Capítulo 33
Explicações no fim do capítulo...
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— Algo errado, major? — perguntou-lhe o príncipe.
Isidora meneou a cabeça. Olhava para um corredor vazio. Sentia-se neurótica.
— Não, Vossa Alteza. Apenas pensei ter ouvido alguém — Isidora repousou a mão na nuca. — Devo estar neurótica... — dissera baixinho, para que Lorenzo não a ouvisse.
Sim, neurótica. Não apenas isto, mas também estava ficando sem tempo. Deveria partir outra vez em sua patrulha e enfrentar o perigo. Abaixou a cabeça, e viu uma boneca de milho no chão. Apanhou-a e guardou-a junto de si.
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Novamente, Mileide estava atrasada. Enquanto a esperava, Vincent fitava a teia de aranha com gotas de orvalho, presa entre os caibros do estábulo, e passeando pela teia, uma aranha peluda e grande. Algumas pessoas tinham um medo gigantesco e até irracional por aranhas. Com Vincent não era diferente. Também tinha certo medo de aranhas. Mas aquele não era o seu maior medo. Havia um temor maior do que de meras aranhas. Uma visão fúnebre de seu futuro consumia-o. O medo de morrer sucumbindo em dor, sozinho, afogando-se em uma poça de seu próprio sangue...
Escapara da morte tantas vezes que ao pensar nela, tornava-se algo banal.
Deu atenção aos passos apressados vindos detrás dele. Era Mileide correndo em sua direção. Trajava a mesma roupa — corpete, camisa e saias — dos treinos (com exceção de um manto puníceo sobre os ombros), o que logo fez Vincent sentir-se demasiado arrumado comparado à desleixada menina. Notou que envolta do torso da garota havia um bisaco. Lembrou-se das bonecas de milho que a Flor Selvagem pretendia vender na cidade. Céus, que ela não o convencesse a vender aquelas coisas na rua. Seria impudico.
— Atrasada, como sempre.
Vincent desconversou. Sequer deu-se ao favor de descruzar os braços. Olhou-a bem. O rosto estava em brasa e os olhos brilhantes, como diamantes negros. Decerto, estava outra vez com a cabeça nas nuvens a pensar no príncipe romano. E aquilo o incomodava.
— Desculpe-me.
— Sabes cavalgar?
— Desde menina, Sr. Vincent.
Deu o assunto por encerrado. Temia que Vincent descobrisse sua linhagem. Logo ela que há tempos, não considerava-se mais como a filha de um marquês. Mileide andou até a baía de um dos cavalos, puxando com o cuidado o alazão pelas rédeas.
— Que estranho. Dracone deveria estar aqui a tomar conta dos cavalos.
— Ao que parece, o cavalariço tirou uma manhã de folga.
— Faz algum tempo que não o vejo — Mileide dissera antes de montar no cavalo. — Logo ele, que tanto ama esses corcéis.
Montaram nos cavalos e partiram para a cidade.
Observando-os partir estava a duquesa de Florença. Brígida viu atravessar os portões montada no cavalo junto ao atalaia. O atalaia de olhos rubros. Deveria ser seu. Aqueles cálidos olhos vermelhos que abrasavam sua alma, envolvendo-a em pensamentos de pura luxúria. Ardeu-se em um ciúme doentio somente por imaginá-lo na cama com outra, talvez, uma mulher mais jovem e mais fogosa. Pensou em Mileide. Certamente a empregadinha desqualificada estava dormindo com ele. Tal concepção enfureceu Brígida. Acaso já não havia a alertado para não desafiá-la, ou ter falsas esperanças de que poderia escapar de sua fúria? Sorriu, diabólica, ao consolar-se por lembrar que era a poderosa duquesa de Florença. Ninguém tiraria aquele desejo ardente dela que lhe consumia a carne e os ossos.
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Durante o percurso pelo bosque, passando por trilhas estreitas e paredes rochosas, Mileide observou pendurado no pescoço de Vincent um pequeno objeto prateado que brilhava na luz do sol. Tinha o formato exato de uma asa. Pensou ter visto errado, vide que o rapaz sequer demonstrava crer em algo.
— Tens fé, Vincent? — perguntou-lhe em um timbre simpático.
Como se tivesse sido puxado à força de seus devaneios para a realidade, Vincent olhou ligeiramente confuso para a garota no cavalo.
— Vi que carrega um belo pingente contigo. — Mileide apontou para o próprio peito.
