Capítulo 17- O meu coração é seu
Olá, pessoal. Consegui adiantar esse capítulo também. Espero que gostem e me enviem seus comentários. Vou revisá-lo depois. Obrigada por tudo. Beijos, Rosana.
ANNE
Desenhar ou pintar sempre foram uma distração e tanto para Anne Shirley que quando mais jovem, cada vez que o mundo parecia magoá-la de alguma maneira, era em suas telas que ela encontrava consolo, deixando sua imaginação ir o mais alto que pudesse, curando com cores vivas e alegres cada uma de suas feridas abertas. Porém, naquela manhã, pintar não parecia causar o efeito desejado, pois enquanto encarava a figura do homem em cima de seu cavalo que era a razão de seu infortúnio, ela não conseguia sentir o alivio habitual que sua arte costumava trazer.
A imagem de Gilbert Blythe criada por suas mãos parecia tão viva quanto o homem que dançara com ela no dia anterior, e por mais que dissesse a si mesma que fugir dele fora escolha dela, Anne não conseguia parar de chorar. Cada camada de tinta que acrescentava à pintura, era uma lágrima que rolava por seu rosto ainda assim ela se recusava a desistir, porque então teria que encarar o teor dos seus pensamentos nada satisfatórios no momento. Por que amar alguém tinha que ser tão dolorido? Por que nos livros que lia, não se falava nada sobre aquela sensação agonizante dentro do peito capaz de levar alguém ao mais profundo desespero? Por que ela tivera que se apaixonar por alguém fora do seu alcance justamente agora quando estava começando a abrir as portas de sua mente para um passado que talvez fosse aterrorizante, mas era parte do que ela fora e vivera?
Anne parou de pintar por um instante, e olhou para a sua obra que apenas faltava alguns detalhes para que ficasse pronta. Nela Gilbert parecia tão dono de si, tão incrivelmente poderoso como ela sempre o enxergara apesar de já ter notado uma camada fina de tristeza naqueles olhos que a intrigavam. Até a noite anterior, ela nunca o tinha visto sorrir. Era como se ele fosse gelado por dentro feito um enorme iceberg, não deixando que o que havia do lado de fora feio ou bonito o impressionasse, vivendo em uma bolha de uma solidão fúnebre. Porém, no dia anterior ela descobrira, que ele podia ser intenso como as chamas em uma lareira alimentadas diariamente, e foi ali que ele lhe mostrara o quão impressionante ele ainda poderia ser se ela o deixasse entrar em sua vida, sendo bem mais que um amigo.
A questão era como ela o queria? Porque, Gilbert deixara bem claro como se sentia em relação a ela nesse ponto, mas, desejo físico era o bastante? Ela estaria disposta a conhecer com ele um mundo do qual mal se lembrava? Ela estaria disposta a entregar-lhe sua alma, sabendo que fatalmente a perderia no momento em que se deixasse envolver naquele jogo? Ela não tinha ilusões de que escaparia ilesa de um caso com ele, pois era somente isso que poderiam ter, e era isso que ela o impedira de propor a ela, por medo de não conseguir dizer não. quando as palavras saíssem da boca dele, porque ela descobrira que o amava, e que não era apenas uma atração passageira que acabaria assim que tudo aquilo deixasse de ser novidade.
Ela se sentia viva nos braços dele, não podia negar. Depois de tanto tempo vivendo como uma moribunda esperando por sua morte eminente, ela voltara a sentir, e não pensara que algo além de suas pinturas pudesse fazer isso com ela. Não sabia se conseguiria algum dia usar a arte para falar de seus sentimentos por Gilbert, porque ela nunca retratara algo assim antes. Sua forma de expressão sempre falara da raiva, da tristeza, de um mundo sombrio escondido dentro dela, mas nunca pintara nada relacionado ao amor entre um homem e uma mulher, e não sabia se seria capaz ou se teria talento para deixar que o mundo soubesse que a pintora melancólica também era capaz de deixar-se levar pela fogueira da paixão,.
Anne se sentia dentro de um labirinto construído dentro de sua cabeça que a confundia o tempo todo e que possuía dois extremos, o tudo ou o nada, o preto ou o branco, e o final dele era uma incógnita , pois mesmo que passasse da porta fechada e ganhasse sua liberdade, ainda não teria que lutar para não perder a razão? Estaria presa aquele sentimento, pois o amor não era algo descartável, pelo menos para ela, e por isso que não se permitia pensar em aceitar menos do que tudo. Sim, ela era extremista, sim, ela não sabia dividir, sim, a vida vista pela sua ótica a fazia ser egoísta por desejar tudo de Gilbert Blythe, cada pedacinho dele, cada minúscula partícula, cada suspiro, e se não podia tê-lo dessa maneira, era melhor que se tratassem pelo que eram, pois querendo ou não ela ainda precisava dele para voltar a ser a Anne de antes, talvez em uma melhor versão, mais ainda assim queria ser ela mesma.
No entanto, ela se permitira sonhar na noite anterior, naqueles momentos em que dançaram juntos, e depois, quando ele quase a beijara de novo, ela deixara sua razão de lado por breves segundos, e acreditara que ele sentia o mesmo que ela, e que eram um casal normal, e que um relacionamento entre eles mais profundo seria possível. Ela se deixara levar pela ilusão de que era uma garota como outra qualquer em um fim de baile, onde o rapaz pelo qual era apaixonada a trouxera para casa, e então se declarara à luz do luar, e viveriam aqueles felizes para sempre que sempre terminava uma história de amor. Fora uma tola, ela fungou alto quando pensou isso, ela podia ser tudo menos uma garota qualquer. Se pudesse se classificar, Anne diria que ela mais se aproximava a uma louca psicótica, do que uma garota de vinte dois anos, com certo sucesso como bagagem em sua carreira, e pronta a viver um romance tórrido com um dos homens mais sexys que já conhecera.
