou na ocasião.
Rarden tinha dúvidas se a difusão daquela notícia seria benéfica ou não. Pelo menos Lorde Caloman, ao saber do que ocorreu em seus portões, adiou o pagamento dos dois próximos meses para que Toromin cuidasse do seu filho.
Rarden sabia que este favor não seria tão altruísta e podia apostar que esses dois meses se transformariam em quatro após a entrada dos juros corriqueiros do falso lorde.
De qualquer forma, Rarden ouviu seu pai agradecer ao Pai de Todos pela suspensão da dívida.
Rarden estava absorto em seus pensamentos e quase não viu o velho Roggrer se aproximar.
- Às vezes vivemos ao lado de ouro encardido e não imaginamos o quanto ele pode brilhar - disse o homem de cabeleira alva após se sentar.
Sua frase era tão enigmática quanto a maioria das suas histórias.
- Não entendo - Rarden confessou.
O velho o fitou nos olhos e demorou a reagir. Rarden teve tempo de perceber a calvície formando acima da testa, seus cabelos brancos pareciam menos volumosos a cada dia.
- Você lembra da história dos irmãos Gandul e Galdin? - perguntou o velho.
- Sim.
- E lembra dos detalhes da história?
Rarden franziu o cenho, pensativo.
- Eu me lembro que não devemos confiar em estranhos.
Roggrer não pareceu satisfeito, mas sorriu. Abriu a boca, mas não chegou a concluir, Truto não permitiu.
- Quem será? - Truto se aproximara e olhava para o mar.
Rarden e Roggrer fitaram o vasto oceano.
Um pequeno barco se aproximava da costa, vindo do sul. Naquele instante Lyn e Botrovin voltavam da mata.
Toromin, que havia acabado de sair da sua tenda, também mirou o mar e apertou os olhos, como se o gesto o ajudasse a identificar as pessoas na embarcação.
- Reconhece alguém? - perguntou.
Truto negou com um gesto mudo.
- Provavelmente Caloman mudou de ideia e está vindo para nos cobrar o pagamento do mês - Toromin deduziu.
Àquela altura, Dento e as mulheres se aproximaram. Todos da pequena aldeia se reuniram no Largo e fitaram o barco.
Gaella, mãe de Botrovin, deu dois passos em direção ao mar.
- Vejo mulheres a bordo - disse. - Não parecem pescadores.
- Não é o barco de Dick, o reparador? - Truto indagou subitamente.
Toromin concordou.
Rarden também reconheceu a embarcação, e após Truto mencionar Dick, pareceu-lhe ainda mais familiar.
- Logo saberemos quem são e o que querem aqui - Toromin disse. - Não parecem homens de Caloman.
O barco continuou a se aproximar da costa. Todos ficaram mudos, aguardando o motivo daquela chegada.
Era muito raro alguém desembarcar próximo à aldeia. Ninguém tinha motivos, não havia nada de interessante ali.
Quando faltava muito pouco para a embarcação chegar ao seu destino, Trya girou sobre os calcanhares, estranhamente surpresa.
- Estão ouvindo isto? - ela disse com o olhar fixo na estrada.
De repente, todos ignoraram o mar fitaram o lado contrário.
- Só pode ser brincadeira - Toromin resmungou.
Um pequeno grupo de pessoas montadas em cavalos se aproximavam em uma velocidade levemente acima do normal.
- E esses, quem são? - Truto perguntou para ninguém em particular.
Toromin fez que "não" com a cabeça.
- Homens de Lorde Caloman? - Dento indagou, mas não obteve resposta de ninguém.
Um dos homens montava uma carroça e a parte traseira chamou a atenção de Rarden. Havia grades que formavam uma pequena jaula, talvez para levar algum animal pequeno, quem sabe um porco.
Liderando o grupo, à frente de todos, uma mulher usando um longo vestido azul escuro esbanjava uma robustez pouco vista em mulheres, pelo menos nas mulheres que Rarden conhecia.
