Epílogo
Eu nunca tinha sido uma pessoa com um sono excepcionalmente pesado, então sempre acabava acordando de madrugada com o som do cachorro do vizinho do andar de cima ou com o barulho de carros passando na rua. Dessa vez, porém, eu não estava na cidade, e o colchão sendo afundado à minha esquerda definitivamente não tinha nenhuma interferência externa.
Já faziam seis anos que eu tinha saído da casa da minha mãe, pronto para seguir o meu sonho e explorar o mundo, mas alguns costumes nunca desapareciam, independentemente de quanto tempo se passasse. Por ter crescido em uma cidade pequena e pouco desenvolvida, eu ainda me surpreendia com a quantidade de prédios toda vez que ia até o centro. Me surpreendia com a cacofonia de vozes, músicas, buzinas... mesmo que tivesse passado a amar tudo isso.
O som, o caos, faziam parte parte de mim. O que era eu se não uma junção de sentimentos bagunçados e uma trilha sonora? Por esse exato motivo virei cantor, por essa razão me mudei para a cidade grande, com a esperança de encontrar algum estúdio, algum investidor... qualquer pessoa que pudesse tornar meu sonho realidade.
Por sorte, encontrei Grover.
Estava cantando em um bar em Nova Iorque quando ele me abordou, dizendo que tinha visto alguns covers meus pelas redes sociais e que viu que eu me apresentaria lá naquela noite, que desejava me conhecer melhor como cantor. Disse que eu tinha conseguido deixar a plateia muito animada e que isso não era tão fácil, não a ponto de fazê-los se levantarem das cadeiras e dançarem com a batida. Depois de um tempo, mais rápido do que eu poderia imaginar, já estava assinando contrato com a gravadora Jupiter.
Eu tinha conseguido emplacar meus três primeiros lançamentos como as músicas mais escutadas no mundo após o lançamento, lançando meu primeiro álbum alguns meses depois. Grover cuidou de tudo para que eu pudesse viajar para diferentes países, me apresentando em estádios enormes e vendo, pessoalmente, o tamanho do carinho dos meus fãs. Eu tinha fãs, ainda não conseguia acreditar nisso.
Agora, porém, eu não estava mais em Nova Iorque. Não estava na Grécia, na Alemanha, no Japão e nem mesmo no Brasil, mas sim na casa da dona Sally. Era aniversário dela, e nada mais justo do que passar o dia especial da minha mãe junto a ela.
Tyson estava dormindo em seu antigo quarto junto à sua noiva, enquanto Estelle, que ainda não tinha idade suficiente para sair de casa, dormia no próprio quarto. Eu estava no mesmo cômodo que tinha passado a maior parte da minha vida, mas as coisas agora estavam diferentes. Minha cama de solteiro tinha sido substituída por uma de casal e todas as minhas decorações tinham sido trocadas por capas de discos e instrumentos. Minha mãe tinha feito questão que eu tivesse um lar onde ela morava, independentemente de passar os meus dias em Nova Iorque.
A única coisa que não tinha sido substituída era a minha antiga estante de madeira, e meu coração havia se aquecido quando percebi o porquê. Memórias demais estavam ligadas àqueles livros, parte deles tinha ajudado a definir meu futuro, e ela não queria dar embora algo tão importante.
A cama nova era dura na medida certa, já que eu raramente tinha a oportunidade de usá-la, mas isso não explicava o leve e repentino afundamento do colchão ao lado do meu braço esquerdo. Não precisei pensar muito antes de abrir um sorriso sonolento, virando a cabeça para o lado e me deparando com a figura de Annie Bell, cabelos loiros esparramados pelos seus ombros.
- Desistiu de dormir com a vovó, princesa? - perguntei, estendendo os braços para a minha filha e a erguendo para se deitar ao meu lado.
- O vovô ronca. Eu quero dormir com você, papai - ela respondeu, se aninhando nos meus braços enquanto eu ria e passava a mão pelos seus cabelos.
Tinha conhecido a mãe da Annie durante uma das minhas viagens para a Holanda, mas nunca tivemos nada significativo. Foi um caso, um lance de uma noite só, mas ela tinha engravidado e entrado em contato com o Grover depois de alguns meses. Ela estava fazendo faculdade, prestes a fazer um intercâmbio para só os deuses sabem onde, então tínhamos decidido que a guarda ficaria comigo. Eu ainda mandava mensagem a cada dois meses para dizer que estava tudo bem, mas era basicamente isso. Eu nunca tive interesse amoroso em mais ninguém e duvidava que eu um dia teria.
Annie amava me ver cantar, então sempre viajava junto comigo e, de vez em quando, eu burlava sua hora de dormir e a levava em alguns shows. O público sempre gritava quando eu a levava para o palco e ela ficava toda dengosa, feliz e com vergonha ao mesmo tempo.
Minha filha era uma verdadeira figura: tinha quatro anos de idade, mas pensava como se tivesse pelo menos dez. Gostava de ler livros infantis e falava pelos cotovelos, sempre perguntando sobre todos os aspectos possíveis do mundo. Tinha cabelo cacheado e eu achava a coisa mais preciosa do mundo quando ela tirava os fios do rosto, tomando todo o cuidado para não desmanchar seus cachinhos.
Fiz menção de fechar a porta que a criança tinha deixado aberta, mas desisti quando percebi que ela já tinha pegado no sono, agarrada à mim. A posicionei do lado da parede, só para garantir que ela não rolaria para fora da cama durante a madrugada, e fechei meus olhos, deixando que meus pensamentos tomassem conta da minha mente.
Não tinha pensado duas vezes antes de nomear minha filha, não quando aquele apelido tinha continuado tão vivo depois de anos. Annie Bell Jackson. Não quando a criança que me foi entregue era loira de olhos azuis. Eu nunca saberia se Annabeth realmente conseguia me ver de lá de cima, mas suspeitava que ela tinha algo a ver com a menina que dormia ao meu lado e fazia carinho no lóbulo da minha orelha.
Era uma coisa só da Annie: ela gostava de mexer na orelha dos outros, como um carinho, e fazia isso de maneira inconsciente sempre que dormia comigo ou com os avós.
Eu tinha passado anos na terapia, trabalhando a culpa que eu sentia e aprendendo a lidar melhor com os meus sentimentos, e só tinha sido liberado há uns meses atrás. Eu decidi continuar com a terapia, já que eu gostava e achava que poderia ser útil ao longo da vida, mas fiquei feliz em saber que a parte mais dolorida dentro de mim já tinha sido curada.
Obviamente eu ainda pensava em Annabeth, ainda chorava vendo algumas fotos ou em datas comemorativas, mas não era mais como algo que ameaçava me engolir vivo. O que me preenchia era só uma saudade latejante, uma que provavelmente nunca iria embora.
Eu iria inclusive lançar um álbum em duas semanas, um em que eu finalmente tomei coragem e escrevi sobre nós dois. Misturei letras que eu havia montado antes da sua morte com as letras depressivas que escrevi antes de começar a terapia. Escrevi sobre o Olimpo, sobre a culpa destruidora e sobre o buraco que ela tinha deixado no meu peito e na minha vida. Definitivamente não seria um álbum feliz, mas era real e eu estava orgulhoso por finalmente dividir essa parte de mim com o mundo.
Por esse mesmo motivo, decidi levar Annie Bell para conhecer o Olimpo no dia seguinte.
A coloquei sentada nos meus ombros enquanto passávamos pelas árvores, a baixinha fazendo comentário atrás de comentário sobre os esquilos que corriam pela mata e sobre os tordos que assobiavam. Demos a volta pelo riacho - eu não deixaria minha filha chegar cem metros perto daquela ponte - e fiz com que ela fechasse os olhos enquanto ria, animada pela surpresa.
Annie sempre tinha pedido por uma casa na árvore, mas eu nunca tinha tido coragem de explicar porque nunca construí uma.
- Pode olhar - eu disse enquanto a colocava no chão. Olhei ao redor, já sabendo exatamente o que eu faria. O que eu precisava fazer para manter esse lugar vivo. - Eles devem ter ouvido os boatos, de que a linda garotinha que chega hoje será a futura soberana do Olimpo.
Ela pareceu encantada com a construção de madeira em sua frente, com as tintas que eu havia usado para colorir desde a escada até o telhado, mas não correu imediatamente para lá. Annie me olhou intrigada e virou a cabeça para o lado.
