Laya - 2
Apesar do sol adiantado no céu, a princesa Laya continuou no seu novo aposento. A sua única companhia desde o incêndio foi sua mãe e a aia da rainha, que desempenhava o papel de ajudante para ambas. Calestrina foi afastada do seu cargo desde o acidente e a rainha Ceyla alegou que não podia confiar em ninguém até que o episódio fosse devidamente explicado.
Através da janela, a luz forte invadia o aposento e iluminava o quarto por inteiro.
Laya notou a melancolia do lugar e concluiu que esta se devia à falta de manutenção. As paredes de pedra não eram limpas havia muito tempo e nascia musgo em quase todos os cantos.
A rainha ordenou que tudo fosse adequadamente limpo, mas a pressa em conseguir outro quarto para a princesa foi tão urgente que ela se mudou para o novo aposento daquele jeito mesmo.
- Uma limpeza será feita quando possível - disse o rei Camariel, dias atrás.
Havia outros aposentos na Torre do Rei e na Torrei dos Leitos, mas a rainha achou que o quarto do príncipe morto era o segundo mais seguro da Morada do Rei, menos protegido apenas que o aposento principal do castelo, destinado ao monarca e sua esposa.
O tom de desolação do aposento só confirmava as histórias de toda a tristeza que imperou entre aquelas paredes anos atrás.
Segundo soube pelas criadas, o príncipe Widillan, primo de Laya e herdeiro do trono, passou todos os seus anos de vida preso naquele quarto, atormentado por uma enfermidade incapacitante que o levou aos braços de uma morte prematura, aos dez anos de idade.
Camariel, que na época já era tutor do príncipe e rei provisoriamente, acabou assumindo o trono definitivamente.
"Ele teria a minha idade", Laya pensou.
Após a morte de Widillan, o que lhe restou como memória estava ali, naquele quarto. Quanto sofrimento aquelas paredes presenciaram?
Calestrina foi dispensada, uma punição sutil acerca da sua responsabilidade no incêndio. E o médico e criados do príncipe? Foram culpados por sua morte?
- Você visitava o príncipe Widillan quando ele estava vivo? - Laya perguntou à rainha, que havia entrado no aposento naquele momento.
Ceyla a fitou, confusa.
- Por que esta pergunta agora? - questionou, indiferente.
Laya deu de ombros. Nem mesmo a princesa sabia onde queria chegar com aquela indagação.
Franziu o cenho, formulando a pergunta seguinte, que realmente lhe importava bastante.
- Quando poderei sair deste quarto? Eu escuto passos de guarda do lado de fora, mas é o máximo que ouço além da sua voz.
O olhar da rainha parecia cauteloso, mas com um brilho de compaixão.
- Quando for seguro - respondeu.
Ceyla caminhou até a cama e sentou-se, fitando o céu azul através da janela.
- Tivemos muita sorte por nada ter acontecido a você naquela noite. E devemos agradecer eternamente ao Pai de Todos pelo livramento.
Laya concordou.
- Por este motivo - prosseguiu a rainha, seus cabelos dourados balançando suavemente com a brisa que adentrava -, iremos uma vez por semana ao Templo do Pai de Todos para expressar nossa gratidão.
Laya arqueou as sobrancelhas, surpresa e feliz. Sairia não só do quarto, mas também da fortaleza, diretamente para o centro de Monte Branco.
- Não será perigoso? - quis saber a opinião de sua mãe e garantir que realmente estava ouvindo aquelas palavras.
A rainha levantou-se e assentiu.
- Se o perigo nos alcançou entre as muralhas da Morada do Rei, estou certa de que lá fora estaremos ainda mais vulneráveis. Mas além da minha Guarda Pessoal, o rei estabeleceu cavaleiros para cuidarem da sua segurança também e ninguém terá a ousadia de nos atacar.
Laya considerou o desejo de sua mãe. Se alguém tentou matar a filha do rei, quais garantias elas teriam de que não tentariam novamente, mesmo sob a forte vigília de um punhado de homens armados?
Sua mãe sempre admitiu sua fé no Pai de Todos, e encarar qualquer ameaça apenas para cultuá-lo em seu santuário ratificava sua devoção.