Quando o bando se aproximou, Rarden notou que alguns traziam espadas embainhadas em suas cinturas, e apesar de nenhum estar vestido para um combate, Rarden presumiu que aqueles homens poderiam ser cavaleiros.
A mulher parou seu cavalo próximo a Toromin, que àquela altura já estava à frente de todos. Curiosamente, Roggrer também caminhou para perto do pai de Rarden.
A desconhecida desceu da montaria e fitou todos com altivez. Seus companheiros também desmontaram, e de igual modo, esquadrinharam cada morador da aldeia.
A mulher encarou Rarden e ele pôde notar seus olhos azuis que exibiam uma curiosidade estranha. Em sua cintura havia um cinto de couro com o que pareciam ser quatro adagas embainhadas.
Em seguida, a visitante olhou para Botrovin e depois para Lyn.
- Procuro por um garoto que atende pelo nome de Rarden - ela disse.
O que ela quer comigo?, Rarden pensou imediatamente.
O espanto do jovem deve ter transbordado em sua postura, pois a mulher girou o pescoço e o encarou mais uma vez.
- Você virá conosco, garoto - ela falou com rispidez.
Toromin impulsivamente deu passo para o lado, ficando entre a mulher e Rarden.
- Você não levará meu filho para lugar algum - ele garantiu. - Saiam daqui e nos deixem em paz.
A estranha sorriu. Mas não era um sorriso de felicidade. Parecia uma expressão de terror e desdém.
- Eu não queria do jeito mais difícil, mas não tenho tempo para provocações e diálogos - disse. - Peguem o garoto.
O que se seguiu foi muito rápido: os homens atrás da mulher avançaram contra Rarden, mas Toromin e Truto tentaram impedir e acabaram jogados no chão com violência.
E então ocorreu algo inesperado e surpreendente. Rarden viu um clarão alaranjado varrendo o ar e tudo ficou quente ao seu redor. Alguns dos invasores correram de um lado para o outro, em chamas.
Rarden olhou em volta e viu o velho Roggrer em posição de luta corporal. Suas mãos, inexplicavelmente, se consumiam com fogo, mas o homem de cabelos brancos não parecia sentir dor alguma.
Um dos estranhos, que já segurava Rarden pelo braço, soltou-o, amedrontado.
A mulher soltou mais um riso zombeteiro.
- Então temos aqui um maldito mago vermelho - falou, tranquila.
Mago vermelho? Magos não existem!
A líder do grupo desconhecido abriu os braços, como uma prece, e seus olhos pareceram mais azuis que antes. Rarden não acreditou quando notou uma das adagas da cintura dela levitar pelo ar. Subitamente a mulher fez um gesto brusco com uma das mãos e a pequena arma voou com velocidade e desapareceu.
Um urro de dor ecoou e só depois Rarden percebeu que a faca golpeou o velho Roggrer, que caiu de costas no chão com as mãos na barriga.
Como ela fez aquilo?
Os homens incendiados, que jogaram-se no chão para apagar o fogo, estavam naquele momento de pé, prontos para outra investida.
- Não queremos machucar ninguém, mas não hesitaremos em matar todos vocês - a mulher garantiu.
Truto afrouxou o ímpeto, mas Toromin continuava firme em sua posição.
A mulher estrangeira fez outro gesto com a mão e os invasores voltaram a investir contra Rarden.
Mas, novamente, algo assombroso aconteceu: uma chuva de pedras caiu violentamente contra os desconhecidos. Alguns sofreram golpes violentos na cabeça e caíram descordados. O bando, que agora diminuiu, ainda tinha dez pessoas ou mais, mas um objeto esférico foi arremessado sobre eles e em seguida uma explosão cuspiu fogo para todos os lados e mais alguns deles foram abatidos.
Rarden olhou por sobre o ombro à procura da origem daqueles ataques. Para a sua surpresa, outro grupo de estranhos desembarcam do barco de Dick, o reparador. Ao todo, cinco adultos e uma adolescente caminhavam de encontro ao primeiro grupo de desconhecidos.