- Quem ouviu o quê?
- Os olimpianos, estavam te esperando.
- O que são olimpianos?
- Os olimpianos são as pessoas que moram aqui, no Olimpo, e elas estavam esperando por você.
- Eu não tô vendo ninguém, papai - ela lamentou, espremendo os olhos para as árvores como se pudesse fazer uma pessoa sair do tronco.
- É uma velha floresta, baixinha - expliquei. - Cheia de criaturas mágicas, gigantes bonzinhos e de tudo que puder imaginar... mas tem que fechar os olhos e deixar a mente bem aberta. Você precisa imaginar com o seu coraçãozinho, acha que consegue fazer isso?
Ela rapidamente balançou a cabeça e fechou os olhos com força. Aproveitei para montar rapidamente uma coroa feita com galhos limpos e retorcidos, colocando na sua cabeça e fazendo ela espiar com um olho.
- Pode ter fadas? E flores roxas?
- Pode tudo o que quiser - eu sorri. Annie Bell olhou para mim e em seguida correu para a escada como se estivesse na Disney ou em algum outro parque de diversões.
- E um castelo? Um bem grandão, com várias torres e bandeiras roxas...
- É claro, uma princesa merece um castelo bem bonito.
Ela sorriu, logo desaparecendo dentro da casa. Eu podia ouvir suas risadas enquanto subia, tirando alguns segundos para apreciar as pinturas que não se apagaram com o tempo. Annie apareceu do lado da mesa de centro, segurando uma antiga coroa que eu e Annabeth tínhamos montado para mim. Eu nunca tinha encontrado a dela, talvez ela estivesse usando quando caiu no riacho.
- Esse lugar tem um rei? Você é o rei, papai? - Annie Bell perguntou, afastando um cacho loiro do rosto.
Sorri com a visão, me apoiando no batente da porta de madeira. Pensei em como esse lugar tinha construído toda a minha coragem, minha criatividade e personalidade. Pensei em como seria, ser um rei sem Annabeth ao meu lado, mas também me concentrei na pequena figura da minha filha com uma coroa sobre a sua cabeça. Respirei fundo ao responder.
- Só se você for a minha princesa.
Percy's POV
Acordei com a luz do sol batendo contra o meu rosto, o que era extremamente estranho já que tinha certeza de ter fechado a janela antes de me deitar. A cama sob o meu corpo era mais confortável do que eu me lembrava, além de que a minha coluna não doía mais. A dor tinha desaparecido por completo.
Meu braços estavam cobertos, mas, surpreendentemente, eu não sentia calor. Meu corpo inteiro parecia leve, o que me deixou em extremo alerta. Um homem de 84 anos não deveria acordar se sentindo bem de um dia para o outro, não era natural.
Me levantei em um pulo, imediatamente estranhando minha agilidade. Olhei para as minhas mãos apoiadas no colchão, só para perceber que não estavam mais enrugadas pela idade, mas sim como se fossem as mãos que eu tinha quando era mais jovem.
Eu não tinha mais as mãos com calos que rodaram o mundo em show atrás de show. Não tinha mais as mãos que seguraram minha filha ou que assinaram o melhor contrato da minha vida, nem as mesmas que seguraram meus dois netos. Eu me sentia como se tivesse 17 anos novamente, com duas mãos como uma tela em branco, prontas para serem preenchidas por músicas e acontecimentos.
Suspeitava que meu corpo inteiro tivesse voltado a aparentar ter 17 anos.
Pela primeira vez olhei ao meu redor, tendo estado muito chocado com o meu próprio físico para olhar de onde vinha a bendita luz, só para levar um susto tão grande que quase me fez perder o ar.
Uma enorme construção de mármore se erguia em frente a mim. Fileiras de colunas erguiam diversos andares em pedras, enquanto mais construções seguiam em direção ao topo da montanha na qual eu me encontrava. Uma cadeia de montanhas se estendia no horizonte, com pássaros voando por meio das construções.