Laya sorriu para a rainha e esta caminhou até a porta.
- Iremos dentro de alguns dias - disse Ceyla. - Provavelmente sua nova aia já terá chegado da viagem até lá.
A rainha proferiu suas últimas palavras poucos antes de sair do aposento.
Nova aia já terá chegado da viagem?, pensou Laya.
Por que uma serva teria que vir de outro lugar que não fosse Monte Branco? A informação apenas confirmava a dispensa permanente de Calestrina.
Nunca gostou efetivamente de sua antiga aia e da sua habilidade em falar muito pouco, além do seu olhar fundo que parecia sempre resmungar. A nova criada também seria dotada de tanta severidade?
A princesa deu de ombros, cansada de conjecturas.
Depois do meio-dia sua mãe retornou ao aposento do príncipe e a encontrou debruçada sobre o parapeito de uma das janelas, pensativa.
A rainha usava um longo vestido verde escuro com pedras de ouro encrustadas no busto. Seu longo cabelo loiro brilhava como o dourado da vestimenta.
Laya já a aguardava. Após os dias que vieram depois do incêndio, a rainha resolveu que passeios regulares ao jardim do castelo também fariam bem à princesa.
Do lado de fora do quarto, Sir Felipo e outros dois soldados da Guarda Pessoal da rainha vigiavam a pequena ante sala.
Laya sabia que Felipo não fazia parte da guarda de sua mãe, o que significa que ele estava ali porque era um dos soldados responsáveis por sua segurança.
As duas se dirigiram à escadaria e Laya ouviu passos vindos de alguns degraus abaixo. A princesa reconheceu o cabelo dourado de Sir Dante, que fez uma reverência profunda às duas.
A rainha acenou e desceu, acompanhada por Laya e os soldados, que vinham logo atrás.
Sir Dante juntou-se ao grupo e Laya concluiu que apenas uma pessoa teria a ideia insana de pôr o cavaleiro de Forte Rochoso para protegê-la.
O passeio não demorou. Pelo menos não o tempo que Laya esperava que durasse.
Uma hora depois ela e sua mãe já estavam de volta ao novo aposento da princesa.
Laya notou a inquietude da mãe todas as vezes que entrava naquele quarto. Seu semblante sempre demonstrava tristeza quando seus olhos miravam as paredes e móveis do quarto.
- Dentre tantos soldados, o rei tinha que escolher Sir Dante para a minha escolta? - a jovem questionou quando a porta do quarto se fechou.
A rainha franziu a sobrancelha e tentou expressar o que parecia ser um sorriso de consolo.
- Não há cavaleiro mais adequado para chefiar a sua segurança.
Laya emudeceu, pasma. Dante não só seria seu guarda pessoal, mas chefe do grupo.
Entretanto, o que a tomou como um ato de traição foi o fato de sua mãe demonstrar aprovação naquela ordenação.
- Você está defendendo este despautério do rei? - ela se limitou a questionar em poucas palavras, pois ainda não absorvera completamente aquele acontecimento.
Ceyla pareceu esperar por algo mais.
- Você se esqueceu que um gesto incompetente dele quase custou nossas vidas? - prosseguiu Laya.
A rainha parecia tranquila.
- Sir Dante foi chefe da minha guarda antes de você nascer, por isso sei que há poucos neste castelo tão capazes de te manter segura quanto ele.
Laya conhecia aquela calma na voz de sua mãe. Significava firmeza, convicção. Aquela discussão seria uma causa com um lado vitorioso predefinido, e ela sabia muito bem qual lado da corda não romperia no embate.
- Então é essa a justificativa? - tentou. - O bom serviço que esse cavaleiro prestou há quase vinte anos atrás?
- Ele é leal ao reino. Uma qualidade ausente naquele que pôs fogo no aposento da herdeira do trono enquanto ela dormia lá dentro.
- Lealdade não protege vidas! - Laya sentiu-se incomodada em levantar a voz para a rainha, mas o estrago estava feito.
No entanto, a rainha continuou impassível.
