Prólogo
Passado - 2007
— Aqui está, senhor! — Maju entregou algumas moedas a um pedinte que cruzou o seu caminho. — Tenha um bom dia!
O homem agradeceu; era um senhor barbudo e já de idade, cujo sorriso no rosto fazia Maju voltar a acreditar na humanidade. Mesmo que fosse gastar aqueles trocados com álcool, ela não se importava. Era uma boa ação para a sua cota do dia.
E Maju se considerava uma pessoa boa. Apesar das vezes em que mentiu para a sua mãe, com a finalidade de não ter que estudar, pesava em seu currículo as boas ações. No dia do juízo final, Deus certamente não consideraria "namorar moças no lugar de estudar" uma coisa ruim, consideraria?
A jovem cruzou a faixa de pedestres e adentrou a escola, um imponente edifício cor-de-creme que a encontrava todos os dias. Ela gostava de imaginar como seria caso pintassem aquelas paredes pelo menos uma vez na vida; o colégio estadual Manoel dos Santos possuía a mesma aparência desde que sua mãe estudara lá, há 30 anos.
Finalmente, dentro de pouco mais de seis meses, viria aqueles prédios mórbidos pela última vez. O terceiro ano podia ser assustador para aqueles que optariam por prestar um vestibular, mas Maju sabia que seu futuro era no salão de sua mãe. Nada de provas intermináveis, nada de livros densos; apenas a boa e velha ajuda materna.
Mal chegou à sua sala e deu de cara com Isabella Gonçalves, uma das moças mais estudiosas da classe. Ela era morena, tinha olhos verdes, pele branca, nariz afunilado e rosto redondo. Também tinha um corpo fora dos padrões, o que fazia com que os meninos fizessem troça dela. Maju a achava muito bonita, mas guardou essa informação para si mesma.
Isabella lançou a Maju um sorrisinho tímido. A garota retribuiu, mas tentou ser discreta; não queria pessoas percebendo que nutria simpatias por aquela garota. Ainda mais ela, Maria Júlia Azevedo, a menina mais popular do colégio!
Sentou-se em seu lugar de costume e ajeitou seus volumosos cabelos cacheados com a mão. Demoraria mais vinte minutos para que a aula começasse, e ela precisava desprender algum tempo para estudar geografia. Logo estaria fazendo a prova, e não havia revisado matéria alguma.
Não demorou muito para que sua melhor amiga, Tássia, chegasse. Era alta, bonita, tinha olhos expressivos e a pele negra de um tom mais claro, como Maju; ao contrário da amiga, porém, Tássia gostava de alisar o seu cabelo. Era 2007, e as chapinhas faziam sucesso junto ao visual emo.
— Bom dia. — disse Tássia, tomando seu lugar ao lado de Maju. Pôs a mochila em cima da carteira, de qualquer jeito, e virou-se para ela. — Já tá sabendo o que vai rolar hoje?
— A prova de geografia? Sim. — Ela não tirava os olhos do livro. — Não estudei nada, estou desespe...
— Que prova, doida? — debochou Tássia. — Você não viu o janelão do MSN ontem?
Maju encarou a amiga, confusa. Não era todo dia que acessava seu computador, porque o pai precisava dele para trabalhar. Além disso, a internet era cara.
— Não. Não vai ter prova? — Com um brilho no olhar, a pergunta de Maju era genuína.
Para sua infelicidade, porém, Tássia negou a informação.
— Não, sua boba, ainda vai ter prova. — Ela estava animada, parecia estar anunciando um grande evento. — Estou falando do aniversário da Isabella.
Aquilo acendeu uma dúvida na cabeça de Maju.
— Achei que não gostassem dela. — Sempre foi muito óbvio. — Por que estão comemorando o aniversário da garota?
— Ai, ai, Maria Júlia, você é tapada mesmo. — Tássia espalmou a própria testa. — É claro que a gente não gosta daquela baleia. A Gabi disse que vai trazer um balde cheinho com bosta de vaca, lá da fazenda. A Dani e a Fabi vão trazer ovo podre. Combinamos com os meninos, eles já sabem e vão nos ajudar.
Maju piscou algumas vezes. Apesar de não ser a melhor amiga de Isabella, não compactuava com as maldades que os colegas praticavam.
— Vocês vão jogar essas coisas na Isabella? — Era óbvio, mas a moça queria confirmar.
— É claro, ué. — Completou Tássia, com naturalidade. — Não vai me dizer que está com peninha da balofa...
A menina logo se apressou em negar, mas a verdade é que estava. Um pouquinho, ao menos; acreditava que ser gorda não era motivo para receber tanto ódio.
— Ótimo. — Tássia se ajeitou na carteira. — Logo depois que bater o sinal a gente cerca aquela elefanta. Te espero na saída.
