Capítulo 50
No céu azul e límpido, uma águia planava.
Vincent Blackheart olhava para a tal ave que exibia-se nos céus.
Um voo rasante e poderoso. Um sorriso condescendente surgira em seu rosto contornado pela barba por fazer. Pôs a mão direita sobre o braço esquerdo coberto pela capa. Andou por chão feito de ladrilhos pertinentes e adentrou a edificação de janelas acinzentadas. Orfanato Santa Marcelina. Suspirou, o coração martelando frenético quase a sacar do peito. Uma freira o recepcionara, muito simpática de feições gentis, conduzindo-o para o escritório.
Os pensamentos de Vincent jaziam longe. Na fortaleza ainda restavam os sinais de desavença. O cheiro da morte e da violência aos poucos dissipavam-se dos corredores, passadiços e calabouços. Os Assassinos, aos poucos, restauravam sua dignidade. Sua honra.
— Ainda não é o fim — Jervaise dissera. — Sob a cinza da destruição, há sempre a esperança do renascer. Perdi um olho, meu lar, meu amigo... mas tenho fé de que coisas boas virão.
Saíra de seus pensamentos distantes, contemplando a mulher de face enrugada à sua frente.
— Chamo-me Irmã Beatrice — dissera a freira.
— Vincent Blackheart — Apresentou-se também, muito educado, sob o aceno de cabeça da Irmã.
— Sente-se, por favor — indicara com a mão. — És muito jovem para adotar uma criança, não?!
— Ah, não estou aqui para adotar criança, Irmã Beatrice — dissera, gentilmente.
— Então, em que posso ajudá-lo?
— Vim a pedido de um amigo — sentou-se. — A filha dele chama-se Lívia. Gostaria de saber se a menina ainda se encontra no orfanato ou se fora adotada.
— Oh, falas da pequena Lívia — o sorriso da Irmã Beatrice desapareceu. — É uma garotinha especial, mas muito rancorosa. Os próprios avós resolveram deixá-la aqui, depois que a mãe de Lívia faleceu. Disseram que era uma bastarda, cujo pai era um bandido perigoso.
— Isso é mentira! — Vincent levantara a voz, logo recompondo-se. — Conheci o pai da garota. Era um homem exemplar.
— Tens notícias dele?
— Ícaro Rutilo faleceu.
— Quando ocorreu isto?
— Há alguns meses — explicou-se, tristemente.
— Oh, que infortúnio — Irmã Beatrice olhou para a janela. — Lívia será adotada amanhã. Há tempos, existe um casal com a intenção de adotá-la.
— Gostaria de vê-la. Eu posso?
— Pretende adotá-la, senhor?
— Apenas cumprir a promessa do meu amigo.
Irmã Beatrice levou-o para os fundos do orfanato, onde jaziam algumas crianças brincando sobre o gramado, correndo alegremente. Ali também havia um grande carvalho e nele um balanço. No balanço, havia uma menina de cabelos pretos amarrados em duas trancinhas e de vestido verde, com avental e laço vermelho no pescoço, o uniforme do orfanato.
— Oh, ali está ela — Irmã Beatrice apontou para o velho carvalho. — Ali, naquele balanço, encontra-se a menina Lívia.
— Posso falar com ela?
— Sim, pode falar com a menina — a Irmã lhe sorriu.
Vincent andou cauteloso até a menina. Lívia erguera a cabeça, deparando-se com os olhos rubros do rapaz. Vincent ofegou um pouco. Ela tinha os mesmos olhos de safira de Ícaro.
— Olá — dissera a menina. — Tudo bem?
— Oh, sim — Vincent agachou-se, ficando na mesma linha dos olhos da garota. — És Lívia?
— Sim — respondeu sorridente. — Como se chama? — não deixava de desviar a atenção da cor dos olhos de Vincent e da capa que cobria seu braço esquerdo.
— Sou Vincent. Eu vim aqui cumprir uma promessa.
— Uma promessa?
— Sim, uma promessa que fiz a vosso pai.
— Conheceu meu pai? — Lívia fechou o semblante.
Vincent anuiu.
— Meu papai me abandonou e abandonou a minha mamãe. Eu o odeio.