A quem queria enganar? Gilbert deveria achar que ela era tão ingênua a ponto de acreditar nas palavras que ele lhe dissera. Ele quisera seduzi-la , tentando enfeitar de forma romântica os sentimentos dele por ela, mas, naqueles olhos castanhos o que vira fora pura luxúria, que seria facilmente resolvida após algumas horas na cama satisfazendo todos os desejos da carne, e depois um adeus apressado encerraria aquele idílio entre os dois que nunca deveria ter tido início para começo de conversa.
"Idiota, mil vezes idiota", ela disse zangada consigo mesma por ainda estar pranteando aquele amor inconsequente que nascera em seu coração sem que pudesse evitá-lo. Por que fora tão idiota por se deixar envolver por aquele olhar que sabia bem o que lhe dizer no silêncio e encantar seu coração? Ela precisava pensar em si mesma, e parar de sofrer por algo que não tinha futuro. O que devia ser prioridade era seu equilíbrio emocional e nada mais, porém, o quadro que pintava desde que o dia nascera lhe mostrava bem quem era o primeiro item da lista de seus pensamentos.
Ela deu os últimos retoques, e enxugou duas lágrimas teimosas que insistiam em umedecer seu rosto. Anne colocou seu pincel de lado e observou cada detalhe, tentando encontrar alguma imperfeição. Uma coisa não havia mudado mesmo com seu esquecimento sobre partes de sua vida, seu perfeccionismo desacerbado. Ela nunca terminava uma obra sem antes procurar em cada linha, em cada contorno, em cada traço algo que pudesse diminuir seu brilho diante dos olhos de sua criadora, e felizmente para seu alivio, não havia nada fora do lugar, o desenho de Gilbert sobre o seu cavalo era tão perfeito quanto o homem que lhe servira de modelo, e pela primeira, Anne desejou que não fosse tão habilidosa com pintura de pessoas, porque qualquer um que entrasse em seu quarto saberia quem estava retratado naquela tela, e descobriria o que ela tentava tanto ocultar. O melhor seria mantê-lo escondido em seu guarda roupa, pois aquela obra prima fora criada somente para seu deleite pessoal.
- Anne, está aí? - ela ouviu a voz de Daniel e sentiu um calafrio. Ela tinha que descobrir por que o timbre de voz que antes lhe era tão agradável, de repente deixara de ser. Por esse motivo, ela não respondeu. Não queria vê-lo, e nem ser confrontada sobre a última noite. Acabaria em lágrimas. lamentações e não queria ter que confessar o que estava sentindo, principalmente para Daniel, pois o rapaz estava desenvolvendo sentimentos por ela que não eram apenas de amizade, e Anne não queria deixá-lo magoado.
Ela esperou pacientemente que ele fosse embora, e respirou aliviada quando ouviu os passos dele se afastando. No entanto, seu alivio durou apenas um segundo, pois a porta de seu quarto foi aberta, e Irina entrou com as chaves na mão e olhando para Anne muito séria, ela disse:
- Anne, por que sua porta estava trancada? Você sabe que os pacientes são proibidos de se trancarem em seus quartos.
- Eu sei, Irina. Desculpe-me. Eu só queria um pouco de privacidade. - Anne respondeu ajeitando a tela sobre o cavalete.
- Eu entendo, querida. Mas, você não devia se trancar assim. Fiquei preocupada quando Daniel veio me dizer que ele tinha vindo até aqui, e te chamou várias vezes, mas, você não respondeu. O que aconteceu, Anne? – Irina perguntou, mas a ruivinha apenas balançou a cabeça, olhando diretamente para tela que terminara de pintar.
- Devia dizer a ele, Anne. - A boa enfermeira aconselhou, e a garota a olhou espantada por sua afirmação.
- Dizer o que a quem, Irina?
- Devia dizer ao Dr. Blythe que o ama.
- Quem disse a você que eu o amo? - ela estava lívida e tentava disfarçar seu nervosismo.
- Sua tela. Somente uma mulher apaixonada retrataria o homem a quem dedica seu afeto com tanta verdade.
- Não sei do que está falando. - Seu rosto pegava fogo e ela começava a se sentir incomodada com o olhar inquiridor da enfermeira sobre ela.
- Anne, não precisa mentir pra mim. Eu sei que o ama e não a estou julgando. Apenas me pergunto por que está fugindo de algo tão bonito. - A ruivinha mexeu nervosamente nos cabelos. Ela tinha consciência que era péssima para esconder seus sentimentos, porém, também não queria confessar a Irina que ela estava certa, mas, então, Anne percebeu toda a inutilidade de continuar fingindo e disse suspirando profundamente:
- O que eu faço, Irina?
- Por que não conversa com ele? – Irina disse sentando-se na cama e observando preocupada o semblante de Anne perturbado.
- E o que vou dizer?
- A verdade, Anne. - A garota a fitou como se estivesse louca e respondeu.
- Você sabe que eu não posso fazer isso. Se eu disser qualquer coisa nesse sentido para ele teremos que nos afastar, e eu não posso perdê-lo- Anne disse em um tom desesperado.
- Não tem que ser necessariamente assim, Você sabe disso.- Irina queria que Anne entendesse que conversar sobre seus sentimentos com Gilbert era a melhor opção, pois sabendo dos sentimentos do rapaz por ela, Irina acreditava que juntos encontrariam uma solução, desde que fossem sinceros sobre o que sentiam.
-Eu simplesmente não sei o que fazer.- A garota ruiva disse mirando a tela novamente.
- Essa sua agitação tem a ver com o baile de ontem? – Anne balançou a cabeça sem coragem de dizer nada. - Não quer me contar o que aconteceu?
- Gilbert me trouxe até o dormitório, e a gente quase se beijou de novo. Ele acabou me dizendo algumas coisas que me deixaram bastante confusa.
- Que tipo de coisa? - Irina incentivou Anne a dizer. Tanto Anne quanto Gilbert precisavam um do outro. Era assim que ela via toda aquela situação, e talvez precisassem de um empurrãozinho para tomar a atitude que necessitavam.
- Ele disse que me quer, Irina, como mulher. - Anne respondeu apertando as mãos cheia de nervosismo.
- E o que você respondeu? - Irina perguntou ansiosa pelo que Anne lhe diria. Ela estava surpresa por Gilbert colocar em primeiro lugar a si mesmo, e depois sua profissão em sua lista de prioridades.