Escondeu-o com rapidez. Os olhos de Vincent permaneciam focados na estrada, carregados de uma dor tão diáfana que era possível enxergar uma brecha de fraqueza no atalaia de coração endurecido. Até então, Mileide achava que conhecia muito bem seu mentore e companheiro de viagem. Não era ele o rapaz estoico e calculista? No entanto, ao referir-se ao singelo pingente prateado de asa, notou nele um semblante doloroso de contemplar. E por alguma razão insólita, vê-lo daquela forma, mergulhado em seus pensamentos de pesares, a guiava para uma época diferente. Havia alguma coisa no rapaz de olhos rubros que a atraía. Mas logo repelia tal sensação por lembrar-se da figura do doce Lorenzo.
— Tenho a impressão de quem lhe deu isto, era uma pessoa especial. — continuando a garota a esperar que ele falasse alguma coisa.
Direcionou seu olhar para Mileide. Diante daqueles olhos intensos e questionadores, a cólera de Vincent dissipava.
— Perguntaste se eu tenho fé.
Mileide anuiu.
— Fé é fundamentar suas esperanças em algo vindouro e esperar pelo melhor. Ter fé é um dom e acredito não possui-la.
— Desculpe-me — dissera Mileide. — Havia visto em ti, por um segundo, um sinal de diferença, uma outra faceta sua. Acho que enganei-me. És o mesmo atalaia de sempre. Incrédulo e frio.
— Não tenhas esperanças em ver nada além disto.
— Tenho minha própria forma de ver o mundo. E não creio que sejas essa carapaça de homem frígido e distante.
— Boa sorte, Flor Selvagem, em tentar desvendar o meu verdadeiro eu. — afirmou, friamente.
— Não se preocupe. Não desistirei de encontrá-lo. — sorriu com doçura.
Assim que chegaram a cidade, foram surpreendidos pelo som de tambores, pífaros e alaúdes. Desceram do cavalo e Vincent pagou quatro moedas de ouro a um mancebo — por certo cavalariço — para ficar de olho nos cavalos.
— Está tudo tão lindo. — Mileide muito admirou-se.
Uma pequena garota aproximou-se dela, e tocando a orla de seu vestido, ofereceu-lhe uma coroa enfeitada com rosas amarelas. Mileide curvou-se, e como uma princesa, foi coroada. Outras meninas achegaram-se à ela e puxando-a pela mão, convidavam-na silenciosamente para fazer parte de sua roda de dança.
Estranhamente, um garotinho que estava ao lado de Vincent, repassou-lhe um pequeno papel e correu antes que pudesse ser questionado.
Abriu o papel e leu.
— Pagando moleques de rua para entregar recados. Típicos de Assassinos. — Guardou o bilhete, sendo importunado por Jervaise, que espalmou a mão sobre o dorso de Vincent a distribuir sorrisos calorosos para o amigo.
— Se eu fosse um assaltante, ficarias sem reação.
— Se tu fosses um assaltante, ficarias sem os dentes.
— Não pensei que fosse ver Barbatana, em carne e osso, na Festa da Lua Nova. Quase não o reconheço trajando estas vestes parvas. Lembra-te de quando éramos ladrões e roubávamos a comida que sobrava no fim do festival?
— E aquele garotinho?
— Moleque de recados. Incrível como são espertos. Disse-me que darias o bilhete por um faisão abatido e uma porção de maçãs vermelhas.
— O que queres, Jervaise? — desconversou, afastando-se do loiro risonho.
— Repassar as informações do Clã para ti — suspirou, perdendo os dedos em meio aos cabelos desgrenhados. — Torturamos Rubens ao limite. Cortamos seus dedos, quebramos seus dentes, sua face é uma massa grosseira de carne e sangue, e nada do maldito Illuminato confessar.
Vincent tornou-se pensativo. Olhava para Mileide que dançavam alegremente com as crianças. Uma mão segurava a coroa de flores e a outra, segurava a ponta do saiote. Os pés ligeiros em sincronia com a música. A alegria da simples e ingênua Mileide assemelhava-se à ela, quando era viva, quando encantava Vincent com sua voz e seu jeito único.
— Rubens irá morrer sem confessar, estou certo? — dirigiu-se ao amigo, sem tirar os olhos da garota que bailava.
— Para que tanto reboliço, não és mesmo? Rubens nunca irá escapar da Fortaleza e mais cedo ou mais tarde, ele irá confessar onde estão os outros.
— Sim, eu espero.
— Trates de se divertir. Tire a tua amada para dançar. Aproveitem.
— Ela não é minha amada. — Vincent aborreceu-se.
— Tem certeza que não? Não tiras os olhos dela.
— Jervaise, cale esta boca.
Jervaise levantou ambas as mãos, sem desfazer o intrínseco sorriso de sua face. Adentrou entre a multidão calorosa e sumiu, tão misteriosamente, quando tinha aparecido.
