Erro
Quando retornou para o aposento despenteado e coberto de fuligem dos pés a cabeça Ivela correu-lhe ao encontro e tinha os olhos inchados de chorar.
–Eu tive tanto medo! Pensei que aquele filho de uma cadela tinha mandado você sei lá pra onde! Ah meu deus...Oh, pela Sícy, o que ele lhe fez? – Ela olhou com tristeza para o corpete mal amarrado de Felps,depois o conduziu para a poltrona larga e o fez se sentar – O que ele fez com você? Oh, pela Sícy eu devia cuidar de você...Me perdoe. – Abraçou-o.
Felps descansando na poltrona larga, quase podia sentir o peso do próprio remorso.
–Ele me... Me levou para uma...Vila e nós...Deus do céu, Ivela...
Ivela suspirou antes de inquirir com cuidado.
–Me conte, querido. Me conte o que ele fez com você.
–Eu...Ele... – As palavras não saíam.
– Ele obrigou você, não foi? Com certeza ele te forçou... Oh meu deus...
Felps fez que não, mas não tinha certeza.
–Eu acho...Acho que eu quis. – Disse aquilo e ficou observando o rosto de Ivela mudar conforme ela emudecia. Obviamente a amiga não podia acreditar no que ele tinha feito. Ele mesmo não podia crer no que fizera, mas daquele momento em diante as palavras simplesmente escapavam sem que pudesse controlá-las então tudo o que fez foi dizê-las – Eu quis, –repetiu – Ivela, você credita? Ele me disse, "Você quer? " E eu... Eu queria! E aí ele estava me beijando e depois estava sob o meu vestido e por fim, estava...Ah meu deis... e eu tive tanta raiva, mas foi tão, ah Ivela, foi tão... Entende? Eu não pude, eu... Meu deus, eu quis!
Ivela tinha uma das mãos sobre o decote, a outra encobria os seus lábios quando ela disse numa voz contida:
–Dom Caçador...
–Eu sei! – Felps desatou a chorar. – Ictar...Eu o traí, não foi? Que traição terrível a minha!
–Mas como pôde? Marion é um homem desprezível, e é nojento, Felps, ele é violento e...
–Não é, Ivela.
–Como não? Ele o empurrou da janela! Eu vi !– àquela altura Ivela andava de um lado para o outro com a mão na testa. O vestido leve de algodão barato, tremelicando nervosamente ás suas costas – Você não o conhece como eu, Felps. Provavelmente ele mesmo vai até o Caçador para contar a novidade.Se é que já não tratou de enviar uma mensagem.
Felps sentiu o coração saltar.
–Você acha?
–Eu sei.
–Ah meu deus...
E durante toda aquela noite, o rapaz se revirou de um lado para o outro incapaz de adormecer, e na única chance em que pôde cochilar levemente, sonhou que Marion Macnamara o erguia nos braços preenchendo-o, apertando-lhe o rosto contra a parede, rugindo muito perto de sua orelha, beijando-a.
Então seu rosnado diminuía lentamente até parar e quando Felps se virou para olhá-lo, era Ictar quem entrava e saía dele olhando-o cheio de reprovação.
No susto despertou com um gemido de dor. Pela Sícy, o que é que tinha feito?Sentou-se no escuro amaldiçoando o próprio desejo e segurando os cabelos conforme soluçava. Como tinha sido ingênuo em pensar que poderia advir alguma coisa boa do homem que o capturara na floresta? Se Marion contasse aquilo ao Caçador, Ictar nunca mais lhe dirigiria a palavra.
Lá fora alguém riu como se zombasse de seu medo. Era o som da risada de Lolá que entrava pela janela desde o pátio. Por um instante pensou se poderia se aconselhar com ela. Afinal, não havia ninguém que conhecesse melhor os dois irmãos.
E era verdade que Lolá o tinha tratado com deboche, mas não era algo que alguém nunca houvesse feito antes. Ivela por outro lado, jamais o desrespeitara, ao menos não por maldade. E não poupara esforços para criticar Marion. Por que não a ouvira?
Pé ante pé sobre o chão frio, achegou-se à janela e afastou as cortinas claras para ver Lolá no pátio, vestida com roupas de montar, brincando com Marion de atirar flechas num alvo de palha em forma de homem. Pareciam duas crianças, rindo sozinhos no amanhecer.
Ele podia ser tão ruim assim? Seria mesmo tão desprezível como Ivela pintava?
Talvez impetuoso demais, mas não cruel. Afinal, todas as coisas que tinha feito pareciam bastante justificáveis e Felps começou a achar que talvez Ivela estivesse exagerado um pouco em sua ânsia por defender o amigo.