- Eu não o deixei terminar, pois tenho certeza de que ele me proporia que tivéssemos um caso ou coisa parecida, e eu jamais concordaria em me rebaixar dessa maneira.- Anne disse, sentindo que iria chorar, mas, ela se forçou a se manter firme. Não queria continuar lamentando seus sentimentos.
- Você não sabe disso. Deveria tê-lo deixado falar tudo o que estava sentindo. Assumir o que ele lhe diria não foi nada sensato, querida. - A teimosia de Anne em deixar o óbvio de lado e acreditar em algo totalmente distorcido por seu medo de aceitar seus sentimentos acabaria por deixá-la ainda pior. Quanto tempo ela suportaria uma situação como aquela? Irina temia por sua sanidade mental, e temia que ela deixasse passar a oportunidade de ser feliz.
- Eu tive medo de minhas próprias reações, e do quanto as palavras de Gilbert poderiam me fazer ceder facilmente. Ele me faz desejar coisas que não posso ter.- ela respondeu aflita, e para confortá-la Irina segurou em suas mãos e forçou-a a encará-la.
- Anne, você pode ter o que quiser, meu amor. Desde que seja honesta consigo mesma sobre o que está sentindo. E se o que está sentindo é mais forte que uma atração física pelo Dr. Blythe, você deveria compartilhá-lo com alguém, pois no seu atual estado, qualquer desajuste em suas emoções lhe faria mais mal do que bem.- a ruivinha a olhou por alguns segundos, avaliando o que ela dissera, e então tomando uma decisão, ela falou:
- Eu o amo, Irina, e estou com medo do que estou sentindo, é maior do que qualquer outra coisa que eu conheça em nível de sentimentos, e eu simplesmente não sei o que fazer. Não posso confessá-lo a Gilbert, pois complicaria tudo em nossa relação médico e paciente, porém, guarda-lo dentro de mim está me tornando vulnerável. Eu tenho que arrancar isso de dentro de mim. - Ela disse com lágrimas nos olhos.
- Querida, eu queria te dizer que tudo isso vai se resolver da forma mais simples possível, mas, quando se trata do que sentimos nem tudo acontece como desejamos. Tudo o que peço é que da próxima vez que o Dr. Blythe quiser falar do que sente a seu respeito, dê-se a chance de escutá-lo. Quem sabe assim, você não possa decidir melhor toda essa situação.
- Vou tentar. - Anne respondeu ainda tristonha.
- Não quer sair um pouco daqui? Ficar trancada desse jeito não vai te fazer nenhum bem.
- Eu prefiro ficar aqui por enquanto, talvez mais tarde eu me anime e vá até o salão de jogos. - Anne disse sem realmente estar com humor para isso. Ela estava evitando de encontrar Gilbert. Não queria ter que encará-lo depois do que acontecera na noite anterior.
- Está bem. Vou pedir que sirvam o seu almoço aqui, mas, por favor, tente aproveitar esse dia, pois é o último que passamos no resort. Amanhã de manhã estaremos indo para casa. - Irina disse tocando o rosto de Anne com toda a afeição que sentia por aquela garota.
- Obrigada. – Ela disse beijando o rosto de Irina.
Quando a enfermeira fechou a porta, Anne encarou a pintura que terminara de fazer, e pensou em como sairia da confusão em que se metera. Estava enrascada até o último fio de cabelo de sua cabeça, e como resolver aquilo, somente o tempo lhe diria.
GILBERT
Era manhã de segunda-feira, e Gilbert se encaminhou para o ônibus que os levaria de volta para casa com sua prancheta onde continha todos os nomes dos pacientes que participaram daquele passeio, enquanto pensava em todos aquele tempo em que passaram ali.
Foram dias interessantes, ele poderia avalia-los daquela maneira. Ele não pensara que descobriria tanta coisa acerca de seus sentimentos e de si mesmo, e também se divertira, não podia dizer que não. Ele passara bons momentos ao lado de seus velhos amigos, e percebera o quanto sentia falta disso. Depois que se casara e fora morar na Inglaterra, ele nunca mais pudera aproveitar a companhia deles. Sua vida se tornara uma sucessão de dias de estudo e obrigações que ele se esquecera de como era ser jovem, rir de verdade, tomar uma cerveja sem se preocupar com o que faria no dia seguinte. Seus amigos lhe eram preciosos, e até mesmo Billy Andrews quando deixava de ser um babaca completo, implicando com seu namoro, era uma grande e divertida companhia, e ele esperava que voltassem a ter momentos assim no futuro.
A única coisa que o deixara aborrecido fora não ter podido ver Anne no domingo que sucedera ao baile. Ele queria ter tido uma oportunidade de falar com ela, antes de voltarem para casa, e saber como ela estava se sentindo depois que ele quase se declarara, pois ela o impedira, e correra para dentro de seu quarto e se trancara lá seguida. Talvez ele tivesse sido afoito demais ao deixá-la saber como o afetava, porém, ele apenas agira com seu coração, deixando o seu lado profissional de lado e encarnando o homem que era por trás de seu jaleco de trabalho. Quem poderia condená-lo por isso? Ele também era humano, ele também tinha necessidades físicas, e precisava de todas as coisas essenciais e básicas que uma pessoa necessitava. Ele tinha direito a ter carinho, respeito, atenção e amor como todo mundo, e agir como um rapaz jovem apaixonado como fizera na noite anterior, pois, esse seu lado tinha sido abafado dentro dele por muito tempo, e Gilbert tinha se esquecido de como era se sentir assim.
