24
À noite, Cícero entrou no quarto para dormir e encontrou Aline na varanda, de braços cruzados e com o olhar perdido no horizonte. Ele dirigiu-lhe a palavra, perguntando se poderia ligar o ar-condicionado.
Aline concedeu sua permissão sem olhá-lo. Ela estudava a área da piscina e arredores, questionando-se onde um paparazzo poderia se esconder. O pequeno jardim dos fundos não parecia oferecer espaço o bastante. Cícero forrou seu colchão no chão e arrumou as cobertas, então foi até a varanda.
— Eu vou fechar a porta, está bem? Você vai entrar agora ou quer ficar um pouco mais?
Aline passou por Cícero e entrou no quarto sem dizer uma palavra, sentou-se na cama e abraçou as pernas contra o peito. Cícero ficou impaciente ao ver que ela lhe dava as costas mais uma vez.
— Está tudo bem? — indagou, ressabiado. — Você ficou estranha a tarde toda...
— Me diga você! — rebateu com acidez.
Atordoado com aquele tom ferino, Cícero balbuciou:
– Eu não entendi... Você...
Ainda de costas, Aline empurrou o celular sobre o lençol na direção dele, incapaz de encará-lo. A tela estava aberta na conversa com o assessor. Cícero pegou o telefone e leu as mensagens.
– Isso é... – começou, chocado.
– Foi para isso que você veio, não é? Foi a mando deles, para mostrar aos eleitores que o seu "lindo casamento perfeito" não estava abalado. – Ela o encarou por fim. Seus olhos continham indignação feroz. Aline ajoelhou-se e arrastou-se sobre o colchão, apontando um dedo na direção dele. – Mas deixe-me dizer uma coisa, Cícero: você comprou os meus serviços, não o meu corpo! Não pagou pelos meus escrúpulos, meus valores, nem nada disso. – Ela desceu da cama e continuou a avançar em sua direção. Cícero andava de ré, quase caindo. – Eu aceitei esse acordo porque parecia haver respeito embutido nele. Mas isso é uma palhaçada. — Ela sentiu que ia chorar. — Eu disse ao meu pai que vocês nunca me faltaram com o respeito... E vão fazer isso logo na presença dele? Não é justo!
– Aline...
– Vocês não têm esse direito! Eu estou farta de tudo isso! Você não pode me prender para sempre.
– Aline, sua família vai ouvir! – sussurrou alto, espalmando as duas mãos para contê-la.
Aline ficou envergonhada, baixou a cabeça e entregou-se à derrota.
– Aline, eu sinto muito... Não sei mesmo o que dizer a você, eu não sabia disso. Desculpe, eu... – Ele engoliu em seco, observando seus olhos marejados, compadecido.
– O que mais vocês querem de mim? O estrago que fizeram na minha vida já não foi o suficiente? – Sua voz estava embargada, carregada de amargura e dor. – Eu perdi dois anos da vida do Bernardo, não estive presente no momento em que a minha família mais precisou! Minha irmã está magoada comigo!
Cícero abriu a boca, mas ela prosseguiu:
– Veja só como está sendo esse reencontro com a minha família... Parece que somos estranhos. Eu me sinto deslocada, como se fosse uma intrusa entre eles, como se não houvesse volta para a perda de nossa intimidade. Você e seus assessores destruíram a minha vida, Cícero. – Ela cobriu a boca com uma mão, lutando contra o choro, pensando que já tinha falado demais. – Mas não importa. Nada disso interessa.
Aline o deixou paralisado, sem saber o que fazer, e foi apagar a luz. Ela voltou para a cama e se deitou na ponta oposta, o mais longe possível de Cícero, de costas para ele. Cícero se deitou em seu colchão e ficou se revirando, desconfortável, refletindo sobre a conversa.
Em um intervalo do ar-condicionado, ele ouviu um choro baixinho e se sentou. Ao olhar na direção de Aline, percebeu-a tremendo sob a coberta. Cícero se levantou e contornou a cama, abaixando-se diante da moça, preocupado.
– O que foi? – Ele afagou seu braço através da coberta. Aline apenas fungou em resposta, para em seguida chorar com mais força. – Você quer um chocolatinho? – perguntou num sussurro, servindo-se do tom mais doce e gentil que possuía.