Ora, Marion poderia ser difícil de entender, mas ele tinha amigos também, não tinha? Todos na vila pareciam gostar bastante dele e Gong realmente o abraçava como se fosse seu parente. E era isso. Se Ictar tinha Ivela, Marion devia ter Gong, e não significava que se tratasse de uma pessoa ruim, era só diferente.
Felps suspirou aliviado pelo pensamento tranquilizador. Lá embaixo o outro se preparava para disparar outra flecha. E era curioso como Marion parecia bem arrumado até mesmo sob a pele de pantera híbrida que estava usando naquela manhã. Normalmente a túnica dava á Ictar um ar selvagem e desordenado, mas nele se assemelhava ás capas reais usadas pelos nobres mais altos e ele estava muito bonito retendo oarco junto de si, mirando a silhueta imóvel de sua vítima de palha.
Foi Lolá quem acenou para Felps primeiro, e envergonhado por ter a presença notada, o rapaz retribuiu ao gesto brevemente, vendo Marion voltar-se para sua janela e sorrir.
O Dom baixou o arco depois disso e tirando seu lenço do bolso amarrou-o na flecha que atirou ao lado da janela de Felps. Proeza a qual Lolá aplaudiu quase da mesma forma como Ivela aplaudia Ictar simplesmente pelo fato de ele existir.
Mesmo assim, Felps sentiu o ar faltar de medo quando a seta penetrou profundamente a madeira da moldura externa. Ele era louco? Ora, claro que era. Mesmo assim o rapaz esticou os braços magros no vento para recolher a haste de madeira.
Aconteceu no entanto que a coisa penetrou muito profundamente a tal moldura e Felps não conseguiu arrancar a flecha de jeito nenhum.
Ouviu Marion e a irmã rindo de novo, por isso removeu o lenço desamarrando-o. A seda branca, com uma delicada renda por toda aborda estava impecavelmente limpa, e tinha o cheiro de que se lembrava.
Marion lhe lançou um beijo e sorriu-lhe por um momento, depois voltou sua atenção para os alvos.
–Meu deus... – Felps guardou o tecido no decote. Ao lado da carta de Ictar. Quê era aquilo que estava fazendo?
–Isso é tãããão errado...– Alertou a voz de Ivela . Ela estava recostada na porta aberta e com os braços cruzados sustentava o seu mais genuíno olhar de censura– Se souber, o Caçador vai matar o irmão de tanto o socar.Já estão brigados por causa de Belvereth...
–Essa porta precisa de um guizo ou sei lá.
Felps fechou a janela que se arrependeu de ter aberto depois tornou a se voltar para a amiga que se dirigia ao roupeiro do lado do dossel.
–Marion me falou que me ofereceu carne porque... Você sabe, se eu fosse umpouco darf eu teria...
–Dom Caçador pensou que Marion estava te violentando, – Ela o cortou sem se virar – E ele quis proteger você porque conhece o irmão que ele tem. – Diante das portas abertas do armário, Ivela apontou um longo tecido perolado e azul, que Felps recusou com um gesto.
–Ictar é um homem doce, mas...
–Ele é sim, mas não é idiota. Vai perceber que há alguma coisa errada.– Ivela falava com raiva, como se o Felps a tivesse magoado também.
–Você acha?
–Olha a sua cara no espelho, criatura! Você olha para Dom Marion como se fosse uma virgenzinha derretida.
–Eu não sou uma...!
–Ah, mas não é mesmo. Pelo menos não é mais.
– Ivela!
Ela sacudiu com impaciência um vestido de tecido cor de creme, que tinha muitas flores bordadas em diversas cores sobre o colo. Felps fez-lhe um sinal positivo com a cabeça e a outra puxou o vestido do roupeiro com raiva.
–Como eu disse, – Concluiu a moça– Acho que o próprio Marion vai contar tudo, mas escreva isso, se ele não contar, Dom Caçador vai perceber sozinho. Ele não é chamado assim atoa, sabe?
E entre todas as pessoas que foram recepcionar Dom Caçador quando ele finalmente retornou, apenas Felps e Marion não eram criados. Mas ao invés de chegar caminhando pelo salão, pisando firme como fazia,Ictar parecia curvado, e fraco puxava duma perna.
De fato se Marion não o tivesse socorrido a tempo, ele bem poderia ter caído ao pé da escada quando tentou subir sem tocar o apoio. Tinha uma das mãos envolta em bandagens e contou que havia perdido dois dedos para um darf faminto.
–Por que não nos disse? – Falou Marion como quem se aborrece com uma criança – Teríamos feito alguma coisa, Ictar, eu teria buscado você com uma navegadora ou enviado a catedrática.
