Dezesseis - Olhos amarelos
Correr naquele chão íngreme e úmido era um desafio para Brianna, que escorregava várias vezes por pouco não caindo. Marduk era veloz e não tinha problemas com locomoção, mas estava retardando sua corrida deliberadamente para ser acompanhado pela menina.
— Vamos, criança, vamos!
O archote carregado pelo pequeno demônio iluminou várias serpentes surgindo diante dos dois e rastejando em contramão a eles. Brianna parou, assustada. Uma enorme cobra de cabeça triangular deu o bote primeiro em Marduk, que se desviou ao mesmo tempo em que outras atacavam.
— Marduk!
O número de cobras era incrível, e todas ignoravam Brianna, partindo em direção ao demônio, que movia a tocha circularmente para tentar afastá-las.
Brianna viu as duas bruxas se aproximando. Clodagh sabia que sem a ajuda de Marduk Brianna era inofensiva.
— Elas não vão atacar você, menina. Passe por cima delas! Fuja!
Passar por cima delas? Parecia um lago móvel e aterrorizante. Todas encurralando Marduk.
— Corra, menina! — Marduk gritou impaciente.
Hesitante e por impulso, Brianna pisou no enorme ninho de cobras que dominavam o chão e impediam a passagem. As serpentes arreganhavam a boca ao serem pisadas, mas nenhuma atacava a menina. Brianna viu as presas enormes das cobras em que pisava destilando veneno. Fechou os olhos e acelerou o passo, desequilibrando-se por causa das escamas lisas dos animais. Escorregou e caiu de joelhos sobre os répteis, recompondo-se rapidamente, no auge do pânico e continuando a correr.
— A menina está fugindo!
Marduk ao ver que Brianna estava saindo de cima das serpentes e que as mesmas continuavam a dar o bote incessantemente, mesmo com o fogo, ele saltou para a parede, em direção ao teto baixo da galeria.
Ambas as bruxas lançaram seu feitiço ao mesmo tempo.
— Alica incendia!
Labaredas de fogo voaram em direção ao demônio, que pulou novamente para o chão, antes que o teto inteiro virasse um manto de chamas. Uma das cobras mordeu o bracinho de Marduk, que logo foi atacado por várias outras ao mesmo tempo. Deu um urro andrógeno de dor.
— Marduk! — Brianna gritou, já pisando em chão firme, assistindo seu amigo demônio ser massacrado pelas serpentes.
— Fuja! Continue correndo! — gritou a criatura arreganhando a boca e mordendo uma das serpentes enroladas nele. Soltou um dos braços e lançou o archote para a menina.
O objeto flamejante caiu aos pés de Brianna, que teve que levantar o pé para não ser queimada. Embora relutante, apanhou a sua fonte de iluminação e continuou a correr pelo túnel.
Fiona passou sobre as cobras com as mesmas dificuldades que a menina, passando ao lado do pequeno demônio que lutava para desprender-se dos répteis. Seu objetivo era pegar a garota. Clodagh ficou parada, observando o desespero do demônio para se soltar, quase completamente coberto pelos ofídios. Fez um gesto com a mão e uma bola viva de serventes ergueu-se do chão. As cobras iam caindo aos poucos, deixando cada vez mais visível o pequeno corpo de Marduk. O corpo ficou flutuando diante da mão da feiticeira e apenas algumas cobras mantiveram-se no ar, com as presas enterradas na pele demoníaca.
— Para que está atrás da garota? O que ela tem de especial?
— Eu gosto da garota — Marduk deu um sorriso sarcástico, mostrando as fileiras de dentes pontiagudos.
— Eu vou devolvê-lo ao inferno, seu demônio. Diga-me por que precisa da garota.
— Eu não preciso dela; ela precisa de mim.
— Para quê?
— És uma velha intrometida, não acha? — o demônio deu outra risada.
Clodagh fez um gesto com a mão e Marduk foi violentamente arremessado contra a parede, derrubando duas das cobras presas a ele. Fez outro gesto e ele foi de encontro ao teto e por fim, ao chão. Uma bola de fogo surgiu na mão da feiticeira.
— Quer queimar vivo, demônio? — fez um gesto com a mão livre e as serpentes se dispersaram.
Marduk continuou a rir.
— Do que está rindo, seu demônio?