Aline achou estranho e escrutinou seu rosto, à procura de qualquer sinal de zombaria. Tudo o que ela viu, porém, foi preocupação genuína. Cícero abriu um sorriso triste ao perceber que estava sendo analisado.
– Ei, você não precisa esconder de mim. – Ele acendeu a luz do abajur. – Sei que isso é tudo culpa minha, então pode desabafar comigo.
Aline assentiu, limpando as lágrimas, mas não disse nada. Temendo que ela não falasse, Cícero incentivou:
– E o chocolate? Vai querer?
– E sair da dieta? – respondeu com dificuldade.
– Todos têm o direito de sair da dieta de vez em quando. – Ele piscou um olho.
– Tem... – Ela fungou. – Tem uma caixa de bombons belgas na despensa. Está por detrás das compotas de legumes.
– Ok. – E ele saiu, seguindo a instrução.
Cícero não demorou a voltar com a caixa de chocolates.
– Estava escondendo o melhor para comer sozinha, hein, dona Aline? Se você estava esperando até que eu fosse embora, se deu mal!
Com isso, ele conseguiu arrancar um risinho da jovem.
– Como você é bobo! Devia trabalhar no circo... Ou seria uma ofensa para a classe...
Aline se sentou e apoiou a caixa sobre suas pernas cobertas. Cícero sentou-se a seus pés e observou-a comer tristemente.
– Eu sinto muito que tenham mandado aquela mensagem inadequada, Aline. Vou resolver isso, pode ficar tranquila. E, como você mesma disse, isso não fazia parte do acordo. É claro, houve aqueles selinhos no casamento, mas...
Aline ponderou, engolindo com dificuldade. Ela mantinha os olhos baixos. Quando criou coragem para encará-lo, encontrou ali acolhimento. Pensando no gesto de Cícero, Aline sentiu maior confiança nele, então contou:
– Eu deixei os meus sonhos de lado. Tanto os profissionais, quanto os pessoais, para me dedicar exclusiva e completamente ao papel de esposa perfeita do senador. Sinto que a minha vida parou e que quando eu sair daqui, posso nunca conseguir um outro papel, pelo menos não no Brasil... E se conseguir, será porque eu fui a sua esposa, e não pelo meu mérito. Como vou saber se sou boa o suficiente?
Cícero assentiu.
– Você é. Desempenha esse papel com maestria. Acho que minha equipe nunca te agradeceu, mas grande parte da minha popularidade vem de você. Você foi fundamental na consolidação da minha carreira, Aline. Sem você, eu não teria alcançado o senado... Sou eu que estrago tudo.
– Eu tranquei o meu curso de história, deixei os palcos e o meu sonho de atuar, cortei o contato com a minha família, com os meus amigos... Eu sequer posso escolher os lugares que posso frequentar. Minhas relações sociais se resumem à Carla, aos seguranças e às diaristas que contratamos. Eu nunca mais pude ir ao cinema, ao shopping, ou ficar de bobeira por aí.
– Lamento por isso. Mas sua família é legal, sei que eles vão entender...
– Você não reparou como tem sido? Parece que há um abismo entre eles e eu, exceto meu pai. E a minha mãe, talvez com toda essa loucura, esteja tentando restabelecer um laço comigo ao mostrar que pode me aconselhar, tentando ser parte da minha vida, mas...
Aline cedeu ao choro.
– Você tem mania de bancar a psicóloga... — observou ele. — Mas sabe, talvez seja porque eu estou aqui, me intrometendo. Logo eu darei privacidade a vocês.
– Não, não é isso! – Ela agarrou seu braço. – Na verdade, você tem ajudado a tornar o clima mais leve, eu é que não queria reconhecer, mas você me ajuda... — Ela fungou. — Só que, de tudo, acho que o pior é a situação com a minha irmã. Sinto resistência por parte dela. A Betina parece ficar mais atenta e protetora sempre que eu me aproximo do Bernardo, não sei... Há uma tensão entre nós. Sei que ela deve estar magoada porque eu me afastei... – Sua voz ficou fina e fraca e Aline derramou mais lágrimas.
– Seu pai me contou o que você fez – declarou Cícero.
Aline o encarou.
– Sobre... Doar o dinheiro para o tratamento do menino – prosseguiu ele. – Eu te julguei sem saber. — Ele segurou sua mão. — Você tem noção do peso que isso tem? Se sua irmã soubesse, com certeza ela iria...
