Dezenove - Assassina
A pequena Brianna não tinha idéia de como agir naquela situação. Ela sabia um segredo terrível de Póla e Jeaic, mas não tinha com quem compartilhar, a menos que, tinha certeza, causasse uma briga enorme. Ponderou a noite inteira se deveria ou não contar para Owen. Ele era seu amigo. Mais ainda, era seu irmão agora. Mas se contasse a ele, ele com certeza sofreria, e contaria ao pai, e tudo acabaria em tragédia. Por mais que fosse inocente, Brianna aprendera que os adultos não suportam traições. Sua mãe costumava lhe dizer que um homem e uma mulher quando se amam devem ficar apenas um com o outro, e se um deles ficar com outra pessoa, significa que já não há mais amor na relação.
— O que acontece então, mãe? — perguntara quando tiveram essa conversa.
— Se a pessoa traída descobre a traição, pode tomar atitudes violentas — Aisling respondera com ternura, mas seriamente. — Traição é algo sério, filha.
Brianna não conseguia imaginar o bondoso Liam tomando qualquer atitude violenta, mas mesmo assim, não queria que ele sofresse, o que com certeza aconteceria. Mas seria certo ser cúmplice daquela traição? Mesmo gostando tanto de Jeaic e de Póla, deveria fingir que não vira nada?
De qualquer maneira, Brianna não sabia mais como encarar Póla. Nas vezes que se cruzaram, a menina baixou a cabeça e na hora do jantar, manteve a mesma atitude. Póla estranhou:
— O que houve, menina?
Brianna levou um susto com a pergunta, e isso aumentou a desconfiança de Póla.
— Nada.
— Por que não me olha nos olhos? Até parece que está com medo de mim...
— Não senhora — apenas balançou a cabeça levemente.
Póla ficou em silêncio novamente, mas sempre com o cenho franzido. Brianna definitivamente estava agindo estranhamente, pensou.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não — Brianna mal mastigava o pão que comia com a sopa, quase intocada.
— Não vai comer?
— Estou comendo.
— Menina, por favor, me diga o que está acontecendo — alterou um pouco a voz, fazendo Brianna estremecer.
Brianna ficou em silêncio. Póla começou a ficar preocupada.
— Olhe para mim.
Brianna continuou olhando para a sopa.
— Olhe para mim! — a voz dela mais uma vez alterou-se.
Os olhos verdes da menina estavam espantados. Brianna estava extremamente desconfortável ali.
— Eu sou sua amiga, garota. Diga-me o que lhe aflige. Eu lhe fiz algo, por acaso?
Brianna balançou a cabeça, mal conseguindo manter o contato visual.
— Então qual é o problema?
Brianna voltou a olhar para a sopa.
Póla teve de encerrar a conversa, e pelo resto da noite nenhuma das duas dirigiu a palavra uma à outra.
Pela manhã Jeaic apareceu na casa, sorridente como sempre, e pegou Brianna nos braços, levantando-a quase até o teto. Ao ver que a menina mantinha a expressão séria, ele a pôs no chão novamente.
— Está triste?
Brianna não respondeu.
— Zangada? — ele insistiu.
Brianna correu para fora de casa. Correu até as ruínas da catedral e ficou sentada sobre uma pedra, contemplando a paisagem, mas tais imagens mal eram percebidas por ela; seu pensamento estava longe. Não sabia como agir com Póla ou Jeaic. Não poderia dizer que estava com raiva dos dois, ou simplesmente com medo. Era um medo irracional de que descobrissem que ela sabia do seu segredo. Ou talvez seu desconforto fosse apenas vergonha, vergonha do pecado deles. Não saberia dizer...
Ficou por ali, abraçando o próprio corpo por causa do frio. As horas passaram e crianças se aproximaram da catedral para brincarem. Ainda tentaram incorporar Brianna na brincadeira, mas ela não estava com vontade alguma de se divertir. Imaginou se em casa, Póla e Jeaic não estavam fazendo a mesma coisa que no dia anterior.
Quando voltou para casa, teve uma agradável surpresa: Liam e Owen já haviam chegado da viagem e o garoto correu em direção a Brianna, dando-lhe um apertado abraço. Em sua face estava estampada a felicidade em vê-la.
— Eu senti sua falta!
E como ela sentira a dele! Ficar um dia apenas sem Owen parecera uma eternidade. Ela também estava extremamente feliz revê-lo. Em seguida foi Liam quem lhe pegou nos braços.
— Saudades de você, loirinha! — as bochechas rosadas de Liam intensificaram a cor com seu sorriso largo.