Tudo parecia extremamente grandioso, com detalhes em ouro que refletiam nos botões da minha camiseta... não, eu não usava camiseta. Meu peito estava coberto por uma toga branca, meus braços sendo abraçados por um manto vermelho de veludo. Os detalhes dourados das construções na verdade refletiam na coroa de louros posicionada nos meus cabelos. Como ela não tinha caído enquanto eu dormia, eu nunca iria saber.
Fechei os olhos com a realização do que aquilo poderia significar e deixei algumas lágrimas rolarem em emoção.
Eu tinha morrido.
Eu não veria mais minha filha, nem meus sobrinhos ou netos. Não veria mais meus amigos, não poderia mais aproveitar minhas músicas e nem ficar próximo das pessoas que realmente importavam para mim.
Ainda estava chorando, pensando nas coisas que estava deixando para trás, quando eu a vi.
Annabeth estava um pouco mais para frente, dentro de um dos templos. Seus cabelos loiros estavam decorados por uma coroa de louros, um manto vermelho cobrindo a sua toga. Ela parecia uma rainha de verdade, ainda com 17 anos, mas com uma sabedoria que transbordava o plano material.
- Você demorou, Cabeça de Algas - ela brincou com os olhos marejados, e não pensei na minha recém adquirida agilidade quando acabei com a distância entre nós e a aninhei em meus braços. Chorei com vontade, ainda sem acreditar que ela estava lá e eu estava tocando nela e ela estava segura, tão segura, como se nada tivesse acontecido. - Calma, tá tudo bem.
- A-Annabeth?
- Eu tô aqui, mas sinto muito que você também esteja. - ela levantou meu rosto até o seu. Nenhum corte, nenhum machucado. Annabeth estava bem.
- Eu morri?
- Dormindo - ela confirma, balançando a cabeça. - A Annie ainda não te encontrou, mas suspeito que daqui a algumas horas você já seja enterrado.
- Eu não entendo... como...?
- Você pensou que se livraria de mim depois da vida? - ela perguntou, tentando aliviar o clima. - Promessa é promessa. Você está preso a mim, Cabeça de Algas.
Deixei que toda a saudade, toda a culpa acumulada por tanto tempo se soltasse, e Annabeth estava instantaneamente lá para me abraçar. Nem pude tentar me desculpar antes de ela colar seus lábios na minha bochecha, imediatamente me calando. O toque dela, o puro toque dela, ameaçava me quebrar e reconstruir ao mesmo tempo.
- Eu vi tudo, Percy - ela confidenciou, sua testa colada na minha. - Eu ouvi suas músicas, vi o seu sofrimento, vi você adquirir fobia de nadar... não foi sua culpa, meu amor. - Esse apelido esquentou meu coração de tal maneira que pensei que poderia explodir a qualquer momento. - Foi um acidente.
- Eu sei, mas eu ainda sinto muito.
- Eu também - ela lamentou.
Nós dois entendíamos muito bem o que aquilo significava. Sentiamos muito pelo tempo perdido, pelo amor interrompido e pelo sonho quebrado.
- Então... não quer conhecer o verdadeiro Olimpo?
Teríamos tempo o suficiente para conversar depois. Tendo 17 anos novamente, eu teria tempo o suficiente para beijá-la, abraçá-la e para conversarmos sobre toda a dor e sofrimento que manchou nossas lacunas. Por enquanto, faríamos a mesma coisa que costumávamos fazer quando as coisas se tornavam difíceis: fecharíamos os olhos e manteríamos a mente e o coração bem abertos.
Dessa vez, porém, não parecia ser necessário. Tudo aquilo era real, desde a cachoeira até os templos, dos animais até a cadeia de montanhas. Poderia ficar de olhos fechados, e o Olimpo ainda seria real. Palpável.
- Esse é o Olimpo?
- Em montanha e mármore - ela respondeu, sorridente. - Aparentemente o seu futuro é o que você monta a partir dele, quem diria, não é mesmo?
- Então você é a rainha daqui? - Perguntei, apontando em direção às suas vestimentas.
- Depende... você ainda quer ser o meu rei? - ela indicou a minha coroa e perguntou, com a voz tão esperançosa que não pude evitar o sorriso que tomou os meus lábios.
- Vamos reinar juntos, Sabidinha. Você não vai escapar de mim. Nunca mais.
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