Contudo, o dilema entre ele e Anne continuava, não de sua parte, pois ele sabia bem o que queria agora, e não ia desistir. O problema era compreender o que Anne desejava, pois em um momento ela flertava com ele, e o deixava perceber que também o queria e no outro o repelia, colocando milhas e milhas de distância entre os dois. Ela ainda estava vulnerável e Gilbert entendia sua fragilidade, pois seu trabalho como psiquiatra era fazê-la se libertar dessas correntes invisíveis que limitavam seu avanço diário, pois enquanto as tivesse em sua alma, Anne não conseguiria dar todos os passos necessários que a levariam até a porta de sua tão sonhada liberdade. Por isso, ele tinha que ser ainda mais cuidadoso com ela, e ainda mais paciente, porque suas estratégias de cura deveriam ser seguidas à risca ou não surtiriam nenhum efeito naquele caso. No entanto, seu coração apaixonado a queria para si como fosse, e ele precisava se lembrar que estava lidando com alguém emocionalmente instável, que muitas vezes não saberia como agir se fosse confrontado com suas emoções mais profundas e acabaria entrando em crise.
Gilbert não fora cuidadoso na noite do baile, ele tinha consciência disso, mas ainda assim, ele não se arrependia, porque ter Anne seus braços fora o ponto alto do seu dia, e se pudesse voltar atrás, ele faria tudo de novo, porque seus sentimentos por ela tomaram completamente conta de cada átomo de seu corpo, e não queria mais viver sua vida sem tê-la por perto. Como prometera, ele continuaria cuidando dela como seu médico, e por mais que lhe custasse, seria o amigo que ela esperava que ele fosse, mas, tentaria aos poucos fazê-la ver que eles mereciam ficar juntos como homem e mulher por vários motivos, provaria a ela que seu amor era verdadeiro. Justamente por isso, ele não podia ser egoísta ou apressado, e teria de esperar o tempo de Anne, mesmo que esse tempo durasse uma eternidade. Ele tratara de muitos casos parecidos com o dela, e sabia que a mente humana era um mistério, e as reações de cada um diante de um obstáculo ou problema diferiam demais. Um trauma poderia desparecer da mente de alguém em alguns meses, e em outras poderia perdurar por anos, isso dependia da capacidade de cada um em superar suas limitações, e seguir em frente deixando para trás sua infelicidade. Gilbert esperava que Anne fosse forte o suficiente para recuperar tudo o que perdera rapidamente, não por conta de sua pressa de tê-la como mulher, mas, porque, ela merecia ter sua vida de volta depois de ter cruzado os portões do inferno, e alcançar por fim, as cores vibrantes do arco-íris.
Por isso, ele procurara por ela o domingo todo, e quando ela sequer aparecera para o almoço, Gilbert começou a se preocupar, e foi em busca de notícias dela através de Irina, que era a única que poderia lhe dar informações concretas a respeito de Anne.
- Irina, desculpe-me por interromper seu almoço, mas, eu queria saber se a Anne está bem. Eu não a vejo desde ontem. - A boa mulher o olhou de forma significativa e respondeu:
- Ela está bem, mas, disse que quer ficar sozinha hoje. Tentei incentivá-la a sair do quarto, mas, não tive muito sucesso.
- Algum sinal de depressão ou pânico? - ele perguntou em seu jeito profissional que no fundo, seu interesse significava mais do que aquilo.
- Não, creio que é um daqueles dias em que ela gosta de ter uma boa conversa consigo mesma e colocar os pensamentos em ordem. Ela me contou sobre o baile. - Gilbert a olhou e não percebeu nenhuma censura naquele rosto tão sábio e vivido, e disse:
- Eu não planejei o que aconteceu. Foi mais forte do que eu e não consegui evitar.
- Eu acho que vocês dois deveriam conversar melhor sobre o que sentem. Ficar nesse impasse não fará bem a nenhum dos dois. - Irina aconselhou.
- Eu tentei dizer que a amo, mas, Anne não me deixou falar. Acho que fui impulsivo, e a deixei desconfortável. - Ele admitiu tristemente.
- Não acho que tenha sido impulsivo, eu penso que sua abordagem não deva ter sido a mais apropriada. Anne ainda não está preparada para encarar e assumir seus sentimentos, como o senhor deve saber mais do que eu. Talvez se tiver paciência e revelar os seus sentimentos aos poucos, ela passe a se acostumar com a ideia, e comece a vê-lo com outros olhos.
- Tem razão, Irina, e obrigado pelos conselhos.
- Cá entre nós, eu torço pelos dois. - Ela disse em tom conspiratório que fez Gilbert sorrir.
- Obrigado por isso também. - E então, ele voltou para sua mesa e terminou seu almoço, e depois passou o resto do dia ao lado de Josie que ainda não tinha se recuperado bem da crise de labirintite.
Aquele era outro problema que teria que resolver assim que chegasse em casa. Encerrar definitivamente seu namoro com Josie Pye. Não queria enganá-la mais, fingindo um sentimento que nem sequer tinha germinado em seu coração. Ela merecia alguém que apreciasse de verdade quem ela era e a fizesse feliz, pois esse alguém não era ele.
Gilbert chegou na porta do ônibus e esperou que todos os pacientes enfileirados entrassem no veículo de um em um. Ele sentiu seu coração bater mais rápido ao avistar Anne quase no final da fila, mas, ela evitou-lhe o olhar e Gilbert tentou não se chatear com esse fato, e até teria conseguido se não tivesse visto a mão de Daniel na cintura dela. Aquele rapaz estava passando dos limites, e Gilbert não estava gostando da maneira possessiva com a qual ele vinha tratando Anne. Eram atitudes sutis e passariam despercebidas a pessoas comuns, mas, não a ele acostumado a tratar pessoas com essa característica que com o tempo se não fossem tratadas adequadamente tendiam a piorar, e em alguns casos poderiam se tornar perigosas. Daniel não era seu paciente, por isso, não poderia interferir no diagnóstico e tratamento prescrito pelo médico dele, mas, ficaria de olho e o informaria caso as coisas saíssem de controle.
Quando ambos se aproximaram, Gilbert cumprimentou Daniel, e depois se virou para Anne e disse com a voz suave:
- Bom dia, Anne, está tudo bem com você? - ela o olhou com seus olhos azuis sérios e respondeu:
- Estou muito bem, obrigada, Dr. Blythe. - A voz soou sem expressão quase como se ela tivesse medo de deixá-lo ver o que se passava em seu íntimo. Ela desviou o olhar rapidamente assim que percebeu que Gilbert a fitava intensamente, e entrou no ônibus junto com Daniel, se sentando na última poltrona perto da janela, e Gilbert sabia exatamente porque ela preferira sentar naquele lugar. De onde estava sentado com Josie, ele quase não conseguia vê-la, fazendo-o compreender instantaneamente que mais uma vez ela se colocara em uma posição que o afastava dela totalmente, mas, ele não permitiria que essa situação continuasse por muito tempo.