Ao ser posta no chão, Owen a pegou pela mão, puxando-a:
— Vamos, deixe-me contá-la como foi a viagem!
Brianna escutava com satisfação a história contada por Owen, que se empolgava em dizer os detalhes exagerados de sua jornada com o pai. Nada de excepcional havia acontecido, mas mesmo as coisas mais insignificantes ganhavam ares magníficos no relato do garoto. Por um momento, Brianna esquecera-se do segredo de Póla e Jeaic e decidiu guardar para si, assim como guardava o segredo de Marduk.
Naquela noite o clima fora mais ameno. O jantar fora tranqüilo e alegre. Brianna fitava como nunca antes se bondoso novo pai. Ele não merecia aquilo. Traição era algo ruim, como lhe dissera Aisling. Após a refeição, Liam foi para a taberna onde encontraria seus velhos amigos. Póla ainda estranhava o comportamento de Brianna, mas nada mais comentou. Pelo menos não com ela.
A taberna que Liam freqüentava era uma das mais agitadas de Vill of Michel. Grupos de amigos se reuniam ao redor de mesas enquanto tomavam cerveja, vinho ou hidromel. Um músico tocava alucinadamente sua rabeca em um canto, enquanto os freqüentadores batiam palmas ritmadas.
— Ao beberrão Liam! — Phil levantava uma caneca de cerveja convidando a um brinde.
Jeaic e Liam tocaram suas canecas na do gorducho careca, todos com sorriso no rosto.
— Então você conseguiu vender ainda mais caro aquela lã toda? — indagou o ruivo Jeaic.
— Golpe de sorte. Os mercadores de Cahir estão concorrendo cada vez mais. A lã que vendi era de qualidade, mas nada como uma boa lábia para convencer os compradores de que era da melhor!
Deram uma risada. Phil tinha um riso grotesco, quase gutural. Estava completamente bêbado.
— E não apareceu nenhuma vagabunda por lá? — perguntou Jeaic acotovelando levemente o amigo.
— Que é isso, rapaz! Sou um homem casado, e ainda mais, estava com meu filho a tiracolo.
— Mas se não estivesse com o moleque e uma rameira gostosa surgisse? Cahir está cheio delas... — o ruivo encarava o amigo com malícia.
— E como você lucrou um dinheirinho... — completou Phil atiçando.
— Não, não, meus amigos — Liam sorriu. — Sou um homem apegado aos princípios. Jamais faria isso com Póla. Sei que ela jamais faria o mesmo comigo. Seria uma falta de respeito imperdoável.
Jeaic ficou em silêncio.
O som da rabeca parou de repente. As palmas cessaram. Todos convergiram seus olhares a uma única figura.
Era o marido de Tríona, Últan. Ainda tinha vestígios da surra que tomara do soldado do xerife Patrick Morre. O homem subira em uma mesa para chamar a atenção dos que ali se encontravam.
— Meus caros companheiros! — disse em voz alta, enquanto seu olhar passeava por todo o estabelecimento. — As taxas cobradas pelo xerife Patrick estão cada vez mais exorbitantes. A safra antes do inverno não foi das melhores, e nossos recursos estão se extinguindo cada vez mais rápido. Pessoas são espancadas, casas são queimadas, a lei não é cumprida! Não tememos mais salteadores ou assassinos, nós tememos aqueles que deveriam nos proteger! Disso todos têm ciência, mas o que faremos nós a respeito? Deixaremos que esses filhos da puta invadam nossas casas, façam o que querem e depois levem o que nós batalhamos para conseguir?
Houve um burburinho geral. Alguém se manifestou em voz alta:
— E o que faremos a respeito? Negar entregar o que temos e acabarmos na cama que nem você?
A maneira desdenhosa com que o homem falara fez com que os outros rissem.
— Vamos, riam! — gritou Últan furioso. — Riam enquanto eles nos roubam! Riam enquanto invadem nossas casas! O que aconteceu comigo é apenas um aviso do que pode acontecer com vocês! Ameaçaram queimar minha casa se não pagar o dobro a eles! — as lágrimas revoltosas subiam-lhe aos olhos. — Não falo apenas por mim, mas por todos que tiveram o mesmo destino e por todos que ainda terão. Se não fizermos nada, nossas mulheres e filhas serão violentadas por eles enquanto baixamos a cabeça. Acham que isso não pode acontecer? Acham que isso seria demais? Eu lhes digo: Não! E se não fizermos dada contra esse maldito tirano, é exatamente o que acontecerá!
Todos ficaram em silêncio. Ninguém ousou debochar do homem ou mesmo contestá-lo.
