Laya - 1
A princesa Laya quase não conseguia respirar. E quanto mais ela tentava, mais a sua aia apertava o seu espartilho.
- Acho que já está bom - ela disse para a sua serva.
Mas Calestrina, sua aia, não se incomodou com seus protestos e continuou puxando sem dar uma única palavra até que prendeu a corda com um laço e afastou-se, indicando que finalizara o serviço.
Laya não entendia por que alguém de dezessete precisava usar espartilhos tão apertados.
"Mas você é a princesa de Luteneea", dizia sua mãe, a rainha Ceyla. "Você precisa estar sempre apresentável, pois você é a herdeira do reino".
Laya sabia que não era verdade. Uma princesa jamais seria herdeira de reino algum. Seu maior prêmio por ter nascido mulher na realeza seria um casamento arranjado com o príncipe herdeiro de algum reino aliado.
Se ela fosse, de fato, herdeira do trono, não teria ouvido pelos corredores do castelo que o rei Camariel Eterius, seu pai, tentava a todo custo gerar um filho homem, embora sem sucesso.
Mulheres não herdavam tronos, poder ou direito a voz. Mulheres não herdavam nem mesmo a permissão para escolher quem seria a sua voz.
Olhou para a janela do quarto. Lá fora, as águas do Mar dos Mil Destinos pareciam livres, ondulando entre Luteneea e tantos outros reinos.
- Apresse-se, princesa - disse Calestrina em tom seco. - A rainha a aguarda para o desjejum.
Laya assentiu e saiu. Desceu as escadas em espiral da Torre do Rei com sua aia a seguindo de perto.
Atravessou o jardim da Morada do Rei, o castelo real, e deparou-se com uma grande porta de madeira ladeada por dois soldados da Guarda Pessoal da Rainha. Um deles abriu a porta e a princesa entrou, acompanhada por sua serva.
A rainha Ceyla estava no parapeito da sacada do recinto. O vento da manhã atravessava o mar e subia com força, fazendo o longo cabelo loiro da rainha balançar em um ritmo dançante.
A rainha olhou para trás, aproximou-se e sorriu.
- Você está linda - disse, sentando-se.
A princesa Laya quis dizer o mesmo, mas nem ao menos abriu a boca. Após ambas sentarem, duas servas lhes trouxeram alimentos para o desjejum.
- Falou com o rei? - Laya quis saber.
- Sim, falei com o seu pai - respondeu a rainha, enfatizando o parentesco entre o rei e a princesa.
Laya argumentava que o chamava de rei por respeito ao reino, mas a rainha não considerava suas palavras.
"Antes de ser rei, ele já era o seu pai", a rainha quase sempre respondia.
- O que ele respondeu? - Laya perguntou, esperançosa.
Ceyla franziu o cenho e suspirou.
- Você deve imaginar o que ele respondeu. O lugar de uma princesa não é fora do castelo, senão para ir ao Templo do Pai de Todos. O que te faz querer se misturar com a população?
Laya retorceu-se sobre a cadeira. Durante toda a sua vida, viu os mesmos rostos todos os dias. Monte Branco, a cidade que rodeava o castelo, era a maior de todo o reino, e, segundo a última estimativa feita, o número de moradores na cidade ultrapassava a contagem de cento e noventa mil.
A princesa queria saber como eles viviam, o que faziam durante o dia e do que precisavam.
A rainha engoliu um pedaço de bolo de laranja.
- Nós, em nossa posição de família real, devemos sempre nos preocupar com todas as classes e sei que você se preocupa. Eu também me preocupo - fez uma pausa, mas prosseguiu rapidamente antes que Laya pudesse retrucar. - Mas a tarefa de intervir não é minha, muito menos sua. Seu pai é o rei e não deixa que nada afete negativamente o povo.
Laya não tinha tanta convicção sobre o assunto. Como um rei que afeta sua filha negativamente todos os dias consegue suprir as necessidades de uma população inteira?
Entretanto, sabia que não adiantaria discutir. A decisão já havia sido tomada.
- Posso, pelo menos, vislumbrar Monte Branco de cima das ameias da muralha? - quis saber.