Eles chegaram à clínica depois de duas horas de viagem. Josie dormira todo o trajeto por conta dos remédios que tomara, mas, quando o ônibus se aproximou dos portões da clínica, ela já estava desperta e bem disposta. Os internos começaram a deixar o ônibus, e como Josie estava bem a seu lado quando Anne passou com Daniel, Gilbert manteve seus olhos baixos, porque não queria despertar nenhuma suspeita em Josie sobre os seus sentimentos em relação a Anne, pois ele mal conseguia disfarçar sua inquietação quando estava próximo da garota ruiva.
Quando ficaram por fim sozinho, ele pegou sua bagagem e a dela, e as levou para o seu carro que deixara no estacionamento da clínica desde o dia em que viajaram, e depois levou Josie para casa. Ele pretendia falar com ela sobre o término do seu namoro à noite após o encerramento de seu expediente, mas, ele estava ansioso demais para acertar tudo aquilo de vez, e assim que entraram na casa dela, ele disse;
- Josie, eu preciso falar com você. - Ela se mostrou uma tanta surpresa pelo seu tom de voz, mas, não parecia ter desconfiado o que ela urgência toda significava,
- Claro. Vamos nos sentar na sala, e você me diz do que se trata. - Ela disse com um sorriso que fez o coração de Gilbert se afundar por conta do que estava para fazer.
- Josie, eu poderia dizer mil coisas para enfeitar o que tenho a lhe falar, mas, não quero ser um daqueles caras que elogia demais a namorada para depois destruir o sorriso dela com um a única palavra. Eu não sou de fazer rodeios, então vou direto ao ponto. Eu quero terminar o nosso namoro. - Ela arregalou os olhos, mostrando a Gilbert que esperava qualquer coisa daquela conversa, menos, aquela afirmação bombástica.
- Eu não entendo.
- Não há nada para entender, Josie. Eu fiz de tudo par me apaixonar por você, mas, não consegui. Sinto muito por te magoar, e não quero que pense que estou agindo assim por puro egoísmo, pois não é nada disso. Eu sempre fui honesto com você a respeito de como me sentia, e amor nunca foi mencionado por mim. Você é uma excelente pessoa, mas, eu não sou o cara certo para você, pois a mulher que você é merece mais do que eu tenho a lhe dar no momento.- ele estava sendo sincero e esperava que ela compreendesse que aquilo era o melhor para ambos e não o odiasse demais.
- É por causa dela, não é? - ela disse com a voz magoada.
- Por causa de quem
- Da pintora. - Ela disse entre dentes.
- Isso não tem nada a ver com ela. Apenas tem a ver conosco e com a maneira como me sinto. Não posso continuar com você se não me sinto cem por cento dentro dessa relação.
- Você deve achar que sou idiota. Eu já vi a maneira como ela te olha, e você também não é de todo indiferente quando ela está por perto.
- Josie, eu quero que entenda que não te amo, e não te amar não depende de outra pessoa e sim da maneira como nosso relacionamento se desenvolveu. Você é ótima, o problema sou eu. Tenho vivido demais pela metade, e não sei quando vou conseguir viver por inteiro novamente.
- Eu posso te ajudar, me deixa te ajudar. Ainda podemos ser felizes juntos. - Ela estava desesperada, pois estava perdendo o único homem que desejara para marido. Gilbert a estava abandonando, e não podia deixar aquilo acontecer.
- Não dá, Josie. Eu sinto muito. Você vai encontrar outra pessoa, e vai ver que o que havia entre nós não tinha chance de dar certo. É melhor assim, Josie, para nós dois.
- Como pode ser melhor se eu te amo? Por favor, Gilbert, me dê mais uma chance de te mostrar que posso ser a mulher que você deseja.- Gilbert a olhou por um segundo e quase disse que já tinha encontrado a mulher que ele desejava, mas, ela preferia ficar longe dele do que desfrutar do seu amor, porém, ele percebeu que estaria humilhando Josie, e sua intenção ali não era magoar ninguém, por isso, a única coisa que disse foi:
- Não posso mais fazer isso, Josie, desculpe-me. Isso já foi longe demais, e não quero enchê-la de ilusões quando eu sei que o que deseja não vai acontecer.
- É sua última palavra? - ela perguntou com alguma esperança.
- Sim, Josie. Agora preciso ir, pois meu turno na clínica começa depois do almoço. A gente se vê lá.
- Está bem- ela disse ao se despedir, mas, Gilbert não viu o brilho frio quase metálico daqueles olhos, pois ele sem querer, tinha plantado ali a semente do ódio.
Gilbert voltou para o seu apartamento, tomou um banho, fez uma refeição rápida e voltou para a clínica onde estava cheio de consultas naquele dia, porém, Anne não era uma delas, o que o fez suspirar por pensar que teria que esperar três dias para finalmente poder vê-la. Sua vontade era procurá-la antes disso, mas, não podia. Ela tinha direito a ter o próprio espaço, e ele não podia pressioná-la assim. Anne tinha que decidir o que queria por si mesma.
Uma batida discreta na porta do seu consultório fez Gilbert levantar o olhar, e encarar seu pai espantado. Ele raramente aparecia por ali, e naquele dia ele vestia terno e gravata e trazia um buquê de rosas na mão. O jovem psiquiatra estranhou aquilo tudo, porque sue pai se vestia formalmente quando tinha uma reunião importante, mas, ele estava afastado do trabalho por um mês por ordens médicas devido à sua pressão alta, então, ele não entendia porque ele parecia tão solene naquela tarde.
- Boa tarde, papai, vai a algum lugar importante?
- Não, por que? - John perguntou com um leve arquear de sobrancelhas.
- É que nunca o vi vestido assim para algo que não fosse o trabalho. - Gilbert respondeu, fazendo John olhar para a própria roupa e perguntar:
- Acha que estou muito exagerado?
- Depende para o que se vestiu assim.- ele viu o pai franzir a testa antes de dizer:
- Eu vim convidar Irina para um café, mas, acho que perdi a prática para isso. - John disse um tanto envergonhado.
- Então, essas flores são para ela? - Gilbert perguntou lançando um olhar divertido para seu pai.
-Sim, mas, agora estou me sentindo meio ridículo. Acho que vou para casa. - John disse desolado.
- E vai embora sem fazer o convite a ela? - Gilbert não queria que ele fosse, Era a primeira vez que via o pai se interessar por algo que não fosse o trabalho, e Irina era a companhia perfeita para ele. Em um ano trabalhando com ela, Gilbert começara a admirá-la por sua dedicação aos pacientes, especialmente pela maneira como cuidava de Anne, como uma verdadeira mãe. Não era como se fossem namorar, pois realmente não conseguia imaginar seu pai em uma relação amorosa depois de anos vivendo sozinho, mas se ficassem amigos, ele sabia dos benefícios que aquilo faria a ele. Ele precisava de alguém para conversar, sair de vez em quando para jantar e passear, e Irina era uma mulher maravilhosa, e tinha a sua aprovação total.
- Não sei, acha que ela vai aceitar?
- Não vai saber se não perguntar. Espere um instante. - Ele pegou o telefone, ligou para a recepção e disse:- Olá, Joanne, poderia pedir para Irina vir ao meu consultório? Obrigado.
Em menos de dez minutos, eles ouviram outra batida na porta, e Irina entrou dizendo:
- Mandou me chamar, Dr. Blythe? - Ela ficou calada de repente ao ver John Blythe no meio da sala, vestindo terno e gravata, e com um buque de flores nas mãos, e falou sem jeito:- Oh, Olá, John.
- Olá, Irina. - John respondeu com um sorriso.
- Irina, meu pai quer falar com você. Eu vou sair e deixá-los à vontade. - Gilbert disse indo até a sala dos médicos.
- Bem, Irina. Eu vim até aqui para convidá-la para aquele café que prometi.
- Ah, é mesmo? - a boa enfermeira disse surpresa.
- Sim. Essas flores são para você. - Ele estendeu-lhe o buque.
- São lindas. Obrigada.
- Desculpe-me pelos meus trajes. Não pensei que estava exagerando até Gilbert me chamar a atenção para isso. - Ele riu envergonhado.
- Eu adorei. Gilbert não sabe de nada. O terno te dá um ar elegante e muito distinto. Meu falecido marido também adorava se vestir assim.- Irina disse lançando um olhar de aprovação para John.
- Então, aceita meu convite para um café?
- Claro que sim. Vou adorar sair para tomar um café com você.
- Que dia seria o mais apropriado para você?- ele perguntou, feliz por ela não o ter rejeitado.
- Sexta-feira é meu dia de folga. O que acha?
- Perfeito. Vou deixar o número do meu celular assim você pode me passar o seu endereço. Faço questão de pegá-la em sua casa.
- Um cavalheiro. Não se fazem mais homens assim.- Irina disse olhando com simpatia para John.
- Obrigado. Creio que estamos combinados então.
- Sim. Agora devo voltar ao meu posto. - Irina se encaminhou para a porta e antes de sair ela disse:
- Até logo John, e por favor, vá de terno. – Ela sorriu e então se foi.
Gilbert entrou no consultório e encontrou o pai na janela olhando para a paisagem do lado de fora, e curioso, e lhe perguntou:
- E então?
- Ela aceitou. E sabe o que mais? Ela adorou meu terno. - Ele disse aquilo com tanto prazer que Gilbert sorriu. Era tão bom ver seu pai feliz com alguma coisa depois de anos enclausurado naquela casa.
- Que bom, papai. Isso quer dizer que tem um encontro?
- Não é um encontro, filho. É apenas um café.
- Desculpa, pai. Eu esqueci que você é a moda antiga, mas, o importante é que ela aceitou, não é.
- Sim. Senti-me um pouco estranho. Faz tanto tempo que não faço isso.
- Tenho certeza de que se saiu muito bem. - Gilbert disse sorrindo com carinho para seu pai.
- Agora, vou para casa, e deixar você trabalhar. Se puder passa lá em casa para almoçar comigo essa semana. Faz tempo que não conversamos.
- Pode deixar, papai. - Gilbert disse, observando o seu pai sair do consultório. Eles sempre tiveram suas diferenças, mas, tanto o amor paternal quanto a filial sempre existiram entre eles.
E assim John se foi deixando Gilbert sozinho, e torcendo para que o pai pudesse encontrar finalmente um pouco de felicidade que tornasse sua vida menos amarga e solitária no tempo que ainda lhe restasse nesse mundo.
GILBERT E ANNE
Ao contrário do que Gilbert pensara, a semana não demorou a passar, e logo a quinta feira chegara, deixando-o ainda mais ansioso que antes. Iria ver Anne finalmente, mas, não sabia como conseguiria refrear seus sentimentos, e tratá-la apenas como uma paciente. Diante desse pensamento, ele teve que rir de si mesmo. Um médico experiente como ele deveria saber se comportar tão somente como um profissional diante de seus pacientes, e não deveria se preocupar om outros sentimentos que não fossem seu desejo de ajudá-los, no entanto, Anne o desestruturava tanto que ele tinha que se policiar a todo momento para não se comportar como um idiota apaixonado no qual fora reduzido. Se Jerry pudesse vê-lo naquele momento, ele diria que Gilbert estaria pagando pelas próprias palavras que dissera ao primo muitas vezes, quando ele dizia que estava interessado em alguma garota e sendo criticado justamente por isso. Quantas vezes Gilbert dissera a Jerry que ele era um tolo por se apaixonar por cada garota que lhe desse um mínimo de atenção, e agora ele estava sofrendo do mesmo mal, e nem sabia direito como lidar com isso.