— Não diga isto, Lívia — Vincent repreendeu-a com sutileza. — Seu pai a amava. Daria a vida por ti.
— Como sabes disso? — esfregou a mão no rosto.
— Era meu amigo. Era um homem valente que não está mais conosco.
A boca de Lívia tornou-se trêmula. Logo após soluçou, libertando as lágrimas.
— Ele me amava?
— A amava muito, menina.
Vincent levou a mão para baixo da capa, onde retirou a ponta de uma flecha que estava guardada no bolso do casaco.
— Isto é para ti — entregou para a menina.
Ela analisava a ponta de flecha com cuidado. Apertou-a, fechando-a em suas mãos, levando as mãos fechadas ao peito.
— Aonde quer que estejas, Lívia — Vincent continuou, — lembre-te sempre que Ícaro Rutilo, o seu pai, a amava.
Lívia saltou do balanço, atrancando os braços ao redor do pescoço de Vincent.
— Obrigada, Sr. Vincent. — fungava. — Eu não odeio mais o meu papai.
✦
Isidora permanecia deitada sobre as flores da campina. Admirava o céu azul. Aspirava os singelos momentos de paz. Era grata por sobreviver aos perigos. Era grata por estar viva.
Ao seu lado, jazia Lorenzo. De olhos fechados, sentia a brisa lhe afagar o rosto. Abriu os olhos e virou a face, lentamente, na direção da major. Deslizou a mão pela grama, tocando o dorso da mão de Isidora. Estreitou-a em um aperto.
Ela o olhava. Perdia-se em seus olhos castanhos, em seu sorriso cálido, em sua ingenuidade. Amava-o com toda a sua alma.
— Não podemos voltar para Roma — Lorenzo sussurrou. — Não posso aceitar o peso da Coroa. Isso é um título que não pertence-me e nunca pertenceu-me.
Isidora sentou sobre a grama. Passou a mão sobre os cabelos curtos, retirando algumas folhas que ficaram presas entre seus fios. Suspirou, abraçando as pernas.
— Seremos perseguidos pela Seita, príncipe.
— Não sou um príncipe. Nunca fui o verdadeiro herdeiro do trono — ergueu-se, ficando sentado bem junto à Isidora.
— És um príncipe para mim — segurou o queixo do príncipe com extrema delicadeza. — E sempre será.
Beijou-o com ternura. E Lorenzo retribuía o seu beijo. Após sucedidos sofrimentos e o infame medo de quase ter sido morto pela Seita dos Illuminatos, Lorenzo sentia-se seguro outra vez. Fitou a jovem de cerne destemido. Vislumbrou nos olhos dourados da garota, expectativas de uma vida pacífica. Uma vida sem mentiras, uma vida da qual pudesse orgulhar-se de vivê-la.
— Eu a amo, Isidora — dissera com firmeza. — És junto a ti que almejo passar cada segundo da minha vida. Minha melhor amiga e meu amor verdadeiro.
Isidora o abraçou.
— Fugiremos, Lorenzo. Construiremos um mundo somente nosso.
— Acreditas que teremos um final feliz?
— Não — Isidora dissera, convicta —, mas lutarei para fazer nosso final ser feliz.
Vincent contemplava o casal apaixonado. Agachou-se a cavar o gramado com a mão. Assim que o buraco na terra tornou-se grande o suficiente, levou a mão ao bolso do casaco, retirando o diário de Dimitri. Lançou-o no buraco, jogando terra por cima, enterrando-o. Relembrava-se de tudo que vivenciara em sua vida. Garoto de rua, ladrão, aprendiz de Assassino, corsário, atalaia, e Assassino. Desembainhou a espada de seu dorso e fincou-a na terra. Uma lápide improvisada, representando todas as pessoas que partiram e que o marcaram profundamente.
— Riposa em pace.
Um longo suspiro de enfado saíra de sua boca. Todos aqueles se foram, viveriam em sua mente eternamente, se tornariam heróis e suas histórias seriam repassadas de geração em geração...
— Sabia que estavas aqui — a jovem achegava-se a ele.
Mileide estava acompanhada de Naomi. Nas mãos de ambas, jaziam um ramalhete de gladíolos, uma flor com o formato idêntico de uma espada.