E foi Liam que se manifestou:
— Se revidarmos com força geraremos uma guerra! Nossos filhos e filhas podem morrer por isso.
— Sim, podem. Mas o que vocês preferem? Morrer lutando ou morrer de cabeça baixa?
— Não somos guerreiros, homem! — disse alguém. — Nem temos armas que sejam páreo para eles!
— Vamos, pensem assim e seremos para sempre escravos da tirania!
— E o que sugere, Últan? — disse Phil com sua voz bruta.
— Nosso xerife anterior não era um tirano; nós éramos felizes antes. O problema é o maldito Patrick Moore. Ele comanda os soldados, portanto...
— Corte a raiz e a árvore morre — disse um homem levantando-se. — Ele tem razão! Seria uma saída viável.
Liam também se levantou, incrédulo.
— Está sugerindo um assassinato?
— Estou sugerindo nossa libertação! — retrucou Últan com convicção.
— Mas se cortamos uma cabeça, outra nasce no lugar, como uma Hidra! — falou o dono da taverna. Nesse ponto, todos se entreolhavam com curiosidade, começando a considerar a proposta do insurgente.
— Então cortaremos a cabeça de novo e de novo até que nasça uma como a de nosso bom e velho xerife!
A maneira acalorada com que Últan proferiu as últimas palavras gerou gritos de incentivo. Logo, a taberna inteira comentava entre si a viabilidade daquela sugestão macabra.
— Isso é um absurdo — Liam comentava para seus dois companheiros. — Não somos assassinos.
— Talvez Últan tenha razão, Liam.
— Isso mesmo — concordou Phil. — É ele ou nós.
— Meu Deus! Somos pessoas de bem, pacatas, trabalhadoras, não assassinos! Se fizermos isso, seremos pior do que ele!
— Mas pense bem, Liam — raciocinou Jeaic. — Eles podem fazer o que Últan disse. Imagine seu filho e a pequena Brianna em perigo por causa deles. Se deixarmos algo assim acontecer para nos rebelarmos, será tarde demais. Podemos perder pessoas que amamos...
— Tudo bem, Jeaic, mas e se eles descobrem que fomos nós? Destruirão nossa querida cidade e o caos será ainda pior.
— Isso se deixarmos que eles nos descubram... — a voz grossa de Phil soava misteriosa.
Em toda a taverna, discussões como aquelas eram feitas.
E logo, se espalhariam como febre por toda Vill of Michel.
†
Enquanto a cidade planejava secretamente o assassinato que lhe livraria da tirania do xerife Patrick Moore, Brianna vivia seu drama secreto, cada vez mais sufocada por ele. Mas os dias foram passando e a vontade de compartilhar aquele pecado da mãe de Owen com ele começava a diminuir. Brianna passou a agir normalmente com Póla, como se nada houvesse acontecido.
Mas a mulher ainda estava intrigada com a atitude de Brianna quando Liam e Owen haviam viajado. E havia uma razão para não ter comentado nada com seu marido.
Medo.
E se a garota tivesse visto alguma coisa?
Póla passara a trabalhar em uma fazenda junto com Tara, Seona e Tríona, cuidando das ovelhas de um fazendeiro e retirando-lhes a lã. Às vezes ela despistava as amigas e sumia, em direção ao bosque, onde se encontrava perigosamente com Jeaic. O lenhador também usava da mesma estratégia com seus amigos de profissão. Havia uma pequena alcova escondida pelo gelo em uma ribanceira, forrada de madeira por Jeaic especialmente para os encontros dos adúlteros.
Os encontros eram calorosos. Póla esquecia-se de todos os pudores que tinha para com o marido conservador, e entregava-se por inteiro a Jeaic. Com ele fazia coisas que seu marido nunca aceitaria, e caso propusesse, seria com certeza chamada de vagabunda.
Tinham acabado de transar e estavam exaustos. Póla apressou-se em pôr as roupas novamente.
— Não posso demorar muito ou as outras desconfiarão. Nem você!
O ruivo sorria para ela, ainda extasiado com o sexo que haviam acabado de fazer.
— Há um grupo se reunindo para fazer uma emboscada a Patrick e seus soldados. Eu estou nesse grupo.
Póla o olhou preocupada.
— Você não pode ir! É loucura!
— Eu tenho de ir, meu amor. Não posso deixar meus companheiros sozinhos.
Ela relutou, mas não poderia dissuadi-lo daquela idéia. Até mesmo naquilo Jeaic era superior a Liam, ela pensava. Seu marido não passava de um tolo cheio de princípios, incapaz de tomar decisões como aquela, ou mesmo de participar delas.
— A menina mudou novamente comigo — desconversou ela. — Mas me preocupa a reação dela quando estivemos sozinhas.
— Você acha que ela descobriu algo? — a expressão de Jeaic ficou tensa.
— Não creio. Se houvesse descoberto algo, teria dito a Owen e ele teria dito ao pai. Eu disse que era uma loucura nos encontrarmos em casa. As pessoas poderiam começar a desconfiar.
— Quem desconfiaria de nós? Sou o melhor amigo de Liam.
— Eu sei. Mas a Tara, por exemplo, parece ter começado a suspeitar. Algumas vezes ao falar de você com as outras, ela me dava olhares maliciosos...
— Está deixando na cara? — preocupou-se o ruivo colocando a última peça de roupa.
— Não exatamente. Mas ela vem agindo estranho comigo. Temo que ela comece a falar mal de mim para as outras. Ela era apaixonada por você e você nunca lhe deu bola. Ela deve ter guardado alguma mágoa.
— Ela não é sua amiga?
— Amiga... Quem tem amigos hoje em dia, Jeaic? Olhe só para você!
Ele a encarou irritado.
— Não ouse me julgar por isso, Póla. Eu tenho muita consideração por Liam e você sabe muito bem. O que há entre nós é secreto e ele nunca deverá saber, entendeu?
— Claro — ela arrependeu-se de ter irritado o amante. Sabia como aquele era um tema delicado de se tocar.
— Acho que devemos parar de nos encontrar por um tempo — sugeriu ele. — Se for verdade que Tara desconfia de nós, é melhor não vacilarmos.
Póla tinha de concordar que Jeaic tinha razão.
— Jeaic, eu tenho de lhe contar algo...
— Agora não, Póla. Vamos voltar ao trabalho.
Os dois saíram do cubículo cavado na terra, como uma caverna artificial, e Jeaic tratou de cobrir a pequena entrada com tábuas e gravetos. Tinha medo de que alguém encontrasse seu esconderijo ou que algum urso o fizesse de abrigo.
— Ouviu isso? — disse Jeaic alerta.
Os dois olharam ao redor, completamente tensos.
— Deve ter sido algum animal...
— Ali! — Jeaic gritou imediatamente correndo em direção ao vulto entre as árvores.
Bastou correr alguns passos para distinguir a figura feminina que fugia. Jeaic correu com todas as suas forças em direção à mulher, com o coração a mil. Atrás dele, Póla tremia em desespero.
Não demorou muito para que Jeaic alcançasse a testemunha de sua traição e a imobilizasse.
— Tara?
— Largue-me, Jeaic! Como pode fazer uma coisa dessas com seu melhor amigo?
— Calma, Tara, eu posso explicar! Eu e a Póla...
— Trepam escondidos naquela caverninha que você deve ter criado, não é?
— O que você viu?
— O suficiente!
— O que pretende fazer?
— O que mais, ora? Vou contar para Liam essa pouca-vergonha!
Jeaic apertou os pulsos dela. Ela gemeu de dor.
— Não vai dizer nada a ninguém.
Tara contorcia-se perante a força o grandalhão ruivo. Não podia competir com aquela força.
— Não tenho medo de você, Jeaic.
— Póla é sua amiga. Vai acabar com a vida dela!
Póla aproximava-se dos dois.
— E Liam é seu amigo. E você come a mulher dele às escondidas. Bela amizade vocês têm. Não serei cúmplice deste adultério.
Jeaic começava a desesperar-se. Apertou com mais forças os pulsos de Tara.
— Está me machucando, seu animal!
— Eu fico com você se você quiser! Posso ser seu amante também! — disse em desespero.
— Quando quis você eu fui desdenhada. Agora me quer por medo? Eu...
Tara não completou a frase. Sentiu uma pancada na cabeça e o gosto de sangue na boca. Tudo escureceu muito rápido para ela. Jeaic teve de largar seus pulsos quando ela desabou no chão.
Assistiu horrorizado Póla segurar a pedra assassina, que tinha de segurar com as duas mãos dado seu peso. Ao redor da cabeça de Tara uma grossa poça de sangue tingiu a alvura do gelo.
— Você a matou! — Jeaic mal conseguia falar, trêmulo.
Póla largou a pedra, horrorizada e levou as mãos à boca, suprimindo um grito. Seus olhos arregalados enchiam-se de lágrimas.
— Eu tinha de fazê-la parar! Ela ia contar ao Liam!
Póla encarou em pânico o olhar do cadáver que outrora fora sua amiga. Se Jeaic não a tivesse abraçado, ela teria gritado.
†
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