Capítulo 22
🚨AVISO: O CAPÍTULO CONTÉM DESCRIÇÕES FORTES, QUE PODEM SER PERTURBADORAS PARA ALGUNS LEITORES.🚨
— Conte-me sobre meu pai — exigira Vincent.
Sameque ajeitou-se confortavelmente na cátedra, fechando os olhos fatigados. Fumava um cachimbo de extremidade longa e soltava fumaça pelas ventas. Falar sobre Dimitri era fazer uma viagem intrínseca e pessoal ao passado.
— Seu pai foi o melhor Assassino que já existiu, meu caro rapaz. Uma lenda viva entre nós e mesmo com tão pouca idade foi capaz de eliminar alvos perigosos. — Sameque abriu um sorriso doloroso. — Temido. Admirado.
Um sufoco fulminante abrasava o tórax de Vincent. Ouvir aquelas verdades sobre seu pai era pior do que nunca saber sua presença. Dimitri foi tudo aquilo que ele jamais seria.
— Se ele foi um herói tão admirável... — sua voz saiu baixa e amarga. — porque não salvou a minha família?
— Oh, caro Vincenzo, não o culpes. Dimitri fez o impossível para salvar seus entes queridos.
Vincent imprensou o maxilar com força, trincando os dentes.
— E quanto ao pupilo dele? O garoto que ele treinou?
— Malquior foi o resultado do peso da culpa de Dimitri. Seu pai matou a família de Malquior, uma família de Illuminatos, mas apiedou-se do garotinho. — Sameque abriu um pouco as pálpebras. — Timóteo sempre alertava-o sobre Malquior, mas Dimitri via no pequeno traidor, um prodígio. Enxergava nele algo bom.
— O que sabe sobre os Quatro Cavaleiros? — Vincent tinha sede por respostas, ler os manuscritos do pai apenas causavam mais e mais perguntas.
— Apenas sei que são sinônimos de destruição. — Sameque deu uma baforada para cima. — Representam a guerra, fome, pestes e morte. Para a Seita dos Illuminatos eles são os homens santos, que limparão a terra eliminando os impuros. Ainda está confuso, Vincenzo?
— Não — respondeu secamente. — Estou com raiva.
— Raiva?
— Sim, raiva de meu destino que insistes em tornar-me como Dimitri! — cerrou os punhos. — E agora, somente penso em vendettas. E depois? Será se terei uma morte trágica igual ao do meu pai? Já contemplei pessoas que eram importantes para mim, morrerem frente aos meus olhos. Às vezes penso que minha existência, tem de serventia apenas para que eu sofra ainda mais. — em todo instante sua voz permaneceu calma.
— Sim — concordou Sameque. — Entendo a sua aflição. Porém são questões que tampouco sei como respondê-las. Matar os Illuminatos não te trará paz e não fechará tuas cicatrizes. Mas pode impedir que tua dor e dúvida se prolongue.
Vincent permaneceu calado. O som do vento passeava pelo salão, balançando as tochas a multiplicando suas sombras.
Seu coração ansiava em acertar a oferta.
Torne-se um falso atalaia e mate quantos puder.
Mas a mente refreava-o.
Não existe apenas esta escolha.
Uma batalha interna e intensa.
Honre a memória de tua família.
Sim, elas morreram em vão.
Lembre-se de Esmeralda.
Tão jovem e alegre, morta de forma cruel.
O teu Mentor, Vincent, que tanto esteve ao teu lado.
E lhe ensinou segredos, truques, moldando-o para ser um matador.
Conndanare un Assassino.
A emoção venceu a razão. O vislumbre de matar aqueles que destruíram sua vida era grandioso. A resposta estava ali o tempo todo e enquanto fosse vivo, disso tinha certeza, nunca teria paz.
— E a sua resposta? — Sameque indagou com paciência.
Uma única lágrima correu pelo rosto de Vincent. Enxugou a marca de sua fraqueza que insistia em trilhar pelo rosto.