O lápis se partiu com a pressão de Maju. De repente, a prova de geografia parecia tão desimportante...
Embora a contragosto, a menina assentiu. Sabia que negar era sinônimo de tomar o lado da maior chacota da escola, e isso, por sua vez, significava perder todos os seus amigos e popularidade.
Maria Júlia teria que ser má, pelo menos uma vez.
***
O sinal soou, e Maju sentia seu estômago remexer; não por causa da prova de geografia, que havia colado inteira da garota à sua frente, mas por causa da perversidade que iriam praticar com Isabella.
Ela tentou se esgueirar pelo canto da sala e sair de fininho, mas topou com Tássia, cujo sorriso não cabia no rosto:
— A gente vai pegar aquele saco de banha. — disparou. — Vai ser muito divertido.
Não era tão divertido assim no conceito de Maju, mas ela apenas assentiu.
Isabella era sempre uma das últimas a sair da classe, porque seu material de estudos era denso — E também porque, quando saía junto a todos os outros, recebia empurrões propositais. As amigas de Maju, junto com os meninos, já tinham formulado o seu plano. Bastava executá-lo, em seus mínimos detalhes.
Gabi entregou o balde de esterco para Maju. Estava embalado em muitas camadas de plástico, que, ao serem retiradas, emitiram um mau cheiro que queimou as narinas da moça.
— Vou deixar com você a melhor parte. — Lançou uma piscadela.
Na verdade, era nítido que Gabi apenas não queria carregar aquele balde fedido pelos corredores, mas a garota não se opôs; era inerte demais para protestar contra qualquer coisa.
Ela, Gabi, Dani e Tássia se esconderam atrás dos vasos de planta e os meninos se agruparam do lado de fora. Não demoraria muito até que Isabella cruzasse a saída, com seus ombros retraídos e seu olhar soturno.
— Pessoal! — falou Tássia, chamando a atenção das garotas. — É agora!
E, de uma só vez, as quatro garotas e os cinco garotos cercaram Isabella, com um sorriso sádico no rosto. A moça olhou para os lados, perdida, antevendo algo ruim.
— O que vocês querem? — grunhiu Isabella, mostrando seus dentes para o grupo de valentões que a cercava. Todos eles, exceto Maju, estavam com um sorriso brilhante no rosto.
— Te dar feliz aniversário, seu pudim de banha! — berrou Pedro, um dos meninos que segurava ovos podres.
E, num rompante, Gabi, Dani, Tássia e os rapazes lançaram os ovos que tinham em mãos, estourando-os no corpo de Isabella. A garota gemeu, tentou se proteger dos lançamentos, mas era em vão; estava totalmente lambuzada com os resquícios dos ovos.
Tentava fugir, mas o cerco fechava qualquer que fosse o seu caminho. Pediu para pararem, mas foi em vão. Lágrimas escorriam de seus olhos, lágrimas de dor, que caíam quase simultâneamente aos cânticos do grupo de populares:
— Gorda, baleia, saco de areia! — Estavam todos achando aquilo muito engraçado. — Pudim de banha, balofa, elefanta!
Maju segurava o balde, apreensiva. Queria que aquele momento acabasse. Isabella estava sendo covardemente torturada por um bando de animais, incapazes de sentirem empatia e compaixão pela garota que caçoavam.
Quase como se lesse sua mente, Tássia voltou seu olhar para Maju e o balde de estrume. Não havia mais ovo algum em sua mão.
— Maju, joga a bosta! — pediu ela, eufórica. — Suja esse mamute de fezes!
— É, Maju, a bosta! — Felipe, mais um dos meninos, fez coro com Tássia. — Fecha esse aniversário com chave de ouro!
— Joga a bosta! Joga a bosta! Joga a bosta! — Todos os restantes insistiram. — Joga a bosta! Joga a bosta! Joga a bosta!
E batiam palmas, gargalhando e divertindo-se a custo da desgraça alheia. Maju, que não queria estar nessa situação para início de conversa, ponderou se deveria prosseguir com o balde de esterco.
Os olhos verdes de Isabella suplicavam para que ela não fizesse aquilo. As lágrimas dolorosas da garota eram nítidas e passavam uma mensagem rápida. Maju considerou aquilo, não queria colaborar para a desgraça da garota...
Mas, do outro lado, seus amigos. Todos eles, entoando juntos para que Maju continuasse aquele circo dos horrores. Se não fizesse isso, perderia todos eles. Poderia até mesmo perder sua popularidade, já que seria vista como amiga de Isabella. E ela não queria aquilo, de forma alguma.
— Joga a bosta! Joga a bosta! Joga a bosta! — continuaram os animais.
— Por favor, Maria Júlia... — Através de leitura labial, Maju conseguiu entender o que Isabella dizia. — Não faz isso, por favor...
Ela teria que tomar uma decisão. E o mais breve possível.
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