25
Antes de sair do quarto, pela manhã, Cícero contemplou o rosto plácido de Aline e deixou-a dormir sossegada, conforme havia prometido.
Cícero ficou desorientado na cozinha, no início, mas encontrou as cápsulas para usar na máquina de café e tudo foi se ajeitando. Os demais itens estariam nos armários, na geladeira e na despensa.
Ao abrir a porta da geladeira, seu pai lhe veio à mente. Cícero franziu o cenho, pois quando acordara, lembrara-se de Mauro. Ele refletiu a respeito enquanto se servia e viu Betina passar pelo corredor, ainda de camisola, com uma trouxa de roupas sujas em mãos, e seguir direto para a área de serviço. Ouviu os ruídos das torneiras e logo Betina aparecia na cozinha, em busca de café.
— Desculpe, hoje cada um vai ter que fazer o seu — respondeu Cícero.
Ele mostrou à Betina as opções de que dispunha. Ela escolheu um cappuccino para si e, enquanto esperava ficar pronto, perguntou:
— Sabe se a Aline vai ocupar a máquina de lavar hoje?
— Não sei. — Ele deu de ombros. — Na verdade, meus planos para hoje são que ninguém nessa casa trabalhe. — E acrescentou, em tom cômico, fitando-a: — Você já começou o dia me decepcionando.
Betina ficou sem graça.
— Meu filho fez xixi na cama. — Ela retirou a caneca da base quando a máquina serviu sua bebida. — Falando nisso, sabe onde posso encontrar um outro jogo de lençóis?
— Bom, isso aí vai ser com a Aline. — Ele sorriu com afabilidade. — Mas, sente-se, vamos comer!
Feito um guarda, Cícero permaneceu junto ao balcão, para certificar-se de que todos os convidados se alimentariam.
Quando Aline apareceu, mais tarde, ficou contente ao deparar-se com Cícero na cozinha. Ele sorriu, tomou sua mão e, sem dizer uma palavra, fez Aline rodopiar, passando sob seu braço e terminando de frente para ele. Pega de surpresa, Aline abriu um sorriso maravilhado.
Mas eles não estavam a sós.
— Bravo! — comemorou Ivete, batendo palmas.
Sem graça, os dois se afastaram de imediato. Para disfarçar, Aline foi propondo:
— Vamos começar a fazer o almoço?
Ivete abriu a boca, mas foi Cícero quem respondeu:
— Não, minha gente! Hoje nós vamos almoçar em outro lugar. — Ele balançou as mãos na frente do corpo. — Aliás, já podem ir se arrumando, não quero saber de ninguém lidando com louça por aqui.
— Significa que você vai lavar a louça?— quis saber Aline, inclinando a cabeça para o lado.
Cícero ficou calado. Ivete bebia o conteúdo de sua xícara, animada.
— Eu já estou indo!
Aline apoiou as mãos sobre o balcão.
— Almoçar fora, é? — Ela o encarou. — Conte-me mais.
— É melhor tomar seu café da manhã — respondeu Cícero, indicando a ela a farta mesa preparada.
Aline observou as cápsulas vazias espalhadas perto da máquina de café.
— Deixe-me adivinhar... Você não fez café, fez?
— Como adivinhou? — gracejou Cícero. — Bem, temos esta excelente cafeteira, então pensei: por que não deixar que cada um escolha o próprio café? — Ele usava gestos amplos. — Especialidade do dia! É como comprar em uma padaria, cada um pede o que vai querer.
— Imagino como papai deve ter reagido... — interrompeu Aline.
— Seu pai ficou bem — atalhou Ivete. — Cícero fez um expresso para ele. Um dia só não vai matar.
Ivete terminou seu desjejum e saiu às pressas. Cícero sentou-se com Aline enquanto ela comia. Seu olhar se tornou vago e distante quando seu pai lhe veio à memória mais uma vez.
— Cícero — chamou Aline, trazendo-o de volta. — Está tudo bem?
Ele assentiu.
— Você é a última a tomar café – respondeu, ao invés disso. Mas ao ver que a expressão preocupada de Aline não mudara, acrescentou: – Estou pensando muito no meu pai. Será que ele está bem?
Aline encolheu os ombros.
— Por que não liga para ele?
— Eu sei lá...
Aline percebeu seu desconforto e deixou o assunto para lá. Ela se concentrou em sua refeição.
✨
Os dois voltaram juntos ao quarto e, enquanto se preparavam para sair, Aline viu-o ficar distante mais uma vez.
— Se está tão preocupado, é melhor ligar para o seu pai.
— E dizer o quê...? Eu nem saberia por onde começar, ele ficou tão alterado da última vez...
— Sei que tem suas complicações, afinal é família, mas...