— Eu aceito.
— Ótimo! Sua afirmação em muito me alegra. Prepare-se de corpo e alma para agir e ser, como um atalaia.
Sameque soltou mais uma baforada e estalou os dedos. Um Assassino adentrou o grande salão, com uma pequena almofada de veludo nas mãos, na qual continha um pergaminho ocluso por uma fita de seda e um anel de ouro. Sameque pegou cada um dos itens.
— Esse documento é um apócrifo, falso. Nele estão escritas palavras forjadas do porquê o atalaia desistiu do cargo e tu o substituístes. Será teu passaporte e passagem de boas-vindas ao mundo da nobreza.
— E se não acreditarem em mim?
— Uses este anel, para comprovar a veracidade do documento. É o anel do atalaia morto. — inclinou a peça dourada para Vincent.
Vincent segurou o anel e o analisou. Ouro puro. Como enfeite, uma pedra turquesa quadrada. O pôs no dedo anelar da mão esquerda. Serviu como uma luva.
Sob a sombra das asas de uma águia, aceitou sua insólita tarefa.
✦
Mileide apertava as fitas do corpete. Mais um longo dia de trabalho na taberna a esperava. As mãos trabalhavam no automático enquanto a mente vagueava, lotada de pensamentos confusos e acima de tudo, não conseguia esquecer a lembrança do beijo do desconhecido. Mesmo depois de ter se passado dias, e não ver nenhum sinal do infeliz na taberna de Frieda, Mileide não conseguia esquecê-lo. Deveria ter o estapeado, o mordido, feito algo para machucá-lo. Odiava por não ter feito nada. Ainda podia sentir a pressão dos lábios molhados dele nos seus. Por que ele havia feito aquilo? Por que a beijou de forma tão rude e ao mesmo tempo, suave?
Céus... aqueles olhos... Havia sonhado com aqueles olhos!
Amarrou as fitas do corpete, unindo-as, formando um laço. Deslizou o pente pelas curtas mechas, alinhando-as. Quase um ano trabalhando para Frieda e mesmo assim, Mileide não tinha nada de valor carregando consigo. Dormia em um quarto escuro e pequeno, com um colchão revestido de palha. Havia um baú velho no canto do quarto, onde Mileide guardava os vestidos que Frieda lhe presenteava. Eram verdadeiros trapos, mas Mileide fazia questão de agradecer. Suas condições não eram melhores de quando trabalhava na mansão, porém na taberna, Mileide sentia-se livre. Era livre.
— Ei, garota! — a voz de Frieda preencheu o quarto.
A face da taberneira era pálida como se tivesse visto o diabo à sua frente.
— Oh, desculpe-me — Mileide penteava os cabelos mais ligeiramente. — Devo estar atrasada.
— Não — Frieda meneou as mãos. — Não é isso. Tem uma senhora ordenando vê-la.
Mileide engoliu em seco e tinha a absoluta certeza que a tal visita repentina seria de seu desagrado.
Andou desconfiada, em direção ao salão da taberna e seu coração, por pouco, não saiu pela boca com o grito que soltou ao contemplar a duquesa Brígida, em pé, escoltada pelos sentinelas. Frieda parecia animada com a presença de uma mulher tão ilustre e da alta sociedade, em sua taberna, contudo tal alegria sumiu quando a duquesa lhe lançou um olhar afiado.
— Poderia dar-me licença para conversar com esta garota? — a duquesa dirigiu a palavra à Frieda sem tirar os olhos de Mileide.
— Oh, sim.
A taberneira, muito hospitaleira, guiou a jovem cozinheira e Brígida Amadeo para seu depósito, que nada mais era que uma sala onde haviam vários barris com rum e cobertos de teia de aranha. Era o único lugar na qual poderiam conversar sem ser interrompidas.
Ao adentrar o lugar a duquesa tratou de circular a sobrinha do marido. Sua postura ereta, soberba. O olhar repleto de veneno. A cauda do vestido carmim com detalhes em pérolas arrastava-se após ela, e Mileide não conseguia deixar de sentir uma pontada de admiração diante da nociva mulher.
— Parece que encontrei o esconderijo da ratinha.
— C-como descobriu onde eu estava? — a cabeça de Mileide girava. Uma náusea repentina veio à boca.
— O mundo é um lugar tão pequeno. — passou o dedo indicador sobre um dos barris, enojada com a quantidade de pó naquele lugar. — Achas que eu sou alguma idiota?
— Não, duquesa — Mileide apertava o tecido da saia. — Nunca pensaria que és algo do tipo.
— És uma sobrinha ingrata, Mileide — bramiu. — Seu tio lhe deu tudo e como recompensa, foges para esta pocilga imunda, vivendo no meio de bêbados, lançando o sobrenome da família Amadeo na lama. — elevou o canto dos lábios em um riso cruel.
— Sabe muito bem por que fugi — dissera baixo, quase sem voz.
— És como a tua mãe. São duas cretinas.
Mileide sentia o líquido salgado correndo pelo rosto.
— Prometo nunca mais cruzar o vosso caminho, duquesa. Agora peço-te para me deixar em paz.
— Ofende-me por pensar que estou importando-me contigo. Pouco me importa o que fazes com tua vida. Mas infelizmente, conquistastes meu marido e minha filha, que desde a sua fuga, lamentam-se pelos cantos da mansão do porquê fostes embora sem nada dizer.
— Sinto muito por fazê-los sofrer, mas não posso voltar, duquesa.
— E quem lhe disse que estou pedindo para retornares?
— Eu não... irei voltar?
— Lógico que voltarás! — berrou. — Seu tio está velho e fraco e se recusa a escrever o testamento sem a presença de sua preciosa sobrinha. — fitou Mileide que baixou a vista.
Cada palavra de Brígida poderia ser comparada à adagas furando sua carne bem lentamente. Brígida agarrou-lhe o braço, fincando suas unhas na pele de Mileide. Dolorosamente, puxou o braço das mãos da maldita mulher.
— Recuso-me a acompanhar-te!
— Irás para a mansão nem que seja agarrada pelos cabelos!
A duquesa saiu do cômodo, deixando Mileide na escuridão. Logo apareceram dois sentinelas do duque, marchando até a moça de semblante sério. Os guardas agarraram os braços de Mileide com demasiada força, arrastando-a para fora do quarto.
— O que estão fazendo? — Mileide relutava. — Soltem-me!
— Esta é a sobrinha do duque — Brígida falou. — Coloquem-na no comboio, sim?
— Por favor! Não quero voltar para a mansão! Solte-me!
Os sentinelas não a ouviam. Entregaram a jovem que muito gritava, quase arrastando-a pelo chão para outro guarda que os esperava no coche preto. Ela nem ao menos conseguiu despedir-se de Frieda.
Os minutos pareciam suspensos no ar enquanto o comboio sacolejava, jogando seu corpo de um lado a outro.
A porta abriu-se de uma só vez, e a luz do sol quase cegou-a. Haviam chegado.
Os sentinelas seguravam a jovem fugitiva, um em cada braço, impedindo-a de correr. Mileide debatia-se, relutando em entrar na mansão. Queria fugir. A fiera... ela retornaria para machucá-la.
Brígida havia tomado a frente, adentrando a mansão com um sorriso de triunfo. Mileide ainda lutava, tentando soltar-se das mãos ásperas dos guardas.
— Soltem-na! — ordenou uma voz de mulher.
Mileide agradeceu aos céus.
Contemplou uma Tarsila chorosa, que corria pelas escadarias, segurando a barra do vestido bufante, indo ao seu encontro, desvencilhando-se dos sentinelas a aconchegá-la em um abraço.
— Oh, minha prima! Por que fugiu? — repousava a mão no rosto de Mileide. — E ainda cortou os cabelos. — apertou-a mais uma vez em seus braços.
A voz de Mileide não saía de sua garganta. Queria pedir desculpas, mas não conseguia falar nada.
— Não me atrapalhe, Tarsila — Brígida ralhou. — Deverias estar descansando sua beleza, para que quando teu futuro marido chegar, fique deslumbrado.
— Mamãe! — segurou na mão de Mileide. — Não percebe como minha prima está assustada?
— Assustada estou eu, por tê-la resgatado de um bordel!
— O q-quê? Bordel? — Tarsila virou de chofre para Mileide.
— N-não... E-eu não... — enfim Mileide conseguia falar, e somente tropeçava nas palavras.
— Para onde está a levando? — Tarsila bravejou.
— Para o porão — Brígida estufou o peito, orgulhosa. — Lá é o lugar perfeito para ratinhas fugitivas.
— Não deixarei que faça isso! — Tarsila puxou o braço de Mileide, obrigando-a a subir o lance de escadas.
— Tens pena de uma criada?
— Ela tem o nosso sangue, mamãe! — Tarsila quase gritou. — Esquecestes? Apelarei para meu pai!
— Tarsila! Como ousa passar por cima de minha autoridade?
Tarsila subiu ainda mais rapidamente as escadas, puxando a prima pela mão. Correu para os aposentos do duque e abriu a porta de uma só vez. Benito jazia frente à janela, sentado em sua cadeira de junco com rodas.
— Tio... — Mileide aproximou-se devagar, incentivada por Tarsila. — Sou eu, Mileide.
— Meu coração se partiu, quando tu fugistes, Mileide — segurava nas mãos a sua antiga fita de cabelo. — Os pedaços ainda relutam em juntar-se.
— Tio, me perdoe... — Mileide correu até ele abraçando-o. — Eu nunca quis magoá-lo.
A mão cálida de Benito repousou em seu dorso. Acalentava-a como uma criança.
— Papai, não deixe mamãe castigá-la. — Tarsila suplicava.
— Sou somente um velho aleijado, preso em uma cadeira. Nada posso fazer, minha filha. — fechou os olhos. — Mas, conversarei com Brígida para que esqueça os tais castigos.
A duquesa não ficara feliz com a proibição do marido. Mileide merecia e deveria ser castigada.
Mileide nunca mais esqueceu a primeira noite que passou trancada no porão. Relembrou de sua amarga infância. Benito não podia intervir na onda de fúria da esposa. Mileide passou a madrugada em uma angústia interminável crescente no peito. Jazia inerte na escuridão, deitada no colchão frio e duro como uma pedra. O vento uivava pelas brechas na parede e de quando em vez, ouvia passinhos e guinchos pelo assoalho, o que somente fazia-a encolher-se ainda mais.
Quando amanheceu, a duquesa invadiu seus aposentos e tratou de acordá-la debaixo de exigências. Queria vê-la rastejar-se de agonia.
— Mileide, quero que sirvas o chá esta tarde para minhas amigas. — anunciou, pomposa, como se esquecesse por completo o ocorrido do dia anterior. — Todas estão ansiosas pelo casamento de Tarsila com o príncipe romano.
Mileide permaneceu cabisbaixa.
— Ah, e mais uma coisa — lançou sobre a garota peças de roupa amassadas e largas. — Vista suas vestes de criada. Não quero que minhas amigas vejam a sobrinha de meu marido, vestida como uma mulher que trabalha em tabernas.
O que a duquesa pretendia, exigindo que a sobrinha do duque fosse serviçal, em um chá de mulheres esnobes?
Humilhá-la, somente isto que Mileide conseguia pensar.
✦
E lá estava Mileide, trajando um vestido verde-escuro de mangas muito largas e compridas, cujo corpete branco era a única coisa que mantinha a vestimenta ajustada ao corpo. Pelo cheiro daquela roupa, fora tirada do fundo do baú, ou do corpo de alguma defunta. Como parte do uniforme, a duquesa ordenou a Mileide a colocar uma touca sobre a cabeça, que vedava as laterais do rosto. Achou-se ridícula com aquelas vestes.
— Quem és esta, duquesa? — perguntou a dama corpulenta de chapéu de muitas plumas róseas.
— Esta é Mileide. — replicou rancorosa.
A tal festa do chá era um inevitável pesadelo. Ali, em pé, servindo as mulheres tagarelas em vestidos com corpetes tão apertados que espremiam o busto, cujo olhar delas pareciam querer desvendar cada parte da alma da sobrinha fugitiva do duque. Achavam-na uma louca por fugir de um mundo tão reluzente quanto o ouro e tão perfumado quanto os lírios. Os olhares de Brígida alcançavam-lhe e Mileide de quando em vez, abaixava a cabeça, com uma insana vontade de fugir da mansão.
— Disseste que ela se chama Mileide? — indagou uma das damas que tinha uma vistosa verruga no nariz.
— Oh, então ela é a... — a outra madame escondeu o riso com o leque.
— Sim, minha amiga — Brígida segurou a pequena xícara de porcelana e o pires. — É ela!
Mileide sentia a face esquentar de ira e vergonha. Aquelas mulheres sabiam de sua fuga e pelo visto, ela era a chacota da sociedade. Contavam que a sobrinha do duque estava apaixonada e por isso que fugiu da mansão. Fora atrás de um homem que a enganou e roubou sua pureza. Arrependida, retornou ao lar. Em horas como aquelas, Mileide desejava falar toda a verdade. Toda ela! Dizer que aquela mansão era sua, que seus familiares usufruíam de sua herança, que a duquesa era uma pessoa de coração duro. Mas quem acreditaria em sua palavra? Era apenas uma menina de dezesseis anos.
— E você, Mileide? Quando pretende te casar? — retornou a perguntar a madame corpulenta de chapéu esquisito.
— E-eu? — Mileide arregalou os olhos. — Bem, eu não sei.
— Ah, minha querida, deves com certeza se casar. — dissera a dama de verruga no nariz. — A beleza um dia acaba e a solteirice fica para sempre.
— Mileide? Casar? — a duquesa ria com escárnio. — Ela não serve nem para ser a esposa de um granjeiro. Tão desajeitada e de aparência simplória. Duvido se segurarás o marido, com este corpo magérrimo.
Pare, por favor. Pare de me magoar! As mãos de Mileide tremiam.
— Ou, ela pode simplesmente enfeitiçar alguém da alta sociedade! — Brígida ria com deleite. — Deve ter o mesmo sangue de vadia da mãe.
Irritada, Mileide apanhou a xícara da madame corpulenta sentada à mesa e a jogou que — por muita sorte — continha chá frio no rosto da duquesa. As convidadas ficaram pasmas e boquiabertas com a reação da criada. Após o furor dissolver-se que o arrependimento caiu sobre Mileide. Era tarde demais para pedir desculpas. As damas ali presentes pouco a pouco levantaram-se da mesa, deixando Brígida e Mileide a sós.
— Du-duquesa e-eu não quis...
Ofendida, Brígida recebera Mileide com um feroz tapa. Indefesa, a moça arfava, vendo a face da mulher que tinha por tia, bloqueada pela cortina de seus cabelos.
— Como ousa envergonhar o nome da duquesa de Florença?! — Brígida berrava com a sobrinha do marido. — Isto é no que dá, quando se joga pérolas aos porcos! Ingrata!
A jovem de cabelos curtos e negros massageava o lado do rosto em brasa, fitando aquela que lhe afligia, com os olhos úmidos e magoados.
— Eu não quis envergonhar ninguém! Sou muito grata ao meu tio Benito, e não à você! — Mileide exprimiu entre dentes. — Tudo o que faz é depreciar a imagem de minha mãe e humilhar-me.