–Eu não lhe daria esse gostinho, Marion. Ainda sei fazer o meu trabalho,sabe? – Retrucou o Caçador num rosnar rouco, mas depois amenizou o tom para completar – Onde está a minha Borboleta?
Ao ouvi-lo Felps se adiantou rápido, mas sorriu-lhe cheio de culpa.
–Ah, aí está ela... Minha Borboleta – O caçador acariciou sua cabeça com a mão enfaixada – Eu a via diante de mim sempre que a febre estava alta demais. – Riu. – Não chore, minha querida, isso aqui não foi nada.
Felps sentiu Marion acotovelá-lo com força.
–Nos dê licença. – Falou ríspido – Meu irmão precisa de remédios.
–E desde quando você sabe do que eu preciso? Me largue. – Rabugento,Ictar se desvencilhou com um safanão – Eu já tenho todo o remédio de que preciso. – E sorriu para Felps.
E assim, lado lado e lentamente subiram os degraus um após outro,Caçador apoiando-se com dificuldade no corrimão que, ao que parecia, era ajuda que menos lhe feria o orgulho, de modo que demoraram algum tempo até finalmente alcançarem o enorme aposento repleto de tapeçarias e peles curtidas.
E o quarto de Ictar tinha tantas cabeças de animais cobrindo as paredes que por um momento Felps teve vontade de fugir correndo delá, mas aguentou firme vendo Ivela acender o fogo da lareira edeixá-los, lançando em sua direção o olhar cheio de acusação.
Ictar se arrastou até uma poltrona de peles marrons diante da lareira, o assento o recebeu com um rangido quando o Dom se largou nele pesadamente. Um instante depois e Felps foi se ajoelhar ao seu lado,debruçado em seus joelhos e chorou muito.
–Venha...– Ictar o conduziu até seu colo. – Conte-me o que a está machucando assim.
Mas Felps mastigou as palavras, porque como poderia fazer aquilo? Como poderia contar a coisa horrível que fizera?
–E-eu...Eu...–O olhos de Ictar estavam fitos nele. Dois lagos de calma castanha,o rosto cansado ainda assim era um belo lugar de paz, coberto de pelos encaracolados e macios, de modo que Felps não quis turvar sua superfície contando-lhe a vergonha enorme do erro que cometera. –Eu pensei ... Pensei que... Que não fosse voltar mais. –Abraçou-o, e Ictar tinha cheiro de suor, folhas e terra.
–Eu também senti saudades, minha Borboleta.
O Caçador deu-lhe seu beijo gentil, e sua língua tinha o toque cheio de cuidado, como se Felps se tratasse de uma coisa delicada o suficiente para ser quebrada com um movimento vigoroso demais.
–Ivela cuidou bem de você?
Felps fez que sim. Quis chorar outra vez, mas decidiu sufocar as próprias lágrimas mordendo o lábio trêmulo.
–Marion a atormentou?
–O senhor devia tomar algo para a dor.
–Minhas dores estão todas diminuindo agora, Borboleta.
Abraçou-o de novo e Ictar beijou-o no pescoço uma vez, depois outra, até que a boca do Dom alcançou a sua novamente, tão cheia de carinho sincero, que Felps não sabia mais se era digno dela.
–Senhor?
– Sim?– Ictar se afastou para encará-lo. As espeças sobrancelhas castanhas erguidas com atenção. Tão absurdamente atento que Felps sentiu o lábio tremer de arrependimento. Silêncio. O que poderia dizer?
–Tudo bem se não quiser, Borboleta. Está bem? – Ictar afrouxou o aperto que lhe dava e acariciou-o no rosto. – Eu jamais faria alguma coisa que você não queira ou que...Ou que a assuste. Está bem?
–Eu sei. – Felps ia secar uma lágrima, mas a aspereza carinhosa da mão do outro chegou antes.
–Quer voltar para o seu quarto? Quer que eu chame Ivela?
Fez que não e depois disso Ictar estendeu mantas de pantera diante da lareira e passaram algumas horas ali, comendo e conversando. E quando a catedrática bateu na porta interrompendo sua história sobre o darf jovem que lhe comera dois dedos, Ictar a mandou embora dizendo que não se importasse pois seus dedos nasceriam de novo como os dentes das crianças.
Sonolento, Felps riu daquilo e finalmente adormeceu aninhado ao outro, um braços subindo e descendo apoiado sobre a barriga enorme, ouvindo Ictar rir e amaldiçoar.
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Deixe um comentário contando a sua opinião a respeito dessa situação toda e aproveita pra dizer o que você faria se estivesse no lugar do Felps.
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