Tal pensamento também o fez pensar em Josie. Ele pouco a vira nos últimos dias, mas, toda vez que tiveram a chance de se encontrar, se trataram cordialmente como deveria ser entre colegas de trabalho. Gilbert pensara que Josie sequer falaria com ele novamente, mas, ela não se colocara no papel de vítima como ele imaginara que ela faria, e somente por isso, ele estava grato. Não queria tê-la magoado, mas a teria machucado muito mais se tivesse mantido aquele relacionamento apenas por pena ou dor na consciência, ele se sentia imensamente melhor por não carregar mais esse peso dentro de si.
Gilbert se sentou em sua mesa do consultório e esperou pelo horário da consulta de Anne. Ainda faltavam quinze minutos, por isso, ele tentou se distrair com outras coisas. Ele abriu a gaveta de sua escrivaninha, procurando por papel e caneta, e se deparou com o retrato de Ruby. Fazia tempo que ele não olhava para ele, e o pegou em suas mãos observando cada detalhe daquele rosto que um dia ele amara tanto. Aquela era a foto que mais gostava dela, pois o fotógrafo tinha pego a luz do sol no fim de tarde que iluminava os cabelos muito loiros de sua esposa, formando um halo de luz em volta de sua cabeça como se ela fosse algo etéreo e muito iluminado. Olhando para aquele retrato, Gilbert de repente se deu conta que não doía mais como antes, embora, ele soubesse que nunca a esqueceria completamente, a angústia que sentira quando ela se fora não estava mais lá, e uma sensação de alívio começou a se formar em seu coração.
O som de passos adentrando o seu consultório fez Gilbert colocar o retrato em cima de mesa e olhar para a mulher que surgiu a sua frente. Ela usava um vestido de algodão verde claro que combinava com seus cabelos adoráveis e sua pele delicada. Como sempre a beleza dela lhe tirou o fôlego, e ele quase se esqueceu do que estavam fazendo ali. Foi somente quando ela se sentou à sua frente e olhou para o seu rosto um tanto sem jeito, que ele se forçou a focar no objetivo daquela consulta.
- Boa tarde, Dr. Blythe.- o tom formal na voz dela fez doer os seus ouvidos, e Gilbert tentou não se importar, mas, aquele mero detalhe parecia colocar um mundo inteiro de distância entre eles, porém, naquele momento não havia nada que ele pudesse fazer, afinal, ela o chamara do que ele realmente era, um doutor, e no entanto, ele não queria significar apenas isso para Anne, ele queria e precisava ser mais.
- Boa tarde, Anne. Hoje eu gostaria que tentasse se focar na sua infância. Já conseguiu ter alguma lembrança do período antes do orfanato? – ele notou as mãos delas fortemente comprimidas em seu colo, e ele sabia que ela ficava assim quando estava nervosa.
- Toda vez penso sobre isso, eu me lembro de uma casa grande, um imenso jardim, e uma garota um pouco mais velha do que sou agora. - Ela disse com sua voz parecendo estar tão longe quanto suas lembranças.
- Saberia dizer se ela tem algum parentesco com você? – ele perguntou fazendo sus costumeiras anotações.
- Não acho que ela seja alguém da minha família, creio que possa ter sido um tipo de babá ou uma amiga de meus pais. - Anne disse sem ter muita certeza, pois suas lembranças dessa época eram ainda um tanto obscuras.
- Você consegue se lembrar alguma coisa sobre os seus pais? - Gilbert perguntou, observando-a mergulhar novamente na complexidade de seus pensamentos antes de responder.
- Não, eu.... - Então ela parou de falar, pois a imagem de uma mulher ruiva surgiu em sua mente. Ela tinha uma pilha de cadernos à sua frente, e os corrigia, fazendo anotações aqui e ali. De vez em quando, ela olhava para Anne e lhe sorria, depois voltava sua atenção para seus cadernos e continuava assim por horas.
- O que foi, Anne? - Gilbert perguntou enquanto a via fixar seu olhar no nada à sua frente. Ao ouvi-lo chamar seu nome, Anne pareceu voltar ao presente e disse com a voz perturbada:
- Acho que me lembrei de minha mãe. Ela era ruiva como eu, e acredito que tenha sido professora, pois me lembrei dela corrigindo uma pilha de exercícios. - Ela sorriu para Gilbert e perguntou:- Acha que estou melhorando?
- Com certeza. Essa lembrança pode ter sido pequena, porém, ela é extremamente importante para o seu resgate do passado- Gilbert explicou do seu jeito profissional, mas ao mesmo tempo tão inteligente que deixava Anne hipnotizada. Tudo naquele homem a fascinava, não havia um só detalhe nele que lhe passasse despercebido, pois desde que começara a pintá-lo ela passara a observá-lo com atenção, e amava absolutamente tudo nele sem exceção.
Seu olhar foi atraído pela fotografia em cima da mesa onde uma garota jovem e muito bonita sorria. Curiosa, Anne pegou a foto na moldura de prata, e perguntou:
- Quem é ela?- Gilbert desviou a atenção do relatório onde ainda escrevia para ver sobre o que Anne estava perguntando, e ficou um pouco aborrecido ao perceber que ela tinha o retrato de Ruby nas mãos, mas, depois se repreendeu por essa emoção, pois se queria que Anne confiasse nele, ela teria que saber absolutamente tudo sobre ele, e seu passado, e Ruby fazia parte dele, por isso, estava na hora de falar sobre ela.
- Minha esposa. - Anne o olhou espantada sem saber ao certo como compreender ou processar aquela informação.
- Sua esposa? Você é casado?
- Eu fui, mas, não sou mais. - Gilbert disse com naturalidade.
- Por que não? O que aconteceu com ela?
- Ela morreu de aneurisma faz quase três anos. - Gilbert se espantou por não falar aquilo com a voz embargada, ou com aquele sufocamento característico que sentia toda vez que falava da morte de Ruby para alguém. Parecera-lhe natural contar aquilo para Anne como se tivesse acontecido com outra pessoa.