- Pelo contrário, filha - disse, parecendo decepcionada. - A lealdade de um cavaleiro salva mais vidas do que o gume de uma espada.
Ceyla levantou-se, repentinamente revelando cansaço em seu rosto, e saiu sem pronunciar mais nada.
Laya notou que sua respiração acelerou durante a conversa.
Inspirou fundo e equilibrou suas emoções. Ela teria deixado que sua aversão a Sir Dante ditasse regras em lugar da razão? Sir Dante não foi capaz de defender o castelo na Invasão dos Cantrodos anos atrás.
Mas só aquele feito anularia a capacidade do cavaleiro? Por mais que ela quisesse, não conseguia esquecer o terror daquele dia.
E Sir Dante seria para sempre o principal responsável. Era o que todos na Morada do Rei cochichavam. E se todos entraram em consenso quanto àquele episódio, como poderia ela pensar diferente?
De repente ouviu sua própria voz dialogando em sua mente, indagando o que acontecia aos suseranos que baseavam suas ações unicamente nos rumores consensuais que lhes eram soprados aos ouvidos.
Laya deitou-se mais uma vez, dessa vez confusa.
Não, ela decidiu, enfim. Sir Dante não deveria estar ocupando aquele cargo.
***
Apesar dos dias passados, o quarto do príncipe Widillan continuava tão mórbido quanto desde a primeira noite em que Laya dormiu ali.
Naquela manhã, a princesa não vira mais ninguém além de Caméria, a principal criada de sua mãe, que desde a dispensa de Calestrina passou a cuidar dos serviços de Laya.
Após o desjejum, Caméria a vestiu e Laya aguardou. Sua mãe informou por sua aia que deveria estar pronta. A rainha não informou o motivo, mas ela sabia.
E o motivo chegou. A porta se abriu e a rainha entrou. Logo atrás dela, uma mulher surgiu fez uma pequena reverência.
- Laya - disse a rainha -, esta será sua nova aia, Tyla.
A princesa a fitou. Tinha, no mínimo, vinte anos a menos que Calestrina. Exibia o que parecia ser um sorriso, saudando a princesa.
- É uma honra servi-la, majestade - Tyla cumprimentou.
Laya não disse nada, mas meneou a cabeça educadamente.
- Tyla - rainha prosseguiu -, Minha criada Caméria te mostrará como proceder. Mas creio que você não terá dificuldades.
A serva fez mais uma reverência.
Ceyla caminhou para a porta.
- Venha, vou te mostrar seu aposento.
A mulher de cabelos pretos seguiu a rainha e Laya ouviu a porta batendo logo depois.
O restante do dia foi apenas a repetição dos anteriores. A princesa ficou enjaulada no quarto e mais uma vez ela prestou atenção nos detalhes ao redor. Fitou o mesmo musgo que brotava na parede e as mesmas cortinas manchadas.
Sinceramente, ela não ligava.
Quando o sol se pôs, Tyla reapareceu e ajudou a princesa a trocar de roupa. A noite estava silenciosa, como as outras.
- Você parece bem, mesmo após o ocorrido - a voz repetina de Tyla era grave e pegou Laya de surpresa. Ela não esperava que uma criada dirigisse a voz a um nobre sem que este ordenasse.
Laya virou-se e fitou o olhar de Tyla. Os olhos escuros da serva brilhavam, mesmo com a noite escura se aproximando.
- Sim, estou bem - disse secamente.
Tyla sorriu e pôs novamente a princesa de costas para continuar desamarrando o vestido.
- Poucas pessoas da sua idade encaram a morte e se sentem bem em poucos dias - Tyla falou.
Laya não disse nada, mas indagou para si mesma se aquela mulher tinha conhecimento sobre como proceder em uma corte real. Provavelmente não, concluiu.
- Mas você tem um sangue ancestral forte, valente - Tyla continuou.
- O caráter implacável do rei o precede em todos os extremos de Luteneea - Laya respondeu bruscamente.
O vestido caiu rapidamente no chão e Laya olhou para sua criada, que parecia indiferente ao seu comentário.
- Eu estava me referindo à sua mãe - a mulher respondeu.
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