A invasora fitou o segundo grupo.
- Você chegou tarde, Caonas - seus olhos miravam o mais velho do outro bando. - Nós ficaremos com o garoto.
O velho a quem ela chamou de Caonas permaneceu impassível. Fez-se silêncio por poucos segundos e então o velho ergueu uma das mãos.
- Lamento, Alphira - ele disse. - Não deveria ser assim.
Um homem de cabelos pretos no ombro, ao lado do velho, ergueu uma das mãos e fragmentos de rocha ergueram-se do chão.
- Que raios está acontecendo? - Botrovin questionou.
Antes que alguém pudesse responder, a mulher também ergueu uma mão e a adaga cravada no abdômen do velho Roggrer se desgarrou dele e passou a levitar bem próximo à estranha.
- Bruxaria - Truto disse, atônito. - São bruxos!
- Mas bruxos não existem - Dento revelou.
- Eu também acho - Truto respondeu. - Raios, eu não sei mais o que achar.
Toromin estava prestes a falar alguma coisa, mas ninguém nunca soube o que ele diria. Pedras, facas e todo tipo de objeto começou a voar velozmente para todas as direções e Rarden ouviu gritos de dor para todos os lados.
- Precisamos sair daqui - Toromin falou, puxando Rarden pelo braço.
O jovem continuou ouvindo sons de objetos arremessados e pessoas gritando. Correu logo atrás do pai, sua mãe vindo logo em seguida, mas subitamente ouviu um baque surdo e seu pai caiu no chão, desacordado.
- Toromin! - Trya gritou.
Ela foi a próxima a ser impulsionada por uma força invisível, caindo a metros de distância.
Uma breve olhada para trás revelou uma cena de guerra. Havia labaredas de fogo espalhadas pelo terreno; homens armados do primeiro grupo tentando golpear um negro alto e careca, mas sem sucesso; a mulher de vestido azul dançava seus braços pelo ar, como se conduzisse rédeas invisíveis; Botrovin corria de um lado para o outro, esquivando-se de estocadas de lâminas afiadas e de pedregulhos voadores.
Ele precisava fazer alga coisa, mas quem atacar? E como fazê-lo? Não importava, pois antes que ele pudesse decidir, algo invisível o agarrou pelo pescoço, como uma cobra rígida. Aquela força o levantou do chão e ele sentiu seu corpo ser arrastado.
Era como se houvesse alguém o estrangulasse, se não fosse pelo fato de que não havia alguém ali para enxergar.
De repente, a carroça em forma de jaula surgiu e foi aberta. Rarden sentiu seu próprio corpo ser empurrado para dentro das grades e a portinhola foi fechada. Os ferimentos das espadas de semanas atrás agora ferviam de dor em seu tronco.
De dentro das barras de ferro sujo, viu o amontanhado de estranhos lutando entre si. O careca alto havia abatido seus agressores e agora corria impetuosamente em direção a Rarden.
Parou de súbito, olhando para o nada.
- Solte o garoto - falou com voz grave.
Mas ele não estava falando com absolutamente ninguém.
- Maldita Coruja - a voz ecoou no ar e Rarden sobressaltou-se por entre as grades.
Quem disse aquilo?
- Veremos se é tão bom com a espada como é com os olhos - a mesma voz ressoou em tom provocativo.
O negro careca levantou sua espada em posição de batalha e começou a lutar contra o vento.
O homem parecia um lunático, batalhando contra o que não existe, mas o som de metal contra metal confirmava que algo oculto investia contra a sua lâmina.
Ele era ágil, forte e habilidoso. Rarden se perguntou se o ser invisível era tão bom quanto ele.
O grandalhão deu um grito explosivo e estocou violentamente o ar. Outro grito pôde ser ouvido, mais fraco e menos enérgico. O que se seguiu foi um grunhido sem brilho, engasgado e agonizante.