De repente, foi puxado pela lapela do casaco. Quase desequilibrou-se. Olhou a pequena garota de cabelos negros enfeitados por flores. Deteve-se nos passos, enquanto ela o puxava insistentemente.
— O que pretendes, Flor Selvagem?
— Dance comigo, atalaia. — puxava-o pela manga da camisa.
— Não.
— Por favor, dance comigo.
— Não sei dançar, Flor Selvagem.
Mileide sorriu, sentindo-se vitoriosa.
— Ora, me ensinastes a usar espada, então, te ensinarei a dançar.
Um rapaz achegou-se ao casal e assustou um pouco com a cor dos olhos de Vincent. Trêmulo, amarrou no pulso de ambos, um fio comprido de lã escarlate.
— O que raios é isto? — Vincent sacudia o braço, em uma vã tentativa de libertar-se.
— Se chama "Dança da Lótus Vermelha". Devemos dançar, sem desatar o nó.
— Não vejo lótus vermelha em parte alguma.
— É só o nome da dança — sorriu. — Não seja tolo.
Repousou a mão sobre a cintura da jovem, perdendo-se em seu olhar confiante.
— Só tome cuidado para não pisar no meu pé. — Mileide o alertou.
— Demasiado difícil.
Uma lufada de regozijo preencheu a alma de Vincent, trazendo consigo instáveis lembranças de um passado secreto.
— Não me divirto assim há tempos — Mileide rodopiava nas mãos de Vincent.
Ele também não se divertia há tempos, porém era mais difícil para confessar. Parou de dançar, impedindo que aquela alegria aquecesse seu coração lúgubre. Desatou o nó, entregando o fio escarlate para Mileide. Necessitava de espaço e ficar longe do cheiro suave daquela garota. Afastou-se e ela não atreveu-se a segui-lo. Por um segundo, em meio a sua alucinação repentina, pensou ter visto um vulto familiar em meio à multidão. Um ser encapuzado de olhos de sangue...
Quando retornou à Mileide, encontrou-a conversando com um garotinho. Acalmava-o a todo instante e este não parava em desatar a chorar. O pequeno garoto deveria estar em idade de alfabetização. Suas vestes implicavam que deveria ser filho de alguém da nobreza. Fungava muito e os olhos estavam inchados. Nas bochechas, rastros de lágrimas secas.
— Fique calmo, garotinho — Mileide dissera em um tom maternal. — Onde está tua mamãe, querido?
— Eu não sei! Eu quero a minha mamá! — abriu um berreiro.
Vincent retorceu os lábios, desprezando o pequeno garoto que não parava de soluçar e esfregar as mãos no rosto, espalhando lágrimas nas bochechas sujas. Não que detestasse crianças, mas a maior parte do tempo, foram crianças que lhe deram nomes horríveis e lhe excluíram do círculo de amizades. Abominato. Aaron o chamava de abominato.
— Eu quero a minha mamá! — o garoto chiou outra vez.
— Está tudo bem, querido. Não vamos lhe fazer mal. — Mileide mergulhou os dedos no cabelo rebelde do menino, fazendo-lhe um afago. — Sou Mileide. Como te chamas?
— Zeno.
— Zeno? Que nome bonito. Quantos anos tem, pequeno? — Mileide questionou-o com sua voz dócil.
— Seis — mostrou a ela, os cinco dedos da mão aberta, levantando mais um da outra mão.
— Ah, então já és um rapazinho. — sorriu para o garotinho, esperando ganhar sua confiança. — Zeno, podes me dizer como te perdestes?
— Eu não sei.
O pirralho continuava a chorar, o que somente colaborava para a falta de paciência de Vincent. Mileide o carregou em seus braços. Muito choroso, o garoto atracou-se no pescoço dela.
— Precisamos encontrar a mãe deste garotinho.
— Tu vais atrás dela, então. — deu meia-volta.
— Espere — Mileide chamou, estupefata, — pensei que não fosse tão insensível.
— Escutes, Flor Selvagem, só concordei em trazê-la até aqui, porque tinha algo a ver com aquelas estúpidas bonecas de milho.
— Tudo bem. Eu encontro a mãe de Zeno, sozinha. — dissera a última palavra com ênfase.
Vincent detestou-se por ir atrás dela. Era uma espécie de culpa avassaladora. Era perigo deixar uma adolescente e uma criança andado sozinha pelas vielas de Florença, visto que sol estava se pondo.
— És deveras teimosa, Flor Selvagem.
— Não, sou apenas determinada.
—Deixe-me ao menos carregá-lo.
— Ele não é um saco de batatas, atalaia. Zeno é uma criança. Duvido se sabes lidar com crianças.