— Insolente! Se eu soubesse, teria lhe deixado apodrecer naquela pocilga!
— Por isso eu escapei! Eu queria fugir deste inferno! — elevara a voz, ficando ofegante. — Escapar de ti e das ofensas que joga contra mim! Por que odeia a minha mãe, duquesa? Por que me odeia? Por que faz de mim, o teu objeto de tortura?
Um fogo de ódio acendera-se nos olhos de Brígida. Odiava aquela garota, e a odiava ainda mais, quando tornava-se uma valente. Desferiu outro tapa, que fizera a palma de sua mão avermelhar-se.
— Levem-na daqui! — Sinalizara para os sentinelas, como se a enxotasse. — Quero lhe dar uma lição para que ela jamais esqueça, com quem está falando!
Mileide debatia-se, lutando contra os sentinelas que prendiam seus braços de tal forma que pareciam quebrá-los. A levaria para a tora, o maldito objeto de tortura adorado pela duquesa. A acorrentariam e a açoitariam. Aquela tora era conhecida por Mileide. Um dia, a duquesa havia encomendado aquilo para amedrontar as criadas, principalmente a sobrinha do marido.
Foram para os fundos da mansão. O coração de Mileide acelerou. Nunca havia levado um castigo físico tão grande. Seria chicoteada como uma prisioneira que paga um grave crime. Seria sentenciada por defender-se, por ter coragem.
— Vai aprender a respeitar-me, menina maldita! — enrolou o chicote na mão.
A parte de trás do vestido fora rasgada, deixando a amostra o dorso da garota. O barulho do chicote rasgando o ar seguiu-se com a dor que fazia as costas de Mileide sangrarem. A jovem gritou, arqueando-se, imprensando o rosto contra a tora. A duquesa perdera a compostura. Transformou-se em uma carrasca determinada a castigar infinitamente a garota com o impiedoso chicote. Estava louca de ódio. Esquecera o que o marido dissera. O castigo parecia não ter um fim, e Mileide sentia as forças lhe faltar.
— Mamãe! — Tarsila gritou. — Mamãe, pare!
— Esta maldita me desafiou, minha filha! — a duquesa gritava, descabelada. — Ela precisava de um castigo!
— Enlouqueceu, mamãe? — Tarsila amparava a prima. — Açoitaste Mileide! Que coisa deplorável! Desumana!
As amarras foram desamarradas, o corpo castigado fora coberto, mas a vergonha permanecia. Mileide escutou Tarsila gritar com a mãe. Gritava tanto, quase perdendo a voz. Estava desesperada por ver a prima naquele estado. A apoiou nos ombros e a levou para dentro. Sabia do desprezo que a mãe sentia em relação a Mileide, contudo não fazia ideia de que o desprezo tornou-se um denso ódio que lhe consumia, convertendo sua alma em uma coisa maligna e perigosa.
No porão, Tarsila deitou Mileide sobre o colchão, enquanto colocava as folhas de calêndulas com cuidado nas costas da prima.
— A atitude de minha mãe foi odiável! — Tarsila meneou a cabeça. — Se eu não tivesse chegado naquele instante...
— Por que ela me odeia, Tarsila? O que fiz à ela? — fizera uma dolorosa careta por conta do contato das folhas na pele cortada.
— Prometo que ela não fará mais isto, Mileide! Eu te juro.
A dor das feridas feitas pelo chicote, obviamente, cessaria. Porém tornar-se-iam cicatrizes, rastros disformes por todo seu dorso que nem mesmo os vestidos esconderiam.
— Não, Tarsila. Logo tu se casará. Viverá longe da mansão e vossa mãe aproveitará para castigar-me.
— Minha prima... — Tarsila passou a mão sobre os cabelos curtos de Mileide. — Não pense isso.
Mileide deixou as lágrimas escaparem. Pranteava em um mórbido silêncio.
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