- Você sabe que não - disse a rainha, tentando parecer afetuosa em suas palavras. Subitamente, sorriu. - Mas um passeio pela Torre Norte não teria problema. Talvez você possa ver parte da cidade através das seteiras da escadaria.
Uma lampejo de ânimo brotou dentro de Laya. A Torre Norte estava exatamente acima delas e do topo a princesa teria uma bela visão da cidade.
- Seu pai está lá, no salão de reuniões - disse Ceyla. - Seja discreta.
Laya assentiu, empolgada. Levantou-se de sobressalto e girou em direção à saída, mas sua mãe não daria aquela sugestão e a deixaria sair sem uma notícia infeliz:
- Você não subirá sozinha - disse a rainha e fitou uma serva ao lado de uma das portas do salão.
- Gerúdia, chame Sir Dante e Sir Felipo aqui, agora mesmo.
A serva fez uma breve reverência e desapareceu sob o portal de saída.
Laya suspirou, indecisa sobre seu ânimo. Não sabia ao certo se estava feliz ou chateada. Esta última sensação lhe tomou quando ouviu o nome de Sir Dante. Havia passado quatro anos desde a invasão dos Cantrodos, mas ela ainda podia ouvir pelos corredores que a responsabilidade pela tomada do castelo fora inteiramente daquele cavaleiro.
Por sorte, Sir Felipo estava no castelo e salvou a família real de um perigo fatal, o que tornou Laya extremamente grata por este cuidado.
O que sentir estando diante dos dois homens, um que a expôs à morte e o outro que a salvou da tragédia?
Com sentimentos incertos, decidiu por se alegrar. Logo estaria em uma janela, ainda que pequena, admirando mais do que as paredes cinzentas da Morada do Rei.
Ela mal acabara de compreender suas emoções e dois cavaleiros surgiram pela mesma porta que ela entrou. Ambos trajavam suas armaduras completas de batalha, com exceção do elmo. Das ombreiras pendia uma capa verde adornada nos contornos com detalhes brancos e dourados. O pano era o que diferenciava a Guarda Real do restante do Exército de Luteneea.
Sir Dante de Forte Rochoso, como era conhecido, era um homem alto de mais de quarenta anos, cabelo loiro como o de Laya, embora o dele apresentasse um tom acinzentado típico da idade. As rugas do seu rosto demonstravam fadiga e tristeza, Laya sempre observou.
Sir Felipo era mais novo, talvez trinta e cinco anos, e ainda esbanjava um pouco da beleza a virilidade da juventude. Era mais baixo que Sir Dante, mas impunha tanto respeito quanto este.
- Sir Dante, Sir Felipo - cumprimentou a rainha gentilmente -, acompanhem a princesa Laya até a Torre Norte. Ela quer subir até o topo. Cuidem para que ela não se machuque.
Os dois cavaleiros fizeram uma profunda reverência.
Laya bufou por dentro. Não gostava de ser tratada como uma incapaz. Passou pelos homens e adentrou no corredor que dava para as escadas da torre, sua aia em seus calcanhares.
A Torre Norte estava movimentada naquela manhã. O rei estava trancafiado no salão de reuniões, que estava compreendido em uma das câmaras da torre. Em cada andar havia guardas reais em vigilância.
Laya achava desnecessária toda aquela preocupação. Para um invasor penetrar a Morada do Rei e pôr a vida do rei em perigo, o intruso teria que conseguir penetrar a cidade, que era firmemente guarnecida pelo Exército de Luteneea. Os lados leste, norte e sul do castelo eram banhados pelo Mar dos Mil Destinos e seria impossível alguém escalar as muralhas por ali. Se, ao oeste, o infrator fosse capaz de atravessar Monte Branco sem ser preso ou morto, teria que atravessar as muralhas da Morada do Rei, o que também não seria uma tarefa fácil, visto que há uma vigilância forte nas ameias, missão esta posta sobre os ombros da Guarda Real, responsável pela segurança do castelo.
Quais as chances de um invasor alcançar o rei sob tamanha proteção?
E então ela lembrou-se do garoto que tentou matar o príncipe, seu primo. Ninguém ainda sabia explicar como aquele garoto driblou a segurança inteira do castelo e foi encontrado no quarto do príncipe, tentando matá-lo.
O episódio foi há uma década atrás, mas Laya ainda sentia seus pêlos do braço se erguendo quando pensava no assunto.
- Você está bem, alteza? - questionou Calestrina, rígida como uma pedra.
Laya não se dera conta, mas estava parada no meio da escada, pensando sobre o assassino que tentou matar o príncipe.
Voltou a subir a escada em espiral e passou por mais um andar, onde havia, presumivelmente, mais guardas reais.
Ainda sobre o episódio de nove anos atrás, Laya concluiu que, se a intenção do invasor era não permitir que o pequeno príncipe não assumisse o trono, então ele foi descoberto, preso e morto desnecessariamente, já que o príncipe Widillan morreu anos mais tarde de uma grave doença.
- Pretende subir até o topo da torre, alteza? - quis saber Sir Dante.
Laya girou e o fitou.
- Subirei até onde eu achar que é suficiente.
Ela censurou-se imediatamente. Não quis ser rude. Nunca era rude com ninguém. Quis pedir desculpas, mas sabia que não seria apropriado. Então lançou ao cavaleiro um olhar de remorso.
O guarda apenas inclinou a loira cabeleira respeitavelmente.
Laya continuou subindo até que parou em um dos degraus.
Todos pararam logo atrás.
Bem ali havia uma seteira estreita e comprida. A princesa aproximou-se e então viu.
A cidade de Monte Branco estava lá embaixo, ao oeste. Tudo parecia muito pequeno. Além dos limites da cidade, o terreno se declinava e desaparecia por detrás dos muros de Monte Branco. Laya nunca a tinha visto daquela ótica e finalmente entendeu por que seus mentores de história afirmavam que a cidade recebera aquela alcunha porque fora fundada sobre uma pequena colina.
Dali do alto, foi capaz de identificar apenas o Templo do Pai de Todos, uma suntuosa edificação em meio às casas baixas da cidade.
Cento e noventa mil pessoas. A cidade parecia grande, mas não o suficiente para abrigar tanta gente.
"Menos ingenuidade, Laya", ela pensou consigo mesma. Monte Branco era um amontoado de pessoas de várias classes e as mais pobres, evidentemente, ocupavam um espaço de proporções desumanas.
Deixou-se suspirar de desgosto. Seu pai, o poderoso rei Camariel, pouco importava-se com a situação do próprio povo. A rainha argumentava que o bem das pessoas do reino era uma prioridade do rei, mas Laya não tinha nenhuma certeza quanto às afirmações da mãe.
Calestrina pigarreou, impaciente.
Laya olhou por sobre o ombro e viu a sua serva e os dois cavaleiros inertes, como em uma vigília eterna. Nenhum dos três jamais entenderia, presumiu.
Ninguém entende. Ninguém quer entender.
Desceu as escadas, triste e calada.
Passou de rompante por todo o castelo e trancou-se no seu aposento, deixando a aia do lado de fora, na ante-sala, alegando o desejo de ficar sozinha.
Não quis comer nada naquele dia além do desjejum, mas, ao romper da noite, sua mãe bateu à porta e a fez se alimentar com uma porção de torta de amoras.
Laya, em seus anos passados, aprendeu através dos seus tutores que rainhas e princesas deveriam compreender as normas de etiqueta e os padrões de comportamento da nobreza, mas sempre que questionava os seus deveres junto ao povo, a resposta era imutável.
"Cabe aos reis os deveres para com o povo", ouvia. "Damas devem preocupar-se com bem do seu lar e do seu aposento", alguns retorquiam.
Não que Laya desejasse não ser a princesa ou que tivesse dentro si um espírito aventureiro e destemido, todavia não sonhava disputar posições de beleza e elegância nos bailes e eventos da nobreza.
Com o céu escurecendo sobre a Morada do Rei, a princesa Laya deitou-se, inquieta. O que aconteceu pela manhã não foi o motivo principal para tal insatisfação. Uma série de motivos levaram-na a um ponto de tênue irritação.
Como pólvora no meio de uma fogueira, o que desencadeava ainda mais inquietude em seus pensamentos era a impossibilidade de não poder conversar com ninguém. Calestrina era, definitivamente, o oposto de uma confidente.
Com seus pensamentos frustrantes, Laya adormeceu. Sonhou que estava caminhando sobre a neve, alterando o branco pálido dos seus pés descalços para um tom de azul melancólico.
O vento barulhento que soprava rasgava-lhe a pele onde tocava, mas não havia maneira alguma que Laya conseguisse proteger-se do frio cortante da vetania. Todos os lados estavam mergulhados no branco hipnotizante da neve. Não era possível distinguir terra e céu.
Então surgiu em sua frente seu pai, o rei Camariel.
- Você não pode sair de onde está - disse ele.
Instantaneamente seu corpo petrificou e ela não conseguiu erguer mais um dedo.
Uma figura que parecia ser um fantasma saiu por detrás do rei. A rainha estava ainda mais pálida, seus cabelos loiros esvoaçando freneticamente, agitados pelo vento.
- Escute seu pai, Laya.
A princesa tentou responder, mas sua garganta estava bloqueada. Sua boca estava gelada, bloqueada por uma massa disforme, que ficava cada vez mais firme à medida em que ela tentava expulsá-la da boca.
Seus nervos entraram em ebulição e Laya caiu de joelhos. Subitamente a neve sob suas pernas cedeu e Laya sentiu-se afundando em líquido fervente.
"A neve está derretendo", pensou, aflita.
O rei e a rainha apenas a observaram. Seu pai, impassível, expressava a sua rígida e habitual feição. Sua mãe sorria docemente.
O frio de outrora deu lugar a um calor intenso e era como se a neve passasse a queimá-la de tão quente. O vento passou a soprar lascas de chamas que rodopiavam ao ritmo do ar abrasivo.
O branco gélido sangrou e tudo se pintou de um laranja vivo e escaldante.
"Estou sendo queimada!", Laya alarmou, mas ninguém respondeu.
"Estou sendo queimada!", repetiu.
A fumaça das chamas penetrou suas narinas e ela perdeu o ar. Sua respiração cortou seus próprios ouvidos com um gemido gutural, desesperado.
Acordou de súbito.
Laya estava de volta ao seu aposento na Morada do Rei, porém o pesadelo continuava.
O recinto inteiro estava mergulhado em labaredas de fogo que lambiam cada tecido e superfície de madeira com uma ferocidade incontrolável.
Laya sentiu o pânico correr agitado por cada parte do seu corpo.
Levantou, assustada, sem saber o que fazer. Sua cama havia sido inteiramente tomada pelas chamas e o fogo se espalhou pelas grossas cortinas que ladeavam as janelas do aposento.
- Fogo! - gritou. - Fogo!
Mas o único som que ela ouviu em resposta foi o crepitar das chamas que avançavam contra ela a cada peça de cortina que ia se desfazendo pelo chão.
- Alguém me ajude! - ela gritou mais uma vez.
Calestrina deveria estar dormindo na ante-sala, logo ao lado da porta. Como ela não teria notado o incêndio?
- Calestrina! Alguém me ajude!
Mas ninguém a ouviu. O fogo parecia faminto, correndo ligeiro pelo chão de pedras. A fumaça roubou todo o ar do aposento e a visão de Laya tornou-se turva. Tal qual o sonho, não conseguiu respirar. A garganta seca ardia como se ela estivesse saboreando brasas vivas.
Sentiu-se tonta, o ar estava cada vez mais quente e impossível de respirar. Já não conseguia mais ouvir nada além das chamas tomando uma forma de carrasco, confinando-a cada vez mais no canto do quarto até matá-la, queimada ou sufocada.
Não havia outra saída além da porta. Até mesmo as janelas estavam tomadas pelas chamas.
Só havia uma decisão a ser tomada além de permanecer inerte e ser devorada pelo fogo.
Ela não acreditava que estava cogitando optar por aquela escolha, mas em um gesto de puro instinto, jogou-se corajosamente contra as chamas em direção à porta e desapareceu na imensidão ardente.
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