Aos poucos, a figura de um homem foi surgindo, seu corpo atravessado por uma espada, a arma do outro combatente. As roupas daquele sujeito recém surgido eram leves e finas, absolutamente inapropriadas para uma batalha como aquela.
O homem negro apoiou-se sobre os joelhos e respirou. Em seguida olhou para Rarden e caminhou velozmente em sua direção, alcançando sua lâmina enquanto caminhava.
Rarden poderia considerá-lo um aliado naquela batalha de estranhos? Ele matou o homem que aparentemente o prendeu, mas ainda assim a euforia do momento fez com que o jovem se afastasse do portão da jaula, indo parar no outro canto, amedrontado.
- Você está bem, garoto? - o estranho perguntou com sua voz grave.
Rarden não respondeu e o desconhecido golpeou bruscamente o cadeado com sua espada, e a grade se abriu.
- Calma, garoto - o careca disse. - Eu não mordo. A não ser que você seja uma costela de porco.
Apesar da liberdade estar à sua frente e da tranquilidade do desconhecido, o garoto teve medo. Olhou ao redor. Quanto tempo teria observado a luta com o homem invisível? Toda a batalha parecia ter chegado ao fim, se não fosse pelo velho do segundo grupo e o seu companheiro de cabelos nos ombros, que dominaram a adversária de vestido azul e a jogaram no chão.
Rarden lembrou-se dos seus pais e subitamente desceu da carroça, correndo em direção à sua família.
Toromin já estava de pé, ajudando Trya a levantar. Ele sangrava na testa, mas parecia bem. Por outro lado, a mãe de Rarden queixava-se de dores na perna.
- Onde ele está? - o velho questionava para a mulher no chão, que nada respondeu, apenas sorria em tom zombeteiro.
Um detalhe chamou a atenção de Rarden e ele olhou para a coxa da mulher. Seu sangue fluía em abundância através de um corte na pele.
Não era necessário ser médico ou curandeiro para saber que aquele corte seria fatal.
Tal como ele presumiu, a mulher hesitou em responder outra pergunta do homem de cabelos brancos, ao invés disso apoiou a cabeça com força no chão duro de terra batida e expirou.
O velho à sua frente parecia triste com aquela morte. O homem de cabelo longo pôs uma mão em seu ombro.
- Mãe! Pai! - alguém gritou. Era uma voz conhecida.
Rarden girou sobre os calcanhares e só então viu o resto daquela cena de horror. Truto e Gaella jaziam ao chão. E não só eles. Dento e Lyn também não resistiram àquele ataque inesperado. Nissa, mulher de Dento, abraçava o filho e o marido, mortos abraçados. Seu choro era mais afiado que qualquer arma usada naquela manhã. De súbito, um silêncio se fez e o único som era o choro enlutado que rasgava os ouvidos, uma cena melancólica que contrastava com a crueldade humana que gerou todo aquele luto.
Rarden curvou a cabeça, não queria ver nada daquilo. Desejou ser surdo para não ouvir os gritos inconsoláveis do seu amigo Botrovin nem o choro histérico de Nissa.
Sentiu um braço circundando seu corpo. Toromin o abraçou e Rarden afundou a face entre os peitos do pai. Pôde sentir pela respiração que seu pai estava chorando.
Ele não lembrava qual a última vez que viu seu pai chorar. Mesmo quando acordou no barco duas semanas atrás após se esquivar da morte, ainda assim não viu seu pai chorando.
- Eu não acredito - Rarden ainda estava de olhos fechados e o rosto afundado no peito do pai, mas reconheceu a voz do velho estranho. - Roggrer!
Quando Rarden abriu os olhos, os estranhos sobreviventes - o velho; o homem de cabelo nos ombros; o negro careca; uma mulher de vestido verde musgo; outra mulher que vestia gibão e calça; a garota adolescente - rodeavam Roggrer, que milagrosamente ainda estava vivo.
- Olá, Caonas - Roggrer respondeu com um sussurro. - Eu queria te ver em uma ocasião mais feliz, meu velho amigo.
O estranho ajoelhou e fez um gesto para a mulher de vestido verde. Ela puxou um recipiente de uma pequena bolsa que levava consigo. Entregou o pequeno frasco para Roggrer, que bebeu o conteúdo. Depois ela jogou o que parecia ser água sobre o ferimento no abdômen e em seguida cobriu-o com uma mistura de ervas vermelhas.
O velho, deitado sobre o chão duro, exibiu uma expressão de alívio, embora o sangramento abundante em sua barriga indicasse que ele deveria estar sentindo muita dor.
Todos ficaram calados, o que amplificou o choro de Botrovin e Nissa, que agora eram consolados por Trya.
- O garoto - disse Roggrer para o homem chamado Caonas. - Ele é um...
- Eu sei - Caonas interrompeu. - Por isso estamos aqui.
- Eu não sabia - Roggrer prosseguiu. - Ele estava aqui o tempo inteiro, mas eu não poderia imaginar.
Ele pôs a mão no abdômen e franziu rigidamente a testa inteira.
Caonas colocou a mão gentilmente sobre seu ombro.
- Não fale mais nada - sugeriu.
Sobre quem eles estavam falando?
Estão conversando sobre mim?
- Rarden - sussurrou Roggrer com uma voz ainda mais débil que o cotidiano.
O jovem olhou para o pai, que acenou com a cabeça e ambos se aproximaram do pequeno círculo de pessoas que circundavam o velho da aldeia.
Roggrer o olhou e esboçou um sorriso.
- Desde o naufrágio eu já sabia que você era especial, mas naquela ocasião não decifrei o segredo que você carrega.
- Eu... Eu não entendo - Rarden gaguejou, mas confessou toda a sinceridade do seu íntimo.
Roggrer desta vez conseguiu sorrir.
- A lição dos irmãos Galdin e Gandul. - sussurrou, fitando Caonas. - Este homem não é um estranho, Rarden. Não para mim. Confie nele.
Rarden continuou sem entender o que tudo aquilo queria dizer, mas uma coisa ele sabia: Roggrer era um homem bom.
E agora ele fazia aquele pedido. Lembrou-se das mãos flamejantes do velho. Um segredo guardado durante anos. Teria ele outro segredo? Ele era mesmo um homem bom?
Infelizmente, o garoto não teve mais oportunidades de diálogo com o ancião da aldeia, pois este se espremeu e se retorceu. A mulher de vestido verde aplicou-lhe outra mistura em seu ferimento e no mesmo instante o velho Roggrer sorriu pela última vez.
Demorou para que todos aqueles acontecimentos fossem absorvidos. Talvez demorasse ainda muitos e muitos dias. Repentinamente, toda a vida naquele lugar se desmanchou. Rarden olhou para as pequenas tendas, todas desfeitas, jogadas ao chão. Aqui e ali havia pedaços de tecido e lenha em chamas.
Seu amigo Lyn estava morto. O senhor Truto e o velho Roggrer também. Dento, Gaella...
Foi então que Rarden chorou, juntando o seu lamento aos prantos de Nissa e Botrovin.
Ele não sabe quanto tempo permaneceu cabisbaixo, chorando, mas não foi o suficiente.
- Eu sei que todos vocês estão abalados e assimilando tudo isto - disse o homem de cabelos nos ombros -, mas precisamos sair daqui. Erid enviará outros atrás do garoto.
- Não iremos a lugar nenhum - Toromin retorquiu.
O estranho olhou para seu companheiro mais velho.
- Meu caro, eu sei que este é o lar de todos vocês - Caonas disse. - Mas aqui não é seguro para ninguém, principalmente para o garoto - apontou para Rarden.
Toromin pareceu refletir.
- Só sairemos se vocês nos contarem o que querem com o meu filho.