Aline mordeu o lábio, refletindo melhor, enquanto escovava seu cabelo.
— Não que seja da minha conta — arriscou, por fim —, mas por que é tão importante que você use gravata ao visitar seu pai?
Cícero não respondeu. Aline prosseguiu, pisando em ovos:
— Assim fica parecendo que vocês dois não são próximos... — Então decidiu falar abertamente: — Parece até que você é um funcionário e ele, o seu patrão, a quem se deve se apresentar uniformizado.
— O vô Ciço nunca aparecia sem gravata, desde os tempos em que era motorista de ônibus — atalhou Cícero.— Estava sempre de roupa social. E aquele prendedor de gravatas era dele, o primeiro item de luxo que meu avô comprou quando a situação financeira melhorou. Por isso meu pai ficou fulo quando apareci sem o objeto, porque é um legado. Um lembrete do quanto minha família, de origem humilde, avançou.
— Seu avô — ecoou Aline, pensativa.
Cícero sorriu.
— É, eu sou a cara dele, tirando que ele tinha um bigodão.
— Sei... — retorquiu, distraída.
— Ih, o que foi? Não estou gostando disso.
Cícero dobrava os punhos de sua camisa até o antebraço, à espera de uma resposta. Através de seu reflexo no espelho da penteadeira, Aline arrumava o cabelo em um coque elegante. Ela pesou na balança se deveria falar ou não.
— É que... — hesitou. — Seu pai parece estar projetando em você uma imagem. A imagem de que você seja igual ao seu avô.
Cícero apenas encarou-a através do espelho, aturdido, enquanto ela prosseguia:
— E, parando para pensar... Será que a política é para você? — Ela abriu um grampo com os dentes. — Pode ser apenas o reflexo do que o seu pai quer... Você pode achar que deve provar algo a ele, mas... — Ela fez uma pausa. — Alguma vez você já parou para refletir sobre o que realmente quer para sua vida?
Cícero ficou sem reação. Boquiaberto, ele não encontrava palavras. Aline ficou desconfortável e quebrou o silêncio:
— Talvez ajude se você procurar um terapeuta. Sabe... Se conhecer melhor.
Silêncio reinou entre os dois. Cícero sentou-se na cama para calçar seus sapatos. Aline terminou seu penteado e virou-se na cadeira para encará-lo.
— Talvez... Só talvez, o seu pai tenha passado pela mesma situação com o pai dele.
— Como assim?
— Você recebeu o mesmo nome do seu avô, está na carreira política igual a ele e...
— Mas meu avô não foi muito longe na política, por causa da idade — interrompeu. — Não chegou a ser senador.
— O que só reforça que talvez o seu pai queira que você siga tais passos. Para realizar o que seu avô não pôde, e que pode ter projetado nele. E o seu pai também não conseguiu seguir nessa carreira, não é...? Ele se mantém fora da política.
Cícero ficou calado.
— Por acaso seu pai e avô se davam bem?
— Eu não sei. — Sua voz engrossou.
— Quando foi a última vez em que recebeu palavras de afirmação e apoio do seu pai, ou mesmo um carinho? — insistiu Aline.
— Eu não me lembro... Não é do feitio dele.
Aline assentiu, compreensiva.
— Talvez o seu pai tenha sido criado assim. E como isso fez dele um homem, seu pai pensa que deve seguir os passos do pai dele. Dessa forma, ele acha que está te encaminhando na vida. Ainda que de forma inconsciente. Essa coisa da política... É o que você realmente quer para a sua vida? É o que te faz feliz?
Cícero sentia sua cabeça rodar. Embora não quisesse admitir, o que Aline dizia fazia muito sentido.
— Da mesma forma, no seu subconsciente, você pode achar que precisa compensar alguma coisa pelo seu pai e seu avô, como seguir o legado que não foi possível concluir... — Ela fez uma pausa, estudando-o. — Mas devo lhe dizer: a responsabilidade não é sua. Já parou para pensar que seu avô viveu uma vida plena antes de entrar na política? Ele não deixa de ser importante por ter sido um motorista de ônibus. Já parou para pensar que talvez eles só quisessem que você seja feliz?
— Por que insiste?
Aline tentou não estremecer diante do tom. Cícero levou uma mão à testa, buscando o autocontrole.
— Ouça — arfou, trêmulo —, eu não quero ser indelicado. Podemos mudar de assunto?
Aline piscou, com um misto de compaixão, vergonha e arrependimento.
— Me desculpe. Isso não me diz respeito.
Cícero precisou de alguns minutos para processar e se recuperar. Aline voltou-se para a penteadeira e se maquiou. Ela ficou desconfortável com o clima instaurado entre os dois. Não sabia o que fazer para se redimir e precisou se controlar para não pedir desculpas a todo instante.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro