Capítulo 5
A madrugada impaciente empalidecia no declínio da ofuscante Lua cheia, pregada majestosamente no manto azul, repleto de pequenos pontos cintilantes que aos poucos sumiam, dando espaço para a grande estrela diurna. Tal madrugada parecera sonolenta e preguiçosa para alguns, exceto para o menino de olhos rubros.
Vincent não conseguira pregar os olhos, relembrando das confabulações de Timóteo Harrington. Assassinos. Illuminatos. O descobrimento de um pai em sua vida, e a sua função como ceifador... Tudo isto mexia com a cabeça do garoto. Em sua antiga vida como marginal, era apenas um grão de areia à parte, e agora, sentia que pertencia a algo maior.
No entanto, algo remexia incessantemente em sua consciência. Deveria ser um matador, como o pai. Era obrigado a ser um Assassino. Ora, não demonstrava coragem sequer para matar uma mosca. Até o presente momento, a única pessoa que machucara fora Guelra, e arrependia-se por ter fraturado o braço do rival.
Levantou-se, sentando à beira do leito, apartando a manta fria. Não restavam escolhas. Não existiam outras opções. O destino parecia regozijar-se ao brincar consigo, atormentar a sua alma e destruir as suas expectativas.
Aiutami, Dio!
Fechou os olhos, impedindo as temidas lágrimas ressurgirem outra vez.
Vincent tinha esperanças em sua mãe passar pela porta e abraçá-lo, ouvir mais uma vez sua doce voz dizer ao seu ouvido que tudo estava bem, mas havia um grande problema; Enna, sua mãe, não estava mais viva.
Deixara uma lágrima desobediente escapar. Ainda doía recordar-se de sua falecida mãe.
Chorou baixinho, mas ainda podia sentir a garganta queimando a fim de libertar o choro. Mordera o lábio inferior com bastante força, e um gosto metálico brotou em sua língua. Cortara o lábio com os dentes.
Esfregou as palmas na face, repetidas vezes, enxugando tais rastros molhados. Precisava esclarecer certos pontos e, o primeiro deles, era justamente recusar-se a machucar alguém. Vincent não iria aniquilar pessoas como Harrington sugeriu. As levaria à justiça, onde pagariam por seus crimes, principalmente os malfeitores que destruíram sua vida.
Saiu do quarto, com a intenção de ter uma conversa franca com Harrington. Não deixaria seu destino ser moldado pelo vecchio.
✦
O escritório de Harrington ficava no segundo andar do casarão, o que era necessária a subida dos inúmeros degraus de mármore cercados por corrimões de marfim. Na entrada do escritório, haviam dois vasos em cor ébano de origem grega, com desenhos de lutas, na cor de argila. Vincent curvou-se para olhar os desenhos mais de perto, e logo enrubesceu ao notar que os lutadores pelejavam despidos. Abanou a cabeça, por conta da tola distração e prosseguiu para encontrar-se com Harrington.
Abriu a porta do escritório, e logo reparou as os dois conjuntos de janelas amplas de vidro fosco. O denso verde das árvores, do lado de fora, eram apenas um borrão esquecido. O teto e as paredes eram suavizados, ornamentado todo em gesso, o que impediam ruídos externos de propagar-se no ambiente. As hastes das luminárias acopladas na parede eram em dourado, o que fazia a luz das velas transpassarem das caixas de vidro, despejarem uma certa luz nívea.
Harrington estava sentado de frente para a janela, vislumbrando o nascer do sol. Havia muita fumaça subindo pelas ventas, e mesmo longe do cheiro nauseante, Vincent tossiu, denunciando a sua presença.
— Vincent, amico mio, acordastes um tanto cedo, não?! — levantou-se da cadeira, apoiando-se na bengala.
Olhou firmemente o menino, com as sobrancelhas unidas, fitando as marcas arroxeadas debaixo de seus olhos rubros. Percebera que o menino mal dormira.
— Eu... não consegui dormir. Fiquei a madrugada toda a pensar. — confessou, baixando a vista.
— Espero que não o tenha deixado impressionado. Desejas saber mais do meu antigo mundo, menino?
Vincent deu de ombros. Contudo, estava deveras curioso quanto à história do Clã que Harrington breve lhe contaria.
— Mas, antes de tudo, devemos usufruir de um bom e saboroso desjejum.
O garoto quase sorriu. Quase.
(...)
A mesa era farta e colorida aos olhos de Vincent. Salivou, admirando os bolos, panquecas e pães, frutas, mel e doces. Havia comida o suficiente para um exército. Um verdadeiro manjar.