– Eu prefiro que ela não saiba – atalhou Aline. – Isso só iria fazer com que ela se sentisse humilhada, em dívida comigo. Minha irmã parece carregar uma mágoa, um senso de inferioridade em relação a mim, eu não sei... Faz tempo que eu a percebo assim, acho que a vida inteira. Nunca conversamos a respeito, mas ela joga umas verdades na minha cara... — Ela suspirou. — O fato é que essa percepção em relação à Tina foi o que me impediu de ser completamente mimada. Talvez porque quando ela nasceu, nossos pais eram ocupados demais, tentando organizar a vida. Ela nasceu antes de eles se casarem, então eles tiveram que trabalhar demais, não tinham muito tempo para ela. Quando eu nasci, as coisas já estavam mais estabilizadas. De certo modo, eles puderam curtir mais a minha infância do que a dela, e acho que isso a enciuma e a faz agir assim... Se ela soubesse que eu faria de tudo para que ela jamais se sentisse dessa forma...
– Eu não te acho mimada. – declarou. – Você é bem diferente das garotas mimadas que eu já conheci. Acho que sei como se sente. Não tenho irmãos, mas tenho aquela sensação de que, por ser filho único, eu seria mais mimado. Ninguém acha que você sofre, porque supostamente se tem tudo, e é jovem ou "criança demais" para sofrer, segundo eles. No fundo, talvez você só quisesse um olhar de aprovação e não ter sempre aquela sensação de que está fazendo algo errado.
Aline o estudou e assentiu.
– Não há idade para sofrer. Veja o meu sobrinho Bernardo: ele tem apenas quatro anos e já passou por tanta coisa... Eu entendo esse sentimento. Recebi atenção demais, enquanto observava minha irmã ali, à míngua. Eu me sentia mal por ela. Ainda sinto. É como se aquela sombra sempre estivesse pairando ali entre nós, dividindo nossos mundos e afastando-os cada vez mais, impossibilitando nossa aproximação.
Aline refletiu enquanto comia mais um bombom.
— Talvez no fundo eu só quisesse provar a mim mesma que era capaz de me sacrificar por alguém a quem amava. Talvez só quisesse mostrar que não era tão egoísta quanto pensavam.
Cícero estendeu a mão e afastou o cabelo que caía sobre os olhos de Aline, colocando-o atrás da orelha e secou suas lágrimas em seguida, enquanto Aline o observava com surpresa e receio, tensa ao seu toque, perguntando-se como aquele homem brincalhão pudesse mostrar-se tão atencioso.
– E então? Você vai me dar um chocolate, ou vai comer tudo sozinha?
– Ué, você não tinha pedido... – Ela deu de ombros, sorrindo, então ofereceu a caixa para que ele escolhesse um. – Eu vou estar um trapo amanhã. – Ela suspirou. – Já consigo imaginar as olheiras no meu rosto...
– Durma o tempo que precisar. Eu lido com a sua família.
– Você vai preparar o café da manhã? – Ela o observou, desconfiada.
– Você não confia em mim?
– Não.
– Ah, voltamos com as alfinetadas! – exclamou ele. – É bom saber que já está melhor, dona Aline!
– Só fui sincera!
Cícero fez uma forquilha com dois dedos e pressionou o nariz dela com eles. Aline deu um tapa em sua mão, rindo. Cícero deu-se por satisfeito e se levantou, com um senso de dever cumprido. Enquanto recolhiam as embalagens espalhadas pela cama, Aline se deu conta da grandiosidade daquele pequeno momento.
– Cícero – chamou ela suavemente. Ele a encarou. – Obrigada.
– Às ordens! — Ele inclinou a cabeça. — Minha dama, que não é a primeira do país, deve ser bem tratada.
Aline riu, ajeitando sua coberta.
– Mas vem cá – prosseguiu ele –, essa minha boa ação não vai me render um lado da cama?
– Nem pensar! – Ela arremessou uma almofada nele.
– Espaçosa, você, hein?! Olha só o tamanho dessa cama! – gracejou.
Aline fez uma careta. Cícero riu e apagou a luz do abajur, sentindo o clima mais leve, contente por, de alguma forma, ter contribuído para aliviar a dor de Aline. Aconchegando-se em seu colchão, ele ficou com os ouvidos atentos ao menor ruído e relaxou por fim, ao perceber que ela dormia, adormecendo também.
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