— O que estás a pensar? — Mileide questionou-o.
— Estou somente a pensar em todos aqueles que se foram — Vincent dissera, volvendo-se para elas.
Mileide e Naomi ajoelharam-se frente a Arcanjo, com a lâmina fincada na terra. Mileide tateou a empunhadura da espada, e então, retirou o cordão com seu querido pingente de asa do pescoço, pondo-o sobre a empunhadura de Arcanjo. Pôs no chão os gladíolos e unindo as mãos frente ao rosto, Naomi aparentava fazer uma prece por todas as almas que se foram. Principalmente, por sua gêmea, Noemi, e por aquele que ela tinha como pai, Sameque.
— Gostaria de dizer algumas palavras? — Mileide encorajava Vincent.
Alguns minutos mergulhado no silêncio, Vincent por fim, conseguira falar.
— Quando meu pai era jovem, tivera liberdade, mas não via isso. Tivera tempo, mas não sabia disso. Ele tivera amor, mas não o demonstrou. — Vincent tocou a mão direita no ombro esquerdo. — Dimitri foi um bom homem.
Mileide levantou-se, abraçando-o, aninhando-se em seu peito, enquanto o único braço do rapaz a apertava com força. Aquele rapaz estava fazendo um grande progresso. Antes tão arrogante e frio, e agora, mostrava-se mais benevolente.
— Vincent — Jervaise chamara-o.
O olho que lhe fora arrancado, devidamente coberto por um tapa-olho de couro. Naomi correra até o loiro, atirando-se em seus braços, aplicando beijos em sua bochecha.
— Estás ocupado? — o loiro questionou.
— Não — dirigiu a atenção para o amigo. — O que queres?
— Acharam isso com Malquior — Jervaise entregou o pergaminho para Vincent. — No bolso de suas vestes, continham um papel. Acharam que poderiam ser os códigos que ele recitou para controlar-te, mas... — fizera uma pausa. — Creio que devas ler. É importante.
Apanhou o pergaminho. Um nó sufocou em sua garganta. Era a grafia de Dimitri. Era uma das últimas páginas que faltavam do diário de seu falecido pai. Lorenzo e Isidora achegaram-se para perto da espada na terra com gladíolos a ouvir o que o rapaz de olhos rubros diria.
"Querido filho"
Um solavanco agitou-se no peito de Vincent.
"O amor é a força mais magnífica que existe."
Vincent podia sentir as lágrimas molhando o rosto.
"Na adversidade, o homem encontra a sua salvação na esperança. Nunca perca a esperança, Vincent, mesmo que os dias pareçam maus, ou mesmo que as tempestades jamais cessem. Seja forte todo o tempo."
Um sorriso repuxou seus lábios.
"Perdoe-me por eu ser um pai tão ausente. Perdoe-me por jamais ter lhe pego nos braços. Perdoe-me, Vincent, por permitir faltar esta pequena parte em tua vida, chamado amor paternal."
Uma lágrima caiu sobre o papel. Os amigos aproximando-se dele.
"Filho, espero que aprenda que nessa vida existem cicatrizes que ficam estancadas para sempre em nossa alma, mas há outras que somente o tempo e o amor podem curar. Nunca esqueça-te disto."
Sentiu o contato de dedos estreitando em seu braço. A donzela, ao seu lado, tingida pelas cores do pôr-do-sol segurava em seu braço direito, olhando com ternura para ele. Um sorriso gentil desenhava no rosto de Mileide. Jervaise e Naomi, assim como Isidora e Lorenzo, olhando em silêncio para o horizonte.
"Eu sempre estarei contigo, Vincent. Sempre estarei ao teu lado. Nunca o deixarei. Lembre-se que..."
Leu a última linha da carta, com um brilho de esperança no olhar.
"Eu o amo, meu filho."
Vincent olhou para o horizonte, impávido. Algo agitava-se dentro de seu peito. Algo bom. Algo novo. Olhou para o céu em tons de lilás e laranja. As palavras de seu pai estavam certas. Uma esperança cresceu em seu coração.
Tornou a vislumbrar uma águia rasgando os céus.
f i m
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