- Eu sinto muito pela sua perda. - Anne disse, segurando na mão de Gilbert sobre a mesa, e quando olhou dentro daqueles olhos, ele viu tantas coisas que o emocionou. Ele enxergou a compaixão de Anne pelo que lhe contara, a dor dela misturada com a sua, o carinho com que ela segurava em sua mão para transmitir-lhe conforto, e aquele brilho interior que o fazia compreender porque se apaixonara por ela. Gilbert entrelaçou seus dedos nos dela e disse;
- Obrigado. Eu fiquei muto mal por um tempo, mas, eu estou melhor agora.
Anne queria dizer que compreendia, porque tinha aquela mesma dor semelhante dentro de si, mas, preferiu não dizer nada, porque não sabia com que intensidade a morte da mulher de Gilbert o tinha atingido, então, parecia hipocrisia sua afirmar que sabia como ele se sentia. Ela apenas podia imaginar que quando se amava alguém profundamente e se perdia esse mesmo alguém daquela maneira cruel, o sofrimento deveria ser insuportável. Não era à toa que muitas vezes surpreendera um olhar apagado dele, como se a escuridão, e não a luz habitasse dentro dele nesses momentos.
- Ela era linda. - Foi tudo o que conseguiu dizer antes de colocar o retrato no mesmo lugar onde o encontrara.
- Ela era sim, mas, você é ainda mais linda. - Gilbert disse fazendo-a corar com suas palavras. Anne o encarou e viu o mesmo fogo naquele olhar no dia do baile, e sem saber o que fazer, ela soltou da mão dele , se levantou e foi até a janela, deixando que seus olhos buscassem a calma na paisagem lá fora que não conseguia encontrar dentro de si mesma.
Gilbert a seguiu e ficou parado a poucos centímetros atrás dela, tão perto que ela conseguia sentir-lhe o calor. Ele se aproximou mais um pouco e disse em seu ouvido:
- Eu e a Josie não estamos mais namorando. - Ela se sentiu paralisar com aquela notícia, e seu coração acelerou tanto que ela teve que esperar alguns segundos para se virar, encarar Gilbert e perguntar:
- Por que?
- Eu fiz isso por você.- ele respondeu pregando o seu olhar no dela.- por um breve instante Anne se esqueceu de como era respirar, e tentou encontrar nos olhos de Gilbert a principal razão de ele ter terminado com Josie por suas causa, mas, então o velho medo apareceu, e ela decidiu que não queria saber, pois não sentia que saberia lidar com a resposta caso a encontrasse. Porém, aquilo não impediu que ela fizesse o que seu coração estava pedindo. Ela estendeu a mão, e ajeitou os cachinhos dos cabelos dele que lhe caiam sobre a testa completamente desalinhados, em seguida seus dedos passaram pelo nariz bem feito dele, desceram por suas bochechas, por seu queixo, se demorando no maxilar perfeito. De repente, Gilbert segurou sua mão e a levou aos lábios, fazendo Anne desejar que a boca dele estivesse sobre a sua, mas, então ela percebeu para onde aquele momento de intimidade os estava levando, e tentou se afastar, porém Gilbert, impediu dizendo:
- Por favor, não se afaste. Eu não vou te machucar, eu juro.
- Gilbert, você sabe que o que quer não pode acontecer. Você prometeu que seria meu amigo. - Ela tentou manter a voz firme e sua resolução sobre os dois também, e esperava que Gilbert aceitasse e não insistisse naquele assunto.
- Eu sou seu amigo, Anne, mas, por favor, me deixe cuidar de você, me permita ficar por perto, e juro não ultrapassar nenhum limite que você impuser entre nós. 'e só isso que desejo.
Anne o olhou tentando ver algum tipo de intenção dupla naqueles olhos, mas tudo o que encontrou foi a sinceridade dos sentimentos de Gilbert por ela naquele momento, e por isso, ela não pôde negar o que ele lhe pedia, porque era o que também ela desejava. Deste modo, ela balançou a cabeça concordando, e Gilbert sorriu-lhe aliviado, puxando-a para si. Ela o abraçou pela cintura, e ele rodeou a dela com seus braços, e ficaram assim por alguns minutos, sentindo seus corações baterem juntos como se estivessem sintonizados na mesma frequência.
- Preciso ir. - Ela disse quando percebeu que estava confortável demais naquela posição com ele. Não queria se acostumar a isso, não queria ficar dependente daquele abraço, pois desconfiava que se isso acontecesse, ela nunca mais sairia dele, e ela pressentia que poderia sair muito machucada se deixasse que seu coração sucumbisse a fraqueza de seu amor por ele.
- Tudo bem, - Gilbert disse, beijando-lhe o topo da cabeça com carinho. Na verdade, ele não queria que ela fosse. Se pudesse a prenderia naquele abraço para o resto da vida de ambos, mas, ele tinha traçado um plano, e feito uma promessa e não podia agir levianamente com nenhum dos dois
- A gente se vê depois. - Ela disse dando-lhe um beijo no rosto que pegou no cantinho da boca de Gilbert. Ele quase a puxou de volta e a beijou de verdade, mas, então, ela já estava na porta, e saiu sem olhar para trás.
Assim, que fechou a porta atrás de si, Anne se encostou nela relembrando cada segundo daquela consulta. Seu coração batia forte, sua respiração estava alterada, e o perfume de Gilbert continuava preso em suas narinas desde o momento em que ele a abraçara, suspirando, ela confessou baixinho para si mesma;
- Eu te amo, Gilbert Blythe.
Atrás daquela porta, o homem na janela também pensava nela. Seus pensamentos estavam cheios do seu rosto, do seu sorriso e de seus olhos. Ele não estava triste, mas, também não estava feliz, ele conseguira um grande avanço com Anne naquele dia, mas enquanto não pudesse declarar a ela o seu amor, ele continuaria sentindo falta da única mulher que queria e ainda não podia ter.
- Eu te amo, Anne Shirley Cuthbert. - Ele disse em voz alta sem se importar se alguém ouviria, e então, como um sinal, uma borboleta entrou pela janela de seu consultório, rodopiou ao redor dele fazendo-o sorrir.
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