Laya - 4
Debruçada sobre sua cama, a princesa Laya Eterius abraçou novamente a barriga, mas foi inútil, como da última vez. A dor que lhe rasgava o ventre a incomodou a noite inteira, e mesmo com todos os cuidados e receitas da aia Tyla, o sofrimento não cessou.
Sua serva estava sentada ao lado da cama, inerte. Até mesmo ela já havia desistido de sanar a dor da princesa.
Laya sentou-se. Sempre foi uma posição que incomodava em dias como aquele, porém ela estava convicta de que não existia possibilidade de doer mais.
Olhou entre as pernas e viu a mancha escarlate se espalhar pelos lençóis.
- Não se preocupe com isso – Tyla apressou-se em falar. – Eu limparei assim que puder.
Laya estava certa que sim. Os poucos dias ao lado da sua aia serviram para confirmar que a serva, apesar de não seguir estritamente as condutas da corte, era eficiente em seu trabalho. Inconveniente, mas eficiente.
- Alteza, deseja outro pano quente? – Tyla insistiu, mas a princesa dispensou.
Os homens não precisavam se preocupar com aquele mal todos os meses, nem com as dores do parto, muito menos com a alimentação de um bebê, era o que Laya pensava a cada ciclo.
Se tudo isso foi um desejo do Pai de Todos durante a criação, deveria existir alguma compensação de valor inestimável para as mulheres. Faltava apenas descobrir qual seria este contrapeso. Talvez nunca soubesse, concluiu sem dar muita importância ao assunto.
- Vossa alteza se sentirá melhor após um banho – a criada garantiu. – A rainha informou que te aguardará para quebrar o jejum ao seu lado, majestade. Creio que será bom caminhar um pouco.
A princesa e a rainha se alimentavam pela manhã em encontros não tão raros. Mas naquele dia, a indisposição da princesa a fez levantar-se mais tarde. Entretanto, a informação de Tyla confirmou que ainda assim a rainha desejava estar com a princesa.
Laya assentiu e se preparou para se levantar da cama. No entanto, a porta foi aberta bruscamente por um dos soldados da Guarda Real.
- Quem ousa invadir o quarto da princesa desta maneira? – Tyla levantara da cadeira rugindo como uma leoa.
Porém, ao ver quem entrou no aposento, a criada se calou imediatamente e curvou sua cabeça. A coroa dourada sobre os cabelos pretos do homem brilhava e combinava com o dourado bordado do casaco branco.
- Majestade – ela se limitou a dizer em uma saudação nervosa.
O rei Camariel não se importou com suas palavras e a ignorou completamente. Ao invés de dar atenção às duas mulheres presentes no quarto, o soberano do reino esquadrinhou o lugar. Seus olhos dotados de total indiferença fitaram as paredes com uma estranheza incômoda. Observou os janelões, o chão áspero e por fim a cama onde Laya estava sentada.
Seu olhar de reprovação morreu na mancha de sangue entre as pernas da princesa e ficou ali por um instante, quieto, resoluto e desgostoso.
Mesmo estando coberta com um lençol, a princesa sentiu-se exposta, violada. O rei nunca dera à sua filha nenhum resquício de interesse, um fato que ela tentou extinguir desde a sua infância. Mas naquele instante, sob o olhar julgador do rei, ela presumiu que a indiferença do seu gerador era mais agradável do que aquela atenção depreciativa.
- Um corpo que sangra todos os meses revela a fraqueza feminina – disse o rei. – A própria natureza se encarregou de nos demonstrar esta verdade.
Não, rei Camariel, pensou Laya. Esta verdade só demonstra que mesmo sangrando, somos fortes.
Ela quis falar o que pensava sobre o assunto. Desejou dizer muito mais. Contudo, sabia que seria inútil, por isso optou pelo silêncio.
O rei olhou para o mar através de uma das janelas.
- Imagine metade de um exército no fervor de uma guerra, todos esses soldados indispostos e sentindo dores, não porque foram atacados, mas porque o próprio corpo os castigava.
Cada palavra era dita como se o rei estivesse vomitando uma refeição indigesta, o que só aumentou ainda mais a repulsa de Laya em relação à sua presença ali, naquele momento.
De repente, ele olhou para Tyla, finalmente lhe direcionando sua atenção.
- Saia – ele ordenou secamente.
A serva não titubeou, apenas inclinou sua fronte novamente e desapareceu pela porta, que foi fechada assim que saiu, deixando no aposento apenas o rei e sua filha.
Ele demorou a falar. Permaneceu em pé, calado, enquanto Laya observava sua barba preta à espera de vê-la se movimentar, sinalizando o início do que provavelmente seria uma conversa indesejada.
- Pouco antes do incêndio – ele pronunciou -, sua mãe me informou que você estava insatisfeita com minha posição de pai e rei.
Laya nunca tinha falado explicitamente aquelas palavras para a sua mãe, mas a afirmação estava absolutamente correta.
O rei aproximou-se da cama.
- Você acha que está fazendo bem ao reino com suas tristezas? Sua mãe está mais aflita a cada dia e certamente seu dissabor está afetando a capacidade dela de gerar um herdeiro legítimo.
Aquelas palavras só confirmaram o que Laya já presumia. Ela jamais seria legitimada como herdeira do trono de Luteneea.
- Um dia você perceberá que tudo o que faço é pelo bem da coroa – prosseguiu o rei. - O que você acha que aconteceria se espalhassem a notícia de que a filha insubmissa de um rei conspira contra ele? Como minha filha única, você deveria servir a Luteneea, mantendo nosso sangue perpetuando sobre o trono e não se entregando às lamúrias pessoais, afligindo a rainha e pondo minha autoridade em risco.
Sua voz ressoava como uma serpente venenosa que sibilava sua língua com ódio.
- Sem um filho homem – ele retomou -, o reino seria usurpado por algum príncipe qualquer que se casasse com você. Com muita sorte, um neto retomaria o trono de volta ao sangue dos Eterius, mas como arriscar uma tradição de séculos sobre os ombros de alguém que mal consegue se levantar da cama porque o corpo está sangrando como um porco abatido?
Ela cerrou os punhos, apertando os lençóis com força.
- E se eu não me casasse e governasse como uma rainha? – ela retrucou por impulso e imediatamente se arrependeu. Argumentar contra o rei Camariel Eterius era uma estupidez, um desperdício de tempo.
Esperou por uma resposta colérica, mas ele se limitou a rir com sarcasmo, segundo ela julgou.
- Você acha mesmo que o povo obedecerá uma rainha? – ele zombou. - Você acha que o exército se reuniria com uma mulher para planejar táticas de guerra?
Laya sentiu sua irritação subir pelo pescoço e mordeu o lábio para evitar outra réplica impensada. Os livros da história de Luteneea discordavam da opinião do monarca, mas a princesa, mais uma vez, preferiu se calar.
- Não seja tão ingênua – ele prosseguiu. – Se quer servir ao reino, então se certifique de que seus pensamentos insubordinados se manterão aprisionados em sua mente fértil.
Ele falava sem elevar a voz, mas Laya conseguia notar sua feição sob a pressão da ira.
- Acaso quer causar uma rebelião? – sua voz foi gradativamente ficando mais alta e a princesa começou a desconfiar que os guardas além da porta estavam ouvindo aquela parte da conversa. - Você quer deixar que os malditos Eterius de Forte Rochoso se achem dignos de assumir o trono? Pois não sei o que seria mais desonroso, você ou eles gerindo o reino.
O monarca suspirou e passou a mão sobre o negro e curto cabelo. Deu mais uma olhada nos lençóis sujos que cobriam a intimidade da princesa.
- Agora apronte-se – seu tom de voz estava contido como antes. - A rainha deve estar te esperando. E não preencha ainda mais a mente dela com seus devaneios de insatisfação. Quanto mais você a irrita, maior é a dificuldade dela em gerar um filho que nos salve desta vergonha.
O rei se recompôs passando as mãos sobre o casaco, encerrando a conversa. Girou sobre os calcanhares e saiu. Logo depois Tyla entrou e fechou a porta.
- Irei te preparar um banho, alteza.
A princesa assentiu, muda.
Quando seu pai entrou pela porta do aposento, ela não conseguiu imaginar o motivo para aquela visita. Foi apenas a segunda vez que ele a visitara depois do incêndio, que ocorreu havia quase um mês atrás.
Mas ali, enquanto observava a criada medindo a temperatura da água com a mão, Laya encheu seus olhos de lágrimas e entendeu tudo. A maior preocupação do rei era manter a linhagem real no poder.
Mas o que a fez chorar não tinha relação com coroa, trono ou tradições. Para ela, ainda que já soubesse em seu íntimo, a dor lhe sobreveio quando ouviu do próprio pai que ela era apenas uma peça do seu jogo de poder.
- Você está bem, majestade? – Tyla veio ao seu encontro, notando seus olhos úmidos.
Ela balançou a cabeça indicando que estava tudo bem e pôs a mão sobre o ventre.
- Não é nada. Apenas a dor – mentiu. Não que não estivesse sentindo dor, mas a parte do corpo que lhe motivava o pranto era outra.
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