14
Betina piscou, sonolenta, revolvendo-se na cama ao ouvir os zíperes das malas sendo abertos e fechados e o barulho de embalagens. Ela virou-se de lado, mas lhe faltou disposição para levantar.
- A mamãe acordou! - exclamou Bernardo.
Fernando terminava de vestir-lhe as calças e foi sentar-se na beirada da cama, ao lado da esposa.
- Você está cansada, amor, por que não volta a dormir? - Ele acariciou seu rosto.
- Você vai deixar o menino descalço, Nando? Eu já falei que...
- Calma, eu vou calçar os tênis nele. - Ele voltou seu olhar para as malas. - É só questão de achar onde você guardou... - Ele coçou a cabeça.
Betina fez menção de se levantar, mas logo foi detida pelo marido.
- Eu vou procurar direito. Dorme um pouco mais.
Betina abriu um sorriso quando Fernando deu-lhe um beijo.
- Dá uma olhada na bolsa vermelha.
Ela se ajeitou na cama para observar a busca de Fernando, mas seus olhos pousaram em Bernardo.
- O que está fazendo aí nesse cantinho, amor?
- Catando formigas! - respondeu empolgado.
- É mesmo, meu príncipe? - Ela sorriu.
- Catando? - Fernando riu. - Está mais para desmembrando as pobres-coitadas!
- Que maldade, Bê! - riu a mãe, prestando, então, maior atenção ao objeto que o menino tinha em mãos. - Onde conseguiu isso, Bernardo?
- O quê?
- Nando, o que é isso na mão dele?
- Eu achei - explicou Bernardo.
- Nando, tome dele. Não deixa ele brincar, não. Sabe-se lá de quem é.
Fernando franziu o cenho ao retirar o objeto das mãos de seu filho.
- Você sabe o que é isso? - perguntou à esposa.
- Eu não sei ao certo, mas parece aquele negócio de prender gravata. Guarda isso.
Bernardo pulava, choramingando, ao implorar que seu pai o devolvesse.
- Não, não. - Ele o enfiou numa gaveta qualquer. - Vamos lá fora jogar bola com o papai, vamos. A mamãe precisa descansar.
Assim, Fernando conduziu o menino para fora, permitindo que Betina pudesse dormir um pouco mais. Levou um tempo até que Bernardo se acalmasse.
✨
Aline encontrou Moacir no corredor e o acompanhou até a cozinha, fazendo com que ele se sentasse junto do balcão enquanto ela o servia.
- E então, papai, como vão as coisas?
- Bem, eu acho... Mas se não se importa, prefiro não ficar falando sobre hospitais.
Aline franziu o cenho, confusa.
- E nem era essa a minha intenção.
Ela colocou diante de seu pai café, leite, manteiga, pão integral e queijo, então sentou-se de frente para ele, apanhando uma tigela de granola e iogurte natural desnatado para si.
- Eu me referia à empresa, ao trabalho...
- Muito cansaço, muito estresse. - Ele sorveu um gole do café. - Não vejo a hora de me aposentar.
- E o seu Jonas? Ele continua lá?
Moacir negou com a cabeça.
- É um dos sortudos que se aposentaram. Em compensação, deixou aquela peça rara do sobrinho dele lá para nos atormentar.
- Ele era tão gente boa. - Ela sorriu, refletindo sobre o tempo e sua efemeridade, com a sensação de que havia perdido alguma coisa. - E o que mais?
Aline estava genuinamente interessada, ávida por notícias. A reação de seu pai, porém, desanimou-a.
- São todas coisas frívolas. Você não vai querer saber...
- É claro que quero, pai! É sobre a vida do senhor que estamos falando, do seu trabalho! Não tem nada de frívolo nisso!
- Mas é que agora você é rica e importante...
- Pai. - Ela apoiou sua mão sobre a dele. - Nós dois sabemos muito bem...
Rumores no corredor indicavam que Ivete se aproximava.
- Eu gostaria de convidá-lo para caminhar comigo ao ar livre, mais tarde... - apressou-se em dizer, entrando em pânico com a chegada iminente de sua mãe. - Quero conversar com o senhor, apenas nós dois...
- E quanto a mim? - indagou Ivete, nem bem apareceu, sobressaltando Aline, que quase pulou da cadeira.. - Eu também quero ver mais do condomínio.
- Desculpe, quero que seja um momento só do papai e meu... - disse trêmula.
- Hunf, que coisa... E o que o restante de nós, reles mortais, vamos ficar fazendo? Nada?
- Têm a casa toda só para vocês! - Ela se levantou, tratando de recolher a louça. - Vou liberar a área da piscina para mais tarde, que tal?
Ivete se animou.
- Eu sabia que não tinha comprado meu maiô à toa!
Moacir se levantou e foi saindo.
- Estamos combinados, né, pai? - Aline o deteve, praticamente implorando. - Mais tarde, depois do almoço...?
- Por mim, poderia ser agora, mas você é quem sabe.
- Eu vou fazer o almoço.
- Isso é algo que me deixou com dúvida - interferiu Ivete. - Você, sendo a esposa de um senador, não deveria ter um punhado de cozinheiros só para fazer os seus gostos?
- Não é bem assim que funciona, mãe. - Ela exalou pelo nariz. - Pelo menos, não no meu caso.
Enquanto Aline dava um jeito na louça, sua mãe tomava seu café da manhã. Vez ou outra lançava alguma indireta, na tentativa de coletar algo da filha.
Aline não compreendia o motivo de tanto alarde. Começava a considerar ter sido um erro convidar sua família, pois apesar de ainda se sentir uma mulher solteira, aos olhos das outras pessoas ela estava casada; tentar agir como se não fosse o caso certamente traria suspeitas. Onde ela estava com a cabeça quando organizou tudo? E por que Carla ou os outros não a alertaram?
Os assistentes de Cícero tinham razão, concluiu com pesar. Trazer consigo o status de esposa de um político era algo grande demais, ela refletiu. Tudo havia mudado, e por mais que ela tentasse agarrar o tempo com todas as forças, ele escorregava por entre seus dedos. Não foi exatamente o que seu pai demonstrara? Seu pai - a única pessoa ciente de seu segredo - estava agindo com ela de forma diferente, distante. Era como se tudo ao redor tivesse mudado, exceto Aline. Ela viu-se, então, melancólica e desanimada..
Mas o que poderia fazer? