Dante - 4
Sentado sobre o banco de madeira próximo aos muros internos da Morada do Rei, Sir Dante observava de longe quatro homens. Três deles eram cavaleiros da Guarda Real e o quarto era algum cidadão de Monte Branco.
Debaixo do sol brilhante daquela manhã e refrescados pelos ventos que vinham do leste, os homens seguravam em suas mãos uma peça grande de tecido de couro que em breve substituiria a enorme bandeira verde com bordas brancas e douradas que estampava uma das faces da Torre Norte. No centro da bandeira antiga, a coroa cinza que encimava a torre da mesma cor estava dividida em duas após o rasgão no tecido.
Não era incomum que ventos fortes rasgassem aquelas peças e como consequência sua troca era necessária.
Entretanto, como Dante pôde ouvir daquela distância, o grande problema residia em como subir para efetuar a troca da bandeira.
- É possível içar a partir do lado interno da torre, mas ainda assim alguém precisará subir até o telhado da cozinha para amarrar as pontas – um dos cavaleiros sugeriu.
O único homem não pertencente à Guarda Real assentiu, entendendo sua função na tarefa. Provavelmente fora escolhido dentre tantos na cidade por suas habilidades de escalada.
- Se Derek estivesse aqui, não teríamos perdido tanto tempo com este assunto – comentou outro guarda. – Ele deve ser o melhor escalador de Luteneea.
- Sim, mas ele não viria prestar este serviço ao rei sob hipótese alguma – lembrou o terceiro cavaleiro, que foi reprimido com urgência e pavor pelos outros dois guardas.
Os quatro homens prosseguiram formulando uma maneira para subir no telhado ao pé da torre.
Derek, Dante se reteve.
Se um dia ele pisasse novamente no castelo, seria para cuspir no brasão dos Eterius e não para hasteá-lo.
Era curioso terem mencionado o ex-cavaleiro naquela manhã, uma semana depois de Dante tê-lo encontrado nas ruas de Monte Branco.
Dante ainda sentia seu estômago se revirar por não ter cumprido o acordo de se encontrarem, juntamente com Crispo.
Contudo, Sir Dalon marcara uma reunião uma reunião inesperadamente para tratar das últimas informações sobre o incêndio no aposento da princesa.
O cavaleiro de Forte Rochoso não podia afirmar com absoluta certeza, mas desconfiava que o chefe da Guarda Real agendava compromissos inadiáveis justamente nos dias de descanso de Dante.
A reunião que não contou com a presença do rei só serviu para que Dante não se encontrasse com Crispo e Derek. Ele até tentou encontrar os dois homens na Taberna do Tel, duas noites após o dia acordado, mas sua busca foi em vão.
Apesar de não ter honrado o compromisso, Sir Dante sentia sua respiração fluir melhor por não ter ido àquele encontro. A maneira como Crispo o abordou foi, no mínimo, intimidadora. Seja lá qual fosse o assunto, Dante julgava que a pauta não seria do seu agrado.
Após Crispo e Derek, juntamente com outros soldados, serem punidos e expulsos da Guarda Real na Invasão dos Cantrodos, o cavaleiro de Forte Rochoso não imaginava um motivo amistoso para Crispo procurá-lo, principalmente porque o próprio Dante, responsável pela falha na defesa do castelo na ocasião, não fora condenado severamente como os outros. Obviamente, ninguém explicou o motivo, mas todos sabiam que a ação corretiva sobre ele foi amenizada por causa do seu tio, Lorde Adillan Eterius, e a forte influência de Forte Rochoso sobre os cofres da Coroa.
- Se Derek ainda estivesse aqui, eles já teriam resolvido esse problema – Felipo surgira por detrás do banco de madeira e sentou-se ao seu lado, observando os cavaleiros que ainda discutiam sobre o içamento do estandarte real.
Dante olhou por sobre os ombros para se certificar de que os homens de vigia no caminho de ronda da muralha interna não estivessem ouvindo seu amigo.
Felipo lançou-lhe um olhar despreocupado, como se só então notasse sua presença.
- Pensei que te encontraria à porta do aposento da princesa.
- Gael e Demond estão lá – Dante respondeu sem tirar os olhos da enorme bandeira dobrada sobre o chão.
- Que bom. Me poupou de subir todos aqueles degraus da Torre do Rei.
Dante o fitou franzindo o cenho, curioso.
Felipo riu ao ver seu espanto. Ele segurava um envelope e, entendendo a mão, o entregou a Dante.
- Correspondência para você – explicou.
Dante sobressaltou as sobrancelhas. Não era comum receber cartas.
O envelope estava lacrado com cera dourada e a gravura do lacre exibia a mesma torre do brasão da família real, porém sem a coroa sobre ela.
Dante enrijeceu o fronte. Que coincidência ter pensado em seu tio Adillan e instantes depois receber uma carta sua.
- Notícias ruins de Forte Rochoso? – Felipo observava o lacre e a identificou sem dificuldades.
Sir Dante lançou-lhe um olhar de reprovação pela intromissão, mas ele deu de ombros sem se importar.
O chefe da guarda pessoal da princesa suspirou e leu o conteúdo da correspondência.
“Sir Dante,
Fui informado sobre o incêndio da corte. Espero que a família real não tenha sofrido nenhum mal com este infortúnio.
Espero também que você tenha lidado bem com esse episódio infeliz.
Peço ao tempo que seja bondoso para que em breve nossa família esteja reunida outra vez em um momento festivo.
Rycard envia um caloroso abraço e Ardon pede para te relembrar das lições de esgrima.
Cordialmente,
Adillan Eterius, Senhor de Forte Rochoso.”
A letra era, sem dúvidas, do seu tio. Antes de ler a carta, Sir Dante superestimou seu conteúdo, imaginando qual assunto urgente geraria a necessidade de uma correspondência. Mas não havia nenhum motivo alarmante.
O afeto estava presente nas palavras, como sempre seu tio foi nos anos em que Dante esteve sob seu cuidado. Mas seu zelo paternal nunca chegou ao ponto de enviar portadores de cartas. Lorde Adillan Eterius tinha conhecimento do efeito do fogo sobre Dante e talvez por este motivo ele tenha achado prudente enviar-lhe aquela mensagem cortês.
O cavaleiro releu o documento em suas mãos. O pequeno Ardon não se esquecera daquela conversa, mesmo três anos tendo se passado.
- Há algo de errado com meus olhos ou estou vendo você feliz? – Felipo comentou, sarcástico.
Felicidade talvez fosse uma alcunha muito profunda para o que ele estava sentindo naquele momento, mas Felipo não estava errado. Dante sabia que estava sorrindo.
- Prometi a Ardon, meu primo, que lhe ensinaria a brandir uma espada quando ele tivesse idade suficiente para aguentar o peso da arma – ele deu por si rindo novamente. – Ele tinha apenas sete anos quando fiz esta promessa e ainda se recorda de cada palavra.
Felipo também sorriu e voltou a fitar os soldados em mais uma tentativa de içar o brasão dos Eterius. Um deles estava na seteira mais alta da Torre Norte, como se dali pudesse ter uma ideia melhor de como executar a tarefa.
- Eu era apenas uma criança quando estive em Forte Rochoso pela primeira vez – Felipo disse. – Lorde Rycard já era um rapaz e eu me lembro muito bem de como eu o admirei na ocasião por seu ar arrojado, destemido.
Dante hesitou por um instante.
- Não sei se entendi qual a relação das suas memórias com o pequeno Ardon.
Felipo deu de ombros, apoiando as mãos no banco de madeira.
- Vinte anos depois e eu ainda acho estranho recordar que Lorde Adillan Eterius tem outro filho. Lorde Rycard já era um adulto, não pensei que um dia teria um irmão.
Dante assentiu. Quando soube, através de uma carta como aquela que ele segurava em suas mãos, que seu tio teria outro filho, também ficou surpreso.
- Quer que eu conte algo interessante sobre essa minha visita a Forte Rochoso? – Felipo prosseguiu, sem esperar a resposta do amigo. – Na ocasião, pensei que você também fosse filho de Lorde Adillan.
O equívoco de Felipo, então criança, era compreensível. Desde quando Dante fora acolhido sob os cuidados de Lorde Adillan, ele sempre foi tratado como um filho legítimo por seu tio. Até os criados novos se confundiam. De igual modo, Rycard o aceitou como um verdadeiro irmão, convivendo entre brigas tolas e abraços sinceros.
- Posso te fazer uma pergunta? – Felipo perguntou, olhando diretamente para os olhos do amigo. Dante acatou o pedido. – Por que você nunca quis ser chamado pelo sobrenome dos Eterius?
Ninguém nos últimos dez anos havia feito aquela pergunta, mas ele estava sempre pronto para respondê-la.
- Eu não queria que o peso deste nome me trouxesse privilégios na corte.
Felipo anuiu com um gesto de cabeça. Qualquer pessoa no reino de Luteneea compreendia quantas portas aquele nome era capaz de abrir, seja o dono do sobrenome um membro da família real ou descendente dos ricos Eterius de Forte Rochoso, duas famílias primas distantes, separadas por dezenas de gerações.
No entanto, sua intenção de permanecer no anonimato foi traída quando alguém, em sua chegada a Monte Branco, o apelidou de Sir Dante de Forte Rochoso, um epíteto tão influente quanto aquele que ele tentou esconder.
Felipo pigarreou, franzindo a testa.
- E por que você nunca usou o sobrenome do seu pai?
Dante sentiu como se tivesse levado um soco no estômago. Não estava preparado para essa pergunta.
Suspirou.
- Porque eu não queria nada dele, muito menos um elo que me rotulasse, para todos os que ouvissem meu nome, como seu filho.
Ele demorou a perceber, foi necessário que Felipo olhasse para baixo para que Dante notasse que a carta estava esmagada entre seus dedos, se transformando em um objeto disforme, fruto da força desmedida das suas mãos.
Aquele gesto desencorajou Felipo a prosseguir com o assunto familiar e Dante sentiu-se grato por isso.
O soldado da seteira, na Torre Norte, jogou uma corda para baixo e os homens no pátio começaram a amarrá-la no tecido esticado no chão. Parecia que finalmente encontraram uma solução, apesar de aquele ser só o começo da árdua tarefa.
- Mais uma reunião militar – Felipo comentou, movendo a atenção de Dante para os dois homens recém-chegados no castelo.
Um deles era Sir Gadriel Dornok, Comandante Geral do Exército, com seu andar orgulhoso. Ao seu lado caminhava Sir Augurd Shippard, o braço direito de Sir Gadriel e seu imediato no comando das tropas. Sem dúvidas, homens de confiança do rei.
- Tenho notado o aumento da frequência dessas reuniões – prosseguiu Felipo, fitando os dois cavaleiros que desapareceram pelo portal que dava acesso à Torre Norte. – Será que tem relação com o incêndio?
Dante permaneceu impassível, ou pelo menos tentou. Ele não tinha certeza se o rei investiria tanta devoção para encontrar o culpado pelo acidente que quase ceifou a vida da princesa.
- É muito provável que sim – mentiu, evitando ter que explicar por que pensava o contrário.
A pergunta de Felipo o fez lembrar do incêndio e da conversa com Lancaster. Se recordou de todas as peças que tinha em suas mãos. Até aquele momento, tudo o que tinha era um rei e uma rainha mortos em um naufrágio, um príncipe que, antes de morrer de uma grave doença, sofreu um atentado de homicídio pelas mãos de uma criança e uma princesa que também sofrera uma tentativa de assassinato, quase dez anos depois.
Era possível traçar uma relação entre os três episódios? As pistas que ele conseguiu juntar não o levavam a lugar nenhum. Ele precisava saber mais.
- Felipo – ele procurou as palavras certas -, há quantos anos você está aqui, na Morada do Rei?
O cavaleiro mais jovem levantou uma das sobrancelhas negras, nitidamente surpreso com a indagação.
- Cheguei aqui há quase sete anos, um pouco depois da morte do príncipe herdeiro.
Dante já esperava aquela resposta. Felipo não teria como ajudá-lo sobre os eventos que envolviam o príncipe Widillan. Ele teria que encontrar alguém que estivesse no castelo na ocasião. E o mais importante dos critérios: que fosse de sua confiança.
Cogitou algum dos conselheiros do rei, mas nem os mais justos deles o ajudariam sem levantar suspeitas.
Por sorte, ele ainda podia confiar em mais uma pessoa.
***
A noite parecia um corpo moribundo, silenciosa e triste. Até mesmo as vozes dos soldados da Guarda Real, tão comum em noites como aquela, desapareceram.
Ninguém parecia disposto a trocar palavras, e todos preferiram se limitar às suas vigílias.
Não era uma ocasião favorável para aquele encontro, mas Dante não dispunha de tempo para adiar conversas importantes. Se a princesa ainda corresse perigo, ele precisava agir e recuperar os dias em que não descobriu nenhuma novidade sobre o incêndio.
Parado sob a escadaria da Torre do Rei, em um pequeno corredor com vista para o Mar dos Mil Destinos, o cavaleiro recordou das palavras enigmáticas de Calestrina.
Ele não entendera o que ela quis dizer, mas agarrou-se a ideias que talvez o ajudassem a revelar a resposta que procurava. Esperava estar certo, ou do contrário o tempo que investiu ligando eventos de anos atrás ao ocorrido no aposento da princesa seria inútil.
O silêncio foi quebrado pelos passos leves de alguém que se aproximava. Estava escuro, quase não se enxergava nada além do nariz, mas ele a reconheceu. O coque feito com o longo cabelo deixava-a mais alta do que realmente era.
- Alguma novidade? – ela sussurrou ao se aproximar.
Dante queria poder dizer que sim.
- Ainda não. Mas preciso te fazer algumas perguntas.
Sob a luz débil do luar, o cavaleiro notou a confusão no rosto dela.
- O que você lembra sobre a tentativa de assassinato do príncipe Widillan? – ele indagou.
A mulher ficou ainda mais confusa e o fitou por um instante antes de responder.
- De quase nada – suas palavras decepcionaram o cavaleiro, mesmo ele presumindo que não obteria resposta diferente. – Essa história tem relação com a princesa Laya?
O homem não soube o que falar. Ele mesmo procurava resposta para aquela pergunta.
- Você o via frequência? Me refiro ao príncipe – ele insistiu.
Ela meneou a cabeça com convicção.
Era óbvio que não. Nenhum cavaleiro ou serviçal tinha contato com o príncipe, o que era compreensível, levando em consideração a saúde frágil do herdeiro de Luteneea.
- E você se recorda de alguém que tinha acesso a ele?
Mais uma vez a mulher demorou a responder, como se tentasse lembrar de uma memória longínqua.
- O rei Camariel designou cuidadores para o príncipe assim que descobriu sua enfermidade – ela respondeu. - Um médico e uma aia.
Sim! Ele se lembrou do médico e da serva subindo e descendo pelas escadas da Torre do Rei. Será que os dois moravam em Monte Branco? Como ele os acharia?
A mulher estreitou os olhos, franzindo a testa.
- Mas o que essa história tem a ver com o incêndio? Sir Dante, eu não estou entendendo onde você quer chegar.
Ele tocou seu braço em um gesto terno.
- Talvez eu consiga encontrar informações com essas pessoas. Mas não sei onde encontrá-los.
A mulher sorriu.
- Provavelmente Mestre Dânvalo guardou seus nomes no livro de registro da corte.
Dante franziu o cenho, confuso. Mestre Dânvalo era o responsável pela biblioteca do castelo, mas o cavaleiro de Forte Rochoso desconhecia a existência daquele livro.
A mulher balançou a cabeça, seu coque castanho indo de um lado para o outro.
- Há um livro na biblioteca que contém o nome de todos os funcionários da corte – explicou.
Dante deixou seus dentes surgirem. Era a segunda vez que estava rindo naquele dia.
- Obrigado, Caméria – agradeceu. – Acho que em breve terei uma novidade concreta.
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