Harrington bebericava calmamente o café na xícara. Em contraste, Vincent desfrutava ligeiramente do café da manhã, abocanhando as uvas e os pães, empanturrando-se. Bebeu o leite ainda quente, para que os pedaços de pão entalados na garganta, descessem.
— Fico satisfeito que tenhas gostado tanto deste desjejum, caro Vincent. Admito que estar acompanhado, és melhor que estar solitário. — limpou a boca com o guardanapo. — Sabes que dia é hoje, meu caro?
— Não faço ideia. — dissera com a voz abafada, por estar de boca cheia.
— Ora, tenha modos, jovem Vincent — acabara por ralhar, e logo mudou o semblante. — Hoje serás o fantástico dia em que mostrarei tudo o que sei. Estais preparado?
Vincent assentiu, meio a contra gosto. Almejava passar mais tempo naquela mesa, e desfrutar da refeição.
— Estás destinado a coisas grandiosas, meu filho! Até o seu nome diz tudo ao seu respeito. Vincent significa aquele que vence sempre! É um bonito significado.
— O senhor acha mesmo? — Vincent perguntara esperançoso para Harrington. Havia um certo brilho em seu olhar. Uma flama de fé.
— Meu caro, somente pelo fato de ter sobrevivido perambulando pelas ruas, já comprova o que eu falei. Seus olhos são esplêndidos, meu caro. Uma cor muito rara. Os olhos de teu pai.— Bebericava o café.
— As pessoas tem medo de mim por causa deles. — Espetava com raiva, o garfo nas panquecas com mel. — Eu detesto ter essa cor assustadora nos meus olhos!
Harrington nada dissera. Depositou a xícara no pires, fitando o jovem entristecido.
— Venha, meu caro. O levarei para contemplar o meu maior tesouro.
✦
O vecchio levou-o até à uma outra parte do casarão. Fora necessário o uso do castiçal por ser um local muitíssimo escuro. Girou a chave no trinco da porta de madeira, arrastando-a, deixando arranhões no piso por conta de seu peso. Assim que Harrington abriu totalmente a porta e direcionou a luz das velas para dentro do recinto, o local iluminou-se revelando livros pesados, volumes raros e pergaminhos antigos enrolados e vedados com fitas rubras. A sala passava a sensação de sabedoria e opulência. Era tudo, resumo do trabalho de anos, servindo o Clã.
Tudo a salvo, trancados à sete chaves, como verdadeiras joias.
Vincent olhava para as milhares de prateleiras com livros e mais livros, e não pode deixar de ficar boquiaberto. Mesmo com a pouca iluminação das velas do castiçal, o garoto identificou na parede, uma bandeira rasgada, com o símbolo de uma águia vermelha de asas abertas. Uma águia. Liberdade. Vincent logo recordou-se da águia que vira em pleno voo, sob o céu cinzento, meses antes, e do quanto a invejou por ser súpera.
Em cada estante, havia uma pequena tábua de madeira, com dizeres que rementia à sabedoria, mas apenas uma, chamou a atenção de Vincent: A TUA PALAVRA É LÂMPADA QUE ILUMINA MEUS PASSOS, E LUZ QUE CLAREIA O MEU CAMINHO.
— Achei que me mostraria o seu tesouro, Sr. Harrington! — Vincent provocou. — Sabes? Moedas e cálices feitos de ouro, diamantes... Aqui só tem livros velhos.
— Tolice, jovem! Che cosa! Este é o maior tesouro que terás: o conhecimento! — Ergueu o castiçal, iluminando ainda mais o quarto.
— E por que um antigo Assassino, teria uma biblioteca tão cheia de livros? — Vincent provocara novamente o vecchio.
— Assim ofende-me, bambino. Acaso achas que eu era um facínora qualquer? Um ser humano não é nada, se não tiveres um pingo de conhecimento! — demonstrou com o dedo indicador e o polegar semi fechados, quase como se segurasse uma moeda invisível. — O povo perece por falta de conhecimento!
Andejou até a estante mais próxima, tomando cuidado para não tropeçar nos volumes jogados e pilhados no chão, e deu a Vincent um livro muito antigo de capa de couro, muito empoeirado, na cor púrpura, e letras em baixo relevo, em um tom prateado.
— Crônicas de Um Coração Partido... — Vincent leu o título em voz baixa.
— Leia! Mais vale um jovem sábio do que um velho tolo!
Os olhos escarlates de Vincent pareciam brilhar, mesmo à luz daquelas velas. Pôs o livro debaixo do braço, grato pelo presente.
— Vamos dar um passeio pelos arredores. Esse quarto está deveras empoeirado, e minhas narinas não aguentarão mais um minuto aqui! — Apoiou a mão no dorso de Vincent, empurrando-o devagarinho para fora do quarto escuro.
(...)
Foram para a campina que ficava detrás do casarão, e Vincent contemplou um enorme campo de papoulas, flores de pétalas delicadas, grandes e vermelhas, assim como seus olhos. Mas ao longe, podia visualizar com perfeição o domo alaranjado da catedral de Santa Maria del Fiore, e as casas que cercavam a catedral, e mais além, a cadeia de montanhas que separavam a província. Florença era linda e soberana. Sua cidade e seu flagelo.
Harrington apoiou-se na bengala, pondo-a frente ao corpo, como se fosse um sentinela. Olhava para a cidade com apreço, como se fosse uma pessoa amada que devia proteger.
— Quem são os Illuminatos? — Vincent indagou, não mais segurando a curiosidade que parecia queimar a língua.
— Os Illuminatos — Harrington coçou a garganta com um pigarro, — são membros de uma seita formada há séculos, e desde então, os Assassinos vem tentando impedir seus planos. A época das Cruzadas fora a mais sangrenta para ambos os lados. Não há bons ou maus em ambos os lados, apenas pessoas com objetivos distintos. Porém, os Illuminatos tem mostrado-se trapaceiros nesta luta. — curvara a cabeça, fitando o pequeno menino ao seu lado.
Vincent sentia a energia percorrendo seu corpo. Batalhas e lutas árduas, pessoas combatendo interesses errôneos, era estimulante e perigoso ao mesmo tempo. Uma aventura da qual poderia tirar glórias ou derrotas.
— E o que eles desejam?
— Poder! — Exclamou. — Mas, acima de tudo, o controle sobre o destino da humanidade. Afinal, quem tem poder controla tudo. Esses bastardos agem como esfomeados. Maledettos! Nunca estão contentes com o prato principal e já desejam meter as mãos na sobremesa.
Harrington silenciou-se, mas já era tarde, pois Vincent parecia ter sede por mais informações.
— Gostaria de saber mais, Sr. Harrington.
— Começarei pelo mais básico possível, para não confundir tua cabecinha de criança. Os Illuminatos acreditam que um dia, uma criança escolhida pelos seus deuses, guiará a humanidade em uma era de bonança.
Vincent estava curioso e aflito para saber mais daquela história.
— Não apenas isto, mas os Illuminatos acreditam piamente que foram escolhidos pelo destino, para expurgar os pecados da humanidade. Sabes o que significa expurgar, meu caro?
Vincent negou novamente, envergonhado por não ser tão sábio e polido com as palavras como Harrington.
— Céus! — Harrington dissera com gravidade, meneando a cabeça. — Estou pasmo por não conhecer tal palavra!
— Sou apenas uma criança! Tem muita coisa que não sei!
— Isso não é desculpa! — Levantara o dedo indicador — E jamais use tua idade como desculpa para algo, ouviu-me?!
O jovem dera de ombros, gravando as palavras de Harrington, vendo as papoulas mexerem-se com o movimento da brisa. Harrington prosseguira em seu colóquio.
— Para os Illuminatos, quando o homem e a mulher pecaram no paraíso, depois de descobrirem os segredos do bem e do mal, e Deus os expulsou do Éden, este exato momento é tido como louvor para os Illuminatos, tanto é que o símbolo maldito de sua seita é uma cobra enrolada em uma maçã. Para eles, fora quando o homem finalmente abrira os olhos e deu as costas ao verdadeiro Deus, para louvar deuses de pedra feitos por mãos humanas, que o conhecimento dominou sua mente.
Vincent continuou em silêncio, permitindo que Harrington continuasse a falar.
— Cada um de nós carrega essa semente que enraizou-se em nossos ancestrais. A vontade obscura em almejar o desconhecido ao ponto de perder nossa alma. O que eu quero que entendas é que, para os Illuminatos qualquer falácia pode tornar-se uma arma a seu favor.
— E por que não impedem os Illuminatos de uma vez?
— Os Illuminatos infiltraram-se em tudo que conhecemos desde a arte, música, literatura, e transformou tudo isto em corrupção. Todos que caem em suas garras tornam-se marionetes pronta para ser manipulada. Um fabuloso banquete de ignorância a ser servido, caro Vincent.
— Os Assassinos são importantes para o senhor, não são?
— Devo tudo a eles. Está vendo esta minha bengala? — suspendera a ponta e girou-a, relevando uma lâmina escondida dentro da mesma. — Um presente da qual tenho muito carinho.
— Sr. Harrington, sobre a proposta que me fez... — fechou a mão, apertando o couro do livro contra os dedos finos, com medo de levar uma repreensão. — Eu não quero matar ninguém! Deve ter alguma maneira de fazer justiça. Eu não sei... se serei igual ao meu pai.
— Bom, ao menos teve coragem para dizer-me isto.
Harrington dera meia volta, e Vincent pode respirar aliviado. O vecchio não ralhara e também não parecia zangado.
— Vincent — Harrington chamou o nome do garoto, ainda de costas —, a necessidade faz o homem.
— O que isso quer dizer?
— Um dia entenderás, e quando entenderes, verás que tenho razão. — Abriu um sorriso para o garoto — Mas, por enquanto, agiremos de acordo com a tua idade. Tens quantos anos?
— Dez.
— Esplêndido! Farei questão, ainda nesta semana, em colocar-te em uma escola.
Ir à uma escola sempre fora um dos desejos de Vincent, todavia sua mãe jamais deixara pois temia o que os outros garotos fariam com os filhos, acaso vissem a cor de seus olhos.
— Senhor Harrington, tenho mais uma pergunta.
— Pois faça-a.
— O sobrenome do meu pai... — Vincent sentiu o rosto esquentar. Era relevante para ele. — pode me dizer?
O vecchio dera um meio sorriso. Era uma pergunta tão óbvia. Tão infantil.
— Blackheart. Dimitri Blackheart. Significa "Coração Negro" em tradução literal.
Vincent engoliu em seco. Blackheart. Sentiu o poder que emanava daquele sobrenome. Assim que Harrington adentrou o casarão, Vincent sentou-se no campo de papoulas, e depositou o livro que carregara consigo sobre as coxas. Folheou algumas páginas, todas bem conservadas, com letras firmes e legíveis e dera início à leitura.
— Capítulo um: não se gabe do dia de amanhã.
✦
O vecchio balançava levemente a taça entre os dedos, com o vinho, mirando o néctar dos deuses. Estava na saleta do casarão, meditando, taciturno. Tantas coisas passavam em sua mente naquele exato momento de silêncio. As aventuras que vivera, as missões que cumprira, tudo era passado agora. Fora um jovem tão vívido e alegre, tão galanteador e amante de belas mulheres, e no presente momento, estava farto e decadente, com a incumbência de cuidar do filho do falecido amigo.
— Vida, vida — contemplava o vinho, girando delicadamente a taça —, és mesmo uma senhora puttana.
A idosa senhorinha italiana que nada falara durante aquelas horas que passaram, achegara-se ao seu senhor, com passadas ágeis para uma senhora de sua idade. Inclinou a cabeça, olhando o distraído Harrington que fitava a taça de vinho, como se esperasse que todas as respostas para as suas dúvidas, surgisse dali.
— Com licença, meu senhor, posso conversar sobre algo? — Gertrudes interpelou em uma voz mansa.
— Diga, Gertrudes.
— Senhor, desejo falar sobre Vincent — pôs as mãos frente ao corpo. — Soube que fez uma proposta para ele, para tornar-se um justiceiro sem nome.
Gertrudes não ousava chamá-los de Assassinos. Considerava que tais pessoas faziam boas ações em demasia, para serem chamados de uma nomenclatura tão burlesca.
— Ele lhe contou?
— Não, senhor.
— Os criados falam demasiado.
— Não, os criados também nada me falaram. Eu escutei a conversa de vós. — pendeu a cabeça, constrangida por ouvir prosas alheias detrás das portas. — Só diga-me que Vincent não vai se machucar.
— Nada prometo, Gertrudes. Ele é como um diamante bruto, recém extraído da pedra. Vincent precisa ser lapidado, e aos poucos, encontrará seu verdadeiro valor — olhou para a governanta que ainda permanecia inexpressiva. — Porém, em meio a todo este processo, pode ser que ele se machuque.
A governanta fizera o sinal da Santa Cruz, a fazer uma prece em uma voz quase pífia. Retirou apressada da saleta, a continuar com a sua prece. Harrington fora puxado, mais uma vez, para as lembranças tortuosas do passado. Sangue, fracassos, lágrimas, sofrimento. Se Vincent escolhesse pertencer àquele caminho, teria que aprender a conviver com lembranças ruins do passado, superar a dor, e principalmente, apagar qualquer rastro de sentimentalismo em sua vida.
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