Os estranhos se entreolharam.
- Seu filho é um garoto especial - Caonas explicou. - Assim como você já foi um dia. Mas esta habilidade também traz consigo o interesse de pessoas em usá-la.
- Assim como eu já fui? - Toromin pareceu confuso.
O estranho olhou para o companheiro.
- O garoto é adotado? - ele parecia não precisar da resposta para ter certeza. - Isso faria muito sentido. Há poucos como vocês vivendo em condições como esta.
Cada palavra daquele desconhecido soava como um mistério a ser solucionado.
Toromin não respondeu nada, parecia querer encerrar aquele diálogo, mas Rarden queria entender quem eram aquelas pessoas e por que ele estava sendo perseguido.
- Eu sou adotado - ele falou de súbito.
Toromin fitou o filho zangado e em seguida para os dois homens.
- Eu quero que todos vocês voltem para o barco de Dick e saiam daqui.
Caonas não parecia convencido.
- Erid não descansará até encontrar seu filho. E ele o levará para sempre.
Toromin olhou para os mortos ao redor e refletiu.
- Quem é Erid, afinal?
Caonas deu passo à frente.
- Ele é um mago muito poderoso e tem ao seu lado bruxos habilidosos que não cansarão de fazer visitas a esta aldeia.
Magos? Então eles são mesmo reais?
Claro que eram. Aquela manhã inteira foi uma prova inquestionável de que a magia era real.
Eu também sou um mago?
- E o que você propõe para salvar Rarden desse Erid? - Toromin quis saber.
- O lugar mais seguro para o garoto é ao nosso lado. Mas não podemos levar todos vocês.
- Então você sugere levar nosso filho e nos descartar em qualquer lugar?
- Absolutamente, não! Vocês ficarão em um lugar seguro.
Todos acompanhavam o diálogo com atenção, embora a mulher de gibão e calça demonstrava impaciência na resolução.
Toromin meneou a cabeça.
- E se é seguro, por que Rarden não pode ficar também conosco? Por que ao seu lado esse mago poderoso não o caçaria?
Caonas olhou para o seu companheiro e novamente para Toromin.
- Porque nós é que estamos caçando Erid.
Toromin riu. Mas não foi um riso genuíno, parecia um reflexo de espanto.
- Então um grupo de seis pessoas, sendo uma delas uma criança, será capaz de proteger meu filho de um mago poderoso, como você mesmo está me garantindo que ele é.
Ele suspirou.
- Meu filho não vai a lugar algum.
Rarden avaliou a situação. Se ele era um mago, talvez tivesse mais chances de vida do que seus pais, caso ocorresse outro ataque como aquele. Pelo menos era assim nas histórias. Talvez fosse mais seguro para seus pais se ele estivesse distante. Além do mais, se ele realmente era um bruxo ou qualquer coisa parecida, Caonas e os outros pareciam mais adequados para explicar quem ele era.
Lembrou-se da ilha e do naufrágio. Definitivamente ele não era um garoto comum.
Eu vou com eles, Rarden quis dizer.
Seu motivo maior para seguir Caonas era a segurança de sua família e dos outros da aldeia que sobreviveram. Mas, havia uma razão menor, embora importante para o jovem. Se ele tinha mesmo algum poder especial, ele queria saber. Ele precisava saber.
Caonas o fitou, como se compreendesse o que passava em sua cabeça.
- O que o garoto quer?
Rarden prendeu a respiração. O que responderia? Sabia que seu pai jamais o deixaria ir, mesmo que provisoriamente. Pensou mais uma vez e presumiu que seguir rumo ao desconhecido ao lado de estranhos simplesmente porque Roggrer conhecia um deles não aparentava ser uma boa ideia.
- Já disse que ele não irá com vocês - Toromin retrucou novamente.
O homem de cabelos brancos ficou em silêncio por um instante.
- Está bem. - deu-se por vencido. - Deixem-nos pelo menos levar todos vocês para um lugar seguro.
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