Do aviso com sangue que pus na neve na entrada da caverna.
Clodagh estremeceu.
— Que aviso?
— "Bruxas", com uma setinha apontando para dentro — deu uma risada.
— Está blefando! — gritou.
— Não, o demônio não está.
A voz vinha de trás de Clodagh. Aquele tom grave fez sua alma gelar.
Ela virou-se vagarosamente para trás...
Um homem alto de olhos amarelos com um casaco de couro quase da cor de seus olhos, com o peito nu à mostra, revelando um medalhão de ouro com o brasão dos Arcanis. O resto das roupas eras negras, com tiras de couro amarradas.
— Cormac... — A feiticeira estava tremendo. A bola de fogo em suas mãos bruxuleava.
— Sabe muito bem qual é o destino de um traidor do clã, não sabe? Sabe o que acontece quando se assassina um de nossa espécie, e quando se foge...
— Eu... eu não... Foi um acidente, Cormac. O Alto-Sangue vai entender...
— O Alto-Sangue quer você morta. Vai fazê-lo na esplanada da masmorra, para dar exemplo aos outros
Clodagh fez um movimento e a bola de fogo voou na direção do notívago, que desviou-se sem nenhum esforço. Logo em seguida ela apontou os dois braços em direção do mesmo, com os dedos indicadores e mínimos imitando a forma de chifres.
— Alica lapsus!
O corpo do vampiro flutuou e foi canhoneado contra as paredes, tão brutalmente que causou o estremecimento da caverna. Parecia um brinquedo jogado de uma parede à outra.
Com um movimento brusco, o notívago livrou-se do feitiço e, com velocidade de um relâmpago, postou-se atrás de Clodagh, agarrou sua cabeleira e puxou brutalmente, arrancando todo o couro cabeludo e parte da pele do rosto, incluindo as sobrancelhas.
A escalpelada deu um grito aterrador, que se confundiu com a gargalhada do vampiro e o eco dos dois. Marduk havia desaparecido.
Brianna continuava a correr com a tocha, sem conseguir visualizar o fim do túnel. Ouvia os gritos de Fiona pedindo que parasse, mas não a obedeceria. Não conseguia parar de se preocupar com Marduk; vira-o ser atacado covardemente por várias cobras sem ter como se defender, e tudo para salvá-la...
Dobrou em outra bifurcação do túnel, esta bem mais estreita, tanto que teve de mover-se de lado.
— Brianna!
Fiona estava na entrada da bifurcação e começava a esgueirar-se pela estreita passagem. Brianna parou diante de um buraco no chão. O fundo tinha uma fraca iluminação natural. A altura era de cerca de dois metros e meio.
— Calma, Brianna, espere-me! — mantinha uma mão erguida segurando uma chama flutuante. — Eu não quero machucar você!
Estava bem próxima, quase ao alcance.
Brianna lançou o archote no buraco, depois pulou.
Caiu agachada e o impacto da queda fez suas pernas doerem.
— Brianna! — Fiona gritou saltando no buraco.
A galeria que se abrira na verdade era uma pequena gruta, cuja abertura há alguns metros de onde estavam, dava acesso ao exterior, por onde uma fraca luz do nascer do sol passava. A menina esforçou-se para correr naquela direção.
Fiona agarrou seu calcanhar, fazendo-a cair.
— Não quero machucá-la, Brianna. Esqueça o que minha mãe falou, eu não vou abandonar você — ela já havia desfeito o feitiço de fogo e segurava a garota com as duas mãos.
— Não! — Brianna gritou. — Me larga!
— Não pode sair daqui! Eu vou cuidar de você. Não tem para onde ir!
Ouviu-se um barulho de algo caindo. Quando Fiona olhou para trás, viu o corpo de sua mãe escalpelada, que agonizava. Logo em seguida o vulto que caiu da abertura no teto foi o de um notívago que Fiona conhecia muito bem.
— Mamãe! — gritou a plenos pulmões.
Brianna soltou-se e correu em direção a uma rampa de musgos que se misturava ao gelo à medida que se aproximava da abertura.
— Saudades de mim, Fiona?
Fiona fez menção de unir às mãos para conjurar um feitiço, mas o vampiro de casaco de couro amarelo foi mais rápido e agarrou seus cotovelos.
E os esmagou com um simples aperto.
Fiona deu um berro aterrador.
— Cormac, seu maldito! O que fez à minha mãe?
Ele a deu um empurrão, fazendo seu corpo cair ao lado do de Clodagh. Sua atenção estava virada para a menina loirinha que saía correndo da caverna.
— E você, menina, quem é? Mais uma bruxinha bastarda?
Brianna não deu ouvidos, aproximando-se cada vez mais da saída. Cormac correu em direção a ela exatamente no momento em que ela pisava fora da caverna, e que a luz do nascer do sol tornava-se mais nítida.
O vampiro parou bruscamente, sentindo o ardor insuportável como ácido em sua pele, então retornou à escuridão da caverna.
Brianna caiu de joelhos na neve, exausta.
O dia desenhava-se diante dos olhos da menina. A luz do sol refletida na neve feria sua vista levemente. Ela respirou arfante, sem forças para continuar. Só então percebeu que já estava a salvo.
— Marduk! Marduk! — ela gritava sentindo as lágrimas descerem por seu rostinho.
Silêncio.
— Veja, papai! Uma menina!
Brianna olhou para o lado; viu que havia uma estrada por onde passava uma carroça coberta sendo puxada por dois velhos cavalos. Nela havia um homem acima do peso, de bigode espesso e bochechas rosadas e um garoto pouco mais velho que ela, de olhos azuis e cabelos loiros como os do pai. O homem desceu da carroça e foi correndo até ela com certa dificuldade, devido à neve funda.
Brianna olhou mais uma vez para a entrada da caverna, na esperança de que Marduk saísse. Mas perdeu as esperanças; o homem a apanhou nos braços, carregando-a com cuidado até a carroça.
— Com quem você estava, menina? Perdeu-se de seus pais?
— Eu não tenho pais.
— E quem você estava chamando? Seu cachorro?
Brianna lembrou-se do que Marduk lhe advertira.
— Sim. Ele entrou na caverna.
— Quer que eu vá buscar ele?
— Não, não precisa — ela apressou-se em dizer, lembrando-se de quem estava dentro da gruta. — Ele se foi... Para sempre...
O garoto estava aguardando no veículo, de olhos bem abertos, sem entender o que aquela garota fora fazer ali. Seu pai a colocou no assento e sentou-se ao seu lado, de maneira que ela ficou entre pai e filho.
— Onde você mora?
— Eu não tenho uma casa.
— Calma garotinha. Como assim não tem para onde ir? Todos têm para onde ir.
— Papai, leve ela com a gente!
— Não posso fazer isso, filho. A menina só está perdida e confusa. Deve haver alguém responsável por ela. Não tem nenhum tio ou tia?
— Minha tia me maltratava, por isso fugi de casa. Ela é uma mulher muito má. O marido dela tentou tocar em mim...
O homem olhou para seu filho, horrorizado.
— Isso é mesmo verdade?
— Sim — baixou a cabeça tristemente.
O homem pensou por um instante, olhou para o filho, depois para a garota. Benzeu-se, de olhos fechados.
— Senhor, que eu esteja fazendo a coisa certa! — e olhando para Brianna ao seu lado: — Vou levar você conosco. Estamos indo para Vill of Michel, e é uma longa viagem. Quer ir conosco?
— Qualquer lugar longe daqui. O lugar para onde quero ir vocês não podem me levar.
— Para onde quer ir?
— Esqueça — Brianna aprendera a duro custo não dizer certas informações a qualquer um.
O homem deu os ombros e puxou as rédeas dos cavalos. Cavalgou em direção ao rio Suir, não muito longe de onde estavam.
— Meu nome é Owen Wise — disse o garoto sorrindo e estendendo a mão.
Brianna apertou a mão dele timidamente, forçando um sorriso.
— Esse é meu pai, o nome dele é Liam Wise.
O homem deu um sorriso, fazendo as bochechas rosarem ainda mais.
— Meu nome é Brianna.
— Não se preocupe, querida. Ninguém mais vai lhe maltratar — prometeu Liam.
Aquilo não confortou Brianna em nada. Já ouvira aquilo antes.
Sob a neve nos arredores da caverna, algo começou a mover-se e a ganhar a superfície.
Era a mãozinha demoníaca de Marduk.
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Será que ela está a salvo agora?
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