A Rainha das Trevas
– O que esse Espelho maldito está fazendo aqui? – indagou Katherina, para ninguém em particular.
Assim que aceitou a proposta de casamento do Rei, e foi transferida para o quarto que pertencera à Rainha Morgana, Katherina cobrira aquele horrendo objeto de seus pesadelos, e tão logo se tornou Rainha, ordenou aos criados que o removessem de seu quarto, e o destruíssem.
Ainda tinha pesadelos com o tempo que vivera aprisionada dentro dele, servindo de bola de cristal para a pérfida Morgana planejar suas maldades. O mundo do outro lado do espelho é uma dimensão de névoa e trevas, onde todas as possibilidades do destino se misturam. Ela podia entrever através das brumas qual caminho o destino estava prestes a seguir, mas não podia interferir nele. Mesmo quando alguém deveria interferir. E o escravo do Espelho só pode dizer a verdade. Não pode nem mesmo manipular as palavras para mascarar ou dissimular os fatos.
Quantas vezes ela desejou poder colocar Morgana no caminho de uma armadilha com uma falsa previsão?
Como era possível que agora aquela coisa voltasse para assombrá-la?
– Pensei que ficaria mais feliz em me ver – debochou Morgana, fazendo beicinho.
– Eu mandei que destruíssem esse Espelho!
– E acha mesmo que eu permitiria que destruíssem algo que pertenceu à minha mãe? – disse Branca de Neve. – A criada que você mandou levar o Espelho embora sabia que eu desejava uma lembrança dela. Então, em vez de destruí-lo, como você ordenou, ela o ofereceu a mim.
– Eu devia tê-lo atirado pela janela com minhas próprias mãos – lamentou Katheirna.
– Se quer que algo saia bem feito, faça você mesma – debochou a Bruxa no Espelho.
– Não imagina a surpresa que tive ao descobrir que minha querida mãe estava aprisionada nesse Espelho – revelou Branca de Neve.
Naturalmente, Katherina suspeitava que Morgana não estava definitivamente morta. Eram necessárias três bruxas para banir uma feiticeira para as Trevas, e na época do feitiço, suas duas irmãs tiveram que realizá-lo sozinhas. Por mais que Katherina desejasse ajudar, daquela dimensão no Espelho era impossível usar sua magia. Era só uma questão de tempo até Morgana encontrar uma forma de retornar. Ela só não imaginava que a feiticeira retornaria presa na própria armadilha.
Foi há muito, muito tempo. Katherina vivia na Grécia, e, na época, seu nome era Helena. Ali também ela era a esposa de um Rei, que também não amava. Mas foi um casamento conveniente, para escapar dos caçadores de bruxas. Quem imaginaria que a Rainha de Esparta era uma feiticeira? E quem a condenaria, sob o risco de enfrentar a fúria de Menelau, Rei de uma das regiões mais prósperas do mundo antigo?
Foi então, que ela o conheceu. Páris, Príncipe de Troia. Ele era belo e valoroso, e, mesmo sabendo que esse amor seria sua ruína, ela entregou seu coração, e fugiu com ele para o seu reino no Oriente.
Já naquela época ela era considerada a mais bela de todas as mulheres, invejada pela própria Afrodite – que não era bem uma deusa, mas uma feiticeira poderosa, e extremamente vaidosa. Afrodite queria destruir Helena, e para isso, pediu ajuda à feiticeira mais perversa que conhecia, Éris, que adorava semear o caos e a discórdia. O mundo a conheceria mais tarde como Morgana.
Já naquela época, Morgana buscava meios de se tornar a Rainha das Trevas, mas ainda não havia descoberto os meios necessários para isso. Afrodite afirmava possuir um grimório antigo, onde haviam sido registradas a existência e a localização de diversas relíquias e artefatos perdidos da magia negra. Morgana – ou Éris, na época – ficou ansiosa para botar as mãos nesse precioso livro.
Em troca do grimório, Afrodite pediu que Éris destruísse Helena. E então, ela, a suposta deusa do amor e da beleza, seria a mais bela de todas.
Foi então que Morgana viu a oportunidade de unir o útil ao agradável. Ela possuía os fragmentos de um cristal antigo, uma peça produzida pelas areias negras do deserto oriental, encontrada bem diante dos portões do inferno. O cristal às vezes exibia uma névoa densa quando manuseado, e por vezes, através dessa cobertura brumosa, era possível entrever imagens turvas. Era difícil identificá-las, mas certa vez, Morgana teve certeza de ter visto a si mesma matando uma serpente. Horas depois, uma víbora fora encontrada aninhada em sua cama, e Morgana a matou, da mesma forma que vira entre as brumas do cristal.
Foi então que ela se deu conta de que a peça fora forjada das areias do destino, e que através das brumas era possível ver o futuro.
Mas era difícil compreender as imagens de fora. Foi então que ela imaginou que o destino seria muito melhor visualizado dentro do cristal.
Assim, Morgana transformou o cristal num Espelho, uma prisão perfeita para esconder a mais bela de todas as mulheres.
Enquanto o exército de Esparta marchava contra Troia, Éris invadiu o palácio, assassinou Páris a sangue-frio, e enviou Helena para dentro do Espelho, onde ela permaneceu aprisionada por séculos.
Afrodite ficou muito satisfeita com a solução. E conforme prometido, entregou-lhe o Grimório, onde Morgana finalmente descobriu o artefato que precisava ser encontrado, e que a tornaria a entidade mais poderosa da Terra, e como exatamente poderia obtê-lo.
Ao ser libertada do Espelho, na noite em que Morgana fora derrotada por suas irmãs, Helena decidira reassumir o nome de plebeia com o qual fora perseguida na Grécia, antes de conhecer Menelau, e enfeitiçá-lo com sua beleza: Katherina.
– Naturalmente – prosseguiu Branca de Neve – eu não podia correr o risco de que alguém descobrisse meu segredo: que minha mãe era uma feiticeira poderosa, e que estava me ensinando sua arte para que eu pudesse vingá-la e libertá-la.
"Eu transferi o Espelho para a câmara do tesouro, prosseguiu a Princesa. Papai pensou que se tratasse de um objeto muito valioso. Todas as noites, depois que todos adormeciam, eu descia até lá, através de uma passagem secreta convenientemente construída em meu quarto, e passava parte da noite aprendendo a desenvolver meus poderes. Mamãe é uma mestra muito sábia. E a primeira lição que ela me ensinou foi a nunca permitir que alguém ficasse em meu caminho. O amor é uma fraqueza que devemos alimentar nos tolos, porém, jamais permitir que nos enlace".
"E aquele tolo do Robin Hood foi aparecer no castelo e se apaixonar por mim, justamente quando papai decidiu conceder minha mão àquele maldito do Fera. É claro que eu não me casaria com ele, nem que fosse o último homem da face da Terra. Mamãe e eu tínhamos planos maiores... Para quando eu me tornasse Rainha".
– De modo que o casamento com o Fera até que seria bem conveniente – deduziu Katherina.
– Por que eu me submeteria a essa humilhação, quando eu nasci para reinar bem aqui? – questionou Branca de Neve.
– Mas... Você não é a herdeira do trono. Meu filho Andrei é.
– Oh, querida madrastinha... Você acha mesmo que eu permitiria que esse bastardo roubasse a minha coroa?
A fúria tomou conta de Katherina.
– Não se atreva a tocar no meu filho!
– Não se preocupe. Eu prometo dar a ele uma morte rápida. Assim como ao meu pai. Mas esta noite, tenho planos para você.
– O feitiço que suas irmãs nojentas fizeram na noite em que minha filha nasceu te libertou, e me prendeu no Espelho em seu lugar – disse Morgana.
– E você usou o poder do Espelho para aliciar sua própria filha – concluiu Katherina.
– Minha filha, que você tentou matar na noite em que nasceu – acusou Morgana.
– E vejo agora que deveria ter me esforçado mais para conseguir – acrescentou Katherina.
– Que comovente... – zombou Branca de Neve. – Nunca me senti tão amada em toda a minha vida.
– Eu salvei você... – sibilou Katherina horrorizada. E lançou um olhar lastimoso ao cadáver de Robin Hood. – Ele te amava...
– Deveria ter envenenado a maçã quando teve chance – debochou Branca de Neve. – Mas agora é tarde para isso. Está na hora de reverter o que aquelas bruxas fizeram. – A Princesa ergueu a adaga, ainda manchada com o sangue de Robin Hood. – Já que a morte de minha mãe te libertou do Espelho, talvez sua morte possa libertá-la.
Branca de Neve ergueu a adaga, mas a carne que ela feriu não foi de Katherina. A loba que fora sua guardiã desde a infância se lançou na frente, e abocanhou o braço da Princesa, lançando a adaga dentro do lago.
– Freya, sua maldita! – gritou Branca de Neve, caída na relva, tentando estancar o sangramento em seu braço, pouco acima do pulso.
Agora a loba rosnava, mais furiosamente do que nunca, contra a Princesa que protegera todos esses anos, interpondo-se entre Branca de Neve, em defesa da Rainha Má.
– Mate essa criatura! – gritou Morgana, esmurrando o Espelho por dentro com ambas as mãos.
Branca de Neve atacou a loba, lançando sobre ela uma bola de fogo, que o animal recebeu de bom grado. O fogo rapidamente envolveu todo o animal, que convulsionou, sem emitir qualquer som. Os pelos do animal foram consumidos pelas chamas, e conforme o fogo lambia sua pele, sua carne foi adquirindo novas formas. O focinho encolheu, revelando lábios rosados e delicados, e um narizinho arrebitado; as patas se transformaram em braços e mãos; o corpo rapidamente adquiriu formas femininas; longos cabelos loiros, quase brancos cresceram em sua cabeça. Em toda a sua compleição, a única coisa que permaneceu igual foram os grandes olhos azuis.
