Os irmãos Macnamara
O estranho o empurrou, fazendo-o cair de qualquer jeito no chão de folhas secas e, apontando-lhe um dedo cor de cera, ordenou que não se movesse. Então, obediente, o rapaz apenas se mexia o bastante para respirar e tremer sob o olhar do outro.
–Marion? – A voz de mulher veio de algum lugar do lado de fora da tenda, mas ela logo ergueu a lona de entrada, revelando o rosto otimista emoldurado pelos fios de cabelo solto em seu coque descuidado. Era alta, longilínea e se vestia com calças e camisa,como um homem. Mas no lugar de uma de suas mãos, uma reluzente peça de prata em gancho, fazia as vezes de um dedo único.
–É um darf. – Respondeu Marion à pergunta não feita – Eu achei que fosse uma menina, mas veja. – Ele riu. – Eu agarrei um moleque que usa vestido! – E riu mais. Felps odiou-o por isso. – Deve ter se perdido do bando. Não chegue muito perto, Lolá, ou ele pode arrancar sua mão que sobrou.
A outra se achegou alguns passos antes de se curvar para Felps.
–Que coisinha mais estranha... – Lançou-lhe um olhar de repulsa e deu as costas.– Ictar tem que chegar logo, eu não aguento mais isso aqui.
–Ele virá. – Respondeu o homem – Eu mandei partir duas carroças cheias e não tem mais porquê continuar caçando, não é? Pobres criaturas.
–Parece o conveniente. – Comentou Lolá – Mas eu não sei se ele...
–Se ele vai insistir? Você o conhece, precisa sentir que fez o bastante.
Outra vez a mão ossuda de Marion puxou Felps para si por um punho, obrigando-o a levantar-se e o olhou com mais atenção.
–Me diga sua idade. – Mandou. E seu hálito tinha cheiro de alguma bebida que Felps não pôde identificar. O rosto de Marion era magro, bem parecido com o da mulher, e assim como ela tinha olhos pequenos num verde desbotado como chá e sua boca fina, era branca, quase sem lábios. – Lhe fiz uma pergunta.– Insistiu, depois ficou mais sério e acrescentou. – Entenda, garoto ou seja lá o que você for... Se me obedecer eu posso deixar que continue vivo, podemos mandá-lo para a reserva amanhã e tudo estará bem, mas se continuar com isso... Então estará me forçando a fazer as coisas do meu jeito, sabe? E eu não quero ter de quebrá-lo, e não quero ter que entregá-lo para o meu irmão amarrado como uma ovelha, muito menos quero queimá-lo com ferros ou... Bem, você me entendeu, isso seria péssimo, não acha, Lolá? – Se entreolhou com a mulher que deu um risinho breve, mas Felps só conseguiu pensar em todas as coisas que aconteceriam se fosse mandado para a reserva.
Ora, os dois o confundiam com um darf, os violentos comedores de carne, com olhos de contas e línguas de serpente.
Talvez devesse abrir a boca para mostrar que não tinha nenhum dos sinais, mas temia ainda mais ter de dizer o que era. Por isso, apenas fez que sim com a cabeça, desejando que com isso o homem parasse de apertá-lo tanto.
–Então deixe-me tentar de novo. –Falou o tal Marion – Diga-me o seu nome, criança.
–F-Felps. Eu sou Felps.
–Muito bom, Felps, agora estamos nos entendendo. Você é um humano?
Como poderia responder à aquilo sem ir parar numa masmorra ou numa reserva? Marion apertou-o mais.
–Felps...– Disse em tom de aviso.
–Não senhor. – Respondeu Felps tentando controlar o tremor no lábio.
–Está bem, você está indo muito bem. –Ele colou o rosto junto ao seu e farejou-o como um cão. – Já matou um homem?
Felps abanou a cabeça.
–Qual a sua idade?
–Eu n-não sei, s-senhor. – Secou as lágrimas na manga do vestido.
O outro riu, então amenizou o aperto.
–Você não passa de um moleque, não é? – Fez uma pausa para se entreolhar com a mulher – Ictar virá logo, escute, pare de chorar,Felps. Você só está aqui porque os comboios já partiram com os darfs que caçamos hoje. Então esta noite você ficará conosco e amanhã cedo partirá com eles, se quiser. Com certeza encontrará sua família na reserva, não precisa chorar.
Mas Felps se encolheu mais ainda.
–Vai ficar tudo bem. Lá não é como dizem, há comida, escolas, é um lugar de darfs, com casas e tudo o mais. Mas até mandarmos você para o norte, prometa não machucar a mim e aos meus irmãos, está bem?
Fez que sim.
–Ótimo, mas chega de chorar, é sério. Nós vamos dar a você um pouco de carne de veado, sei que podem sobreviver por alguns dias comendo isso, e aí se você se comportar, dou minha palavra de que será tratado com bondade. –Ele fez uma pausa na qual matou o próprio sorriso antes de acrescentar– Se nos atacar, então será surrado, atado e queimado a ferros. Está ouvindo?
–Sim senhor.
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