Deslizou o pé sobre um pedregulho no caminho e por pouco ela não caiu.
— Deixarás que eu o carregue agora?
Contra seu gosto, Mileide consentiu em lhe entregar o garoto. Vincent o carregou nas costas. Zeno continuava com seu choro e Vincent estava quase certo de que o garotinho ensoparia a parte de trás de seu casaco.
— Andar a pé por estas ruas é tolice. Voltemos aos cavalos. — sugeriu Vincent.
Regressaram aos cavalos que haviam sido deixados nas mãos do jovem cavalariço. Zeno agarrou-se em Vincent, quase sufocando-o, tendo que ser acalmado por Mileide.
— Está tudo bem, querido. O levaremos para casa.
— Ao menos esse pirralho faz ideia de onde fica sua casa? — Vincent dissera, irritado.
— Não fale assim com ele. — Mileide ralhou.
Voltou-se para Zeno, muito docemente, colocando-o sobre o cavalo.
— Sabes onde mora, não sabes?
— Sei — Zeno assentiu. — Moro em uma casa.
Vincent revirou os olhos. Grande ajuda aquele pirralho estava lhe dando. Uma informação deveras inútil.
— E o que mais, Zeno? — Mileide pediu gentilmente. — Como é a tua mamãe?
— Muito bonita — Zeno respondeu.
Vincent bufou.
— Isto é perda de tempo.
— Se não quiseres ajudar, ótimo — Mileide montou no cavalo, aconchegando Zeno.
Derrotado, restou a Vincent segui-los.
Cavalgaram muito, e em silêncio, teve de escutar Zeno tagarelando com Mileide, ou como a moça mudava de temperamento diante do pequenino. De uma Flor Selvagem e espinhosa, tornava-se mansa e gentil.
— Tens certeza de que é aqui que moras, Zeno? — Mileide interrogou-o.
— Sim, sim — Zeno alegrou-se. — É aqui.
Chegaram a uma mansão de tijolos brancos e portões recém restaurados. Zeno agitou-se no cavalo de Mileide e quase caíra dele, se ela não o tivesse segurado a tempo. Na varanda da mansão, uma donzela parecia aflita, andando de um lado a outro.
— Mamá. — gritara Zeno.
Assim que viu o garotinho no cavalo, a mulher escancarou os portões e saiu para abraçar Zeno. Tomou em seus braços e de forma alguma o soltou.
— Onde estavas, Zeno? — beijou-lhe o alto da cabeça. — Ah, meu filho, quase morro de angústia pensando que tivesse sido raptado.
— Me perdoa, mamãe.
Só então, a donzela deu atenção ao casal que trouxera seu filho de volta. Repeliu a jovem maltrapilha e deu atenção somente ao jovem galante.
— Obrigada por trazer meu filho de volta.
— Não agradeça a mim — Vincent dissera grosseiramente. — Esta jovem que prontificou-se em ajudar e se revestiu em coragem.
Reparando a gafe que cometera, desculpou-se com Mileide e lhe agradeceu.
Esperaram ver Zeno adentrar sua casa, e somente então, Mileide sentiu que cumprira seu dever. Estava pronta para regressar à mansão.
— Sequer conseguir vender minhas bonecas, mas não importo-me. Tudo acabou bem para Zeno, não achas? — puxara assunto com o companheiro de viagem.
— Poderia ter acabado mal. Não parastes para pensar que aquele menino era alguma isca? Ficarias tão encantada por ele, que não verias que estava a cair em uma armadilha de ladrões.
— Por que só pensas o pior, Vincent?
— Porque o mundo é cruel e todo cuidado é pouco.
Mileide ficara cabisbaixa após o último comentário do atalaia. Sentia que mesmo fazendo a coisa certa, estava fazendo-a do jeito errado.
— A propósito — Vincent continuara —, és ótima com crianças. Certamente serias uma mãe maravilhosa.
— Tu achas?
— Acho.
Ela corou.
— Eu sabia — Mileide agitou os braços para o alto. —Sabia que não eras insensível. Vincent, o atalaia do duque, tem coração de manteiga.
Uma coisa Vincent aprendera naquele dia: a Flor Selvagem entendia muito bem como ser encantadora.
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Alguns adendos:
♣Essa versão terá bem menos capítulos que a versão anterior. (sad but true)
♥Uma amiga minha do Wattpad me contactou que está desenvolvendo uma fanfic relacionada a BRAVURA, adivinhe sobre quem? Pois é. Será uma surpresa para meus queridos leitores. 😘
♠A dança da lótus vermelha é uma invenção minha.😊
♫A música lá em cima se chama Pale do "Within Temptation" mas é a versão instrumental.
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