35
Cícero deu-se um tempo, como Aline havia recomendado.
Conforme os dias passavam, ele tinha mais clareza a respeito de si mesmo e enfrentava o luto de cabeça erguida. Sentia que podia começar de novo e não sabia explicar a leveza que tal decisão lhe trazia, o doce sabor de uma nova chance.
E começaria pela adoção de um cachorro.
A campainha tocou e uma funcionária foi atender. Logo um homem estava de pé no meio da sala, segurando um filhote de golden retriever nos braços.
Quando Cícero apareceu para recebê-lo, encontrou sua mãe conversando com o visitante e já mostrava estar encantada pelo animalzinho. Cícero entregou um cheque ao criador de cães e então pegou o filhote. O homem foi embora.
Ao se ver a sós com a mãe, Cícero indagou:
— Acha que ela vai gostar?
— Você disse que ela gosta de cachorros, então creio que vai amar! — Ela sorriu e fez carinho na cabeça do filhote. — Você é uma gracinha!
Cícero prendeu o animal em uma gaiolinha para transporte, então colocou-a em seu carro. Fabíola o observava da porta.
— Depois quero que me conte os detalhes! — Ela acenou de forma elegante, fazendo suas pulseiras se agitarem.
Cícero sorriu para sua mãe. Ele dirigiu até o condomínio, seu coração batendo forte a cada minuto que o aproximava da casa.
Era domingo, às 16:14h; logo seus funcionários estariam voltando, ele calculara. Mas gostaria de ter um tempo a sós com a moça antes que chegassem.
Cícero passou pela guarita e estacionou na calçada em frente à casa. Ele desceu do carro, apanhou a gaiola, onde o filhote choramingava, e tocou a campainha.
Cícero esperou. Ninguém veio atender.
Tocou mais uma vez. Nada.
Cícero se dirigiu ao alojamento dos seguranças e não encontrou ninguém por lá.
Então se lembrou de que devia haver uma chave reserva escondida no pequeno jardim da frente. Cícero apanhou-a, após procurar por algum tempo em meio às plantas, e abriu a porta da casa.
Ele caminhou pelo corredor, chamando por Aline, sem obter resposta. Percorreu os cômodos, encontrando tudo arrumado, intocado. O filhote ainda choramingava. Cícero decidiu lhe dar um pouco de água e foi até a cozinha, onde apoiou a gaiola no chão. Ele procurava algo em que pudesse dar de beber ao animal, quando avistou um envelope sobre a mesa, próximo ao vaso de flores. Ele franziu a testa. Acima do envelope, reconheceu a aliança de Aline, cristais incrustados na argola de ouro.
A carta estava endereçada à Carla, mas Cícero não hesitou em abri-la. Perplexo, ele se deixou cair sobre uma cadeira enquanto lia:
Querida Carla,
Desculpe sair desse jeito, mas eu já não sabia mais o que fazer. A situação estava sendo penosa para mim, e sei que a senhora reparou e estranhou meu estado desde que chegou, mas a verdade é que me sinto órfã longe da minha família. Quero estar com eles, e agora que Bernardo está curado...
Quero ser dona da minha vida. Eu já sou adulta e estou cansada de ter sempre alguém me dizendo o que devo fazer.
Sei que a equipe tentaria me segurar aqui por muito mais tempo e isso simplesmente me parece inconcebível. Eu aguentei por dois anos, mas cheguei ao meu limite. Ainda assim, sou grata por ter tido esse contrato, que me permitiu pagar todo o tratamento do meu sobrinho.
A senhora sabe que não fui bem na entrevista, mas ainda há tempo de eles impedirem que vá ao ar. Eu serei discreta, ficarei longe dos holofotes.
Agradeço à senhora por ter me feito companhia, dona Carla, tornando meus dias aqui mais suportáveis. Obrigada por todo o carinho. Nós nos divertimos muito! Sinto que não teria aguentado, se não tivesse a senhora, Mário ou Osvaldo junto de mim. Todos foram muito atenciosos, passei a considerá-los meus amigos!
Desejo tudo de bom a cada um de vocês!
Adeus
Obs: Não levei nada que já não fosse meu antes do casamento. Deixo aqui minha assinatura, caso precisem, para o divórcio.
Um abraço!
Aline
Cícero deixou o papel de lado, passando a mão pelo rosto, atordoado. Aline havia ido embora, Aline... Foi embora.
Ele se levantou e pôs-se a caminhar de um lado para o outro, completamente esquecido do cachorro.
Ouviu a porta da frente abrir e Carla entrar, Mário em seu encalço. A cozinheira seguiu direto para a cozinha, rumo ao seu quarto, mas se deteve, surpresa, ao ver o patrão.
— Seu Cícero! — Ela sorriu, então baixou o olhar para a gaiola. — E essa coisinha fofa aí?