Tão logo a transformação terminou, o fogo se apagou como se tivesse sido abafado por um cobertor.
A mulher-lobo encarou Branca de Neve com raiva.
– Quem diabos é você? – indagou a Princesa, horrorizada.
– Eu sou a Rainha Leda – disse a mulher-lobo. – E você jamais será rainha do meu reino.
– A primeira esposa do Rei está viva! – exultou a Rainha Má, acrescentando uma gargalhada divertida.
– Eu não caí num lago congelado, como todos pensam – disse Leda, voltando-se para Katherina. E apontou para o Espelho. – Ela me transformou em lobo, e fez com que parecesse que eu tinha caído no lago, para poder se casar com meu marido.
– Que reviravolta! – disse Katherina. – Por que você protegeu a filha dessa maldita esse tempo todo?
– Eu nunca protegi Branca de Neve. Eu protegia todos os outros dela.
– É... A forma mais eficiente de proteger as pessoas de um ser perverso, é observando-o bem de perto – concordou Katherina.
– E eu que cheguei até a gostar de você... – murmurou Branca de Neve. – Animal imundo...
– Já te falei que o amor é uma fraqueza – observou Morgana. – Mesmo quando direcionado a um bicho.
– Não tem problema. Agora ela compartilhará a morte com a minha querida madrasta.
Branca de Neve lançou uma fortíssima corrente de ar contra a Rainha Leda, arremessando-a contra as árvores da floresta. Katherina criou uma corrente contrária para amortecer a velocidade, impedindo que a ex-loba fosse empalada pelos galhos. Branca de Neve aproveitou sua distração para sacar outra adaga de dentro da bota, e se atirar sobre a madrasta.
Katherina lutou, segurando o pulso de Branca de Neve, tentando desarmá-la enquanto a Princesa tentava usar o fogo para afastá-la.
Nesse momento, um cântico surgiu do meio das árvores, ao mesmo tempo que as duas bruxas da floresta adentravam a campina na margem do lago. Sob seu comando, o Corvo retornara ao acampamento no princípio da noite, e seguiu o grupo até o lago. Quando Branca de Neve feriu Robin Hood, ele voou como uma flecha de volta à cabana para alertar as irmãs.
Theodora e Cassandra já tinham a poção preparada, e não perderam tempo em iniciar o cântico tão logo alcançaram o lago.
A papoula negra sua magia adormecerá.
A maçã podre seu corpo enfraquecerá.
Branca de Neve ergueu a cabeça para olhar na direção das bruxas que surgiam das sombras da floresta, e Katherina aproveitou a oportunidade para arremessá-la longe com seu poder.
– Ossos de um cadáver sua ruína atrairá – a voz de Katherina juntou-se ao coro.
E nas profundezas sua alma aprisionará!
– FAÇA-AS PARAR! – bradou Morgana, impotente dentro do Espelho, sentindo seus braços serem agarrados por uma força invisível.
A mesma força que também prendia Branca de Neve.
– Esta noite, o mal cairá! – prosseguiram as bruxas, que agora eram três. Katherina afastou-se das duas perversas, juntando-se às suas irmãs na margem da campina.
Morte inocente não se concretizará.
Uma alma inocente vamos libertar.
E nas trevas da morte o coração perverso para sempre jazerá!
Cassandra e Theodora, cada uma com um frasco na mão, os arremessaram simultaneamente contra Branca de Neve e contra o Espelho.
Um trovão ensurdecedor ecoou pelo reino, ao mesmo tempo em que um raio atingia a campina junto ao lago. Da fenda que se abrira na terra, a Sombra da Morte emergiu, faminta e furiosa, agarrando Branca de Neve. A Princesa gritou algo ininteligível, ao mesmo tempo que a Sombra a tragava para dentro do buraco na terra.
Do interior do Espelho, Morgana assistia, com os olhos desvairados, enquanto a terra engolia sua filha, regurgitando seu sangue na relva. Uma força sobrenatural arrastou o Espelho para dentro da mesma fenda. Um raio o atingiu bem no centro, rachando o cristal negro de fora a fora. A Sombra da Morte emergiu do meio das brumas, agarrando a feiticeira perversa, e arrastando-a através do Espelho para dentro da fenda ardente.
As três bruxas desviaram o rosto, no momento em que o Espelho se estilhaçou em milhares de pedaços, desaparecendo no interior da fenda, que imediatamente se fechou.
Não muito longe dali, a Rainha Leda encolhera-se junto à árvore contra a qual fora arremessada. Não estava ferida, mas parecia em choque diante da cena horrenda que presenciara.
– Acabou – disse Katherina, ajudando a Rainha a se levantar.
– Elas... – balbuciou Leda.
– Foram banidas para as Trevas – disse Theodora.
– Para sempre! – acrescentou Cassandra.
– Todos estamos livres – disse Katherina. E com um sorriso aliviado acrescentou para Rainha Leda: – Agora, precisamos retornar ao castelo. Eu tenho uma coroa para lhe devolver.
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