Cícero não respondeu. Apenas assentiu quando Mário o cumprimentou. Carla fitou o rapaz e, achando-o pálido, indagou:
— Está tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
— Aline fugiu.
Silêncio chocado pairou sobre os funcionários, amorteceu o ambiente. Cícero indicou a carta aberta sobre a mesa. Carla pegou-a. Suas mãos tremiam, então Mário tomou-a e leu-a.
— Quando...? — começou, uma expressão de espanto no rosto.
— Eu cheguei não faz muito — atalhou Cícero. — A casa estava trancada, eu...
— Ai, minha santinha! Onde será que ela está? — desesperou-se Carla.
Mário saiu para investigar. Cícero sacou o telefone e ligou para um de seus assessores. Carla fez o mesmo e ligou para Aline, então para Osvaldo. Ambos só caíam na caixa postal.
— Ouça! Quero que dê um jeito de encontrá-la! — bradava Cícero ao telefone.
Mário retornou com a informação:
— Ela saiu a pretexto de ir para a casa de uma amiga.
— Mas como? Será que Osvaldo foi com ela? Ele não atende — concluiu Carla, deixando o telefone, desanimada.
O cachorrinho seguiu se lamentando, até que a cozinheira pegou uma vasilha de plástico e lhe serviu um pouco de água.
Todos ali formavam uma espécie de força-tarefa, tentando desvendar o que havia acontecido. Mário buscou contatar conhecidos seus na polícia. Carla entrou no quarto de Aline para averiguar e encontrou tudo em seu devido lugar, conforme dito na carta. Cícero falava com seus assessores.
— Ela não vai receber o restante do pagamento — informaram. — Saiu antes do término do contrato...
— Você acha que ela se importa? — esbravejou Cícero, alterado. — Acha que eu me importo? Por que está falando de dinheiro num momento desses?
Percebendo o estado de Cícero, os funcionários aconselharam que ele voltasse para casa.
— Eu não vou sair daqui, enquanto não souber o que aconteceu com a minha esposa! Então se virem!
Cícero sentou-se em uma cadeira, olhos fixos no chão. Carla pôs-se a preparar um chá de erva cidreira para acalmar os ânimos.
— De que entrevista ela estava falando, Carla? — indagou Cícero, calmo como um cordeirinho, em contraste com a tempestade que ela vira ainda há pouco.
Carla explicou:
— Arranjaram uma entrevista para tentar limpar a sua imagem. A dona Aline voltou de lá amuadinha, não me contou o que aconteceu.
— Isso não pode estar certo — resmungou ele.
Júlio ligou. Cícero atendeu na primeira chamada.
— Estava recebendo ligações de um número desconhecido desde ontem. Resolvi atender, pensando que talvez fosse ela em apuros, mas... Sugiro que se sente.
— Já estou sentado.
— Pois bem, o número em questão é de um caminhão guincho. Aline abandonou o carro no estacionamento de uma lanchonete e mandou o guincho buscá-lo. Ela deu o meu número e eles estavam ligando para me cobrar pelo serviço. O carro passou a noite no pátio deles, mas já pedi que o levassem de volta para a casa.
A cabeça de Cícero parecia rodar. Ele quase deixou o telefone cair. Agradeceu e desligou. Carla serviu-lhe o chá.
— E então?
— A investigação acaba de se tornar mais complicada — informou solenemente.
Carla abriu a boca. Mário, contudo, surgiu e falou antes dela:
— Osvaldo finalmente atendeu. Está com a família, também não sabe nada sobre o paradeiro dela.
— Ótimo, deixe-o. — Cícero dispensou-o com a mão. — Não precisa voltar para cá hoje.
Mário se retirou e Carla aproveitou para dizer:
— Recomendo que o senhor vá para casa também.
— Apenas me diga... Como? — Ele meneava a cabeça. — Como ela conseguiu passar a perna em todos?
— Estou certa de que as coisas vão se ajeitar. Tudo será esclarecido. Mas por ora é bom o senhor voltar para casa.
Cícero considerou suas palavras e assentiu por fim, derrotado. Mário levou-o de volta.
Arrasado, Cícero entrou na mansão, deixando a gaiola com o filhote no chão do corredor, e foi buscar consolo nos braços de sua mãe.
— O que houve, querido? — Ela deixou sua revista de lado para acolhê-lo.
— Ela deixou... deixou tudo, mãe — balbuciava. — Era dela!
— Cícero, estou ficando preocupada! — Ela arregalou os olhos.
Cícero retirou do bolso a aliança de Aline.
— Ela foi embora, mãe. — Recompôs-se o bastante para dizer. — Foi embora.
Em silêncio, Fabíola o abraçou e permitiu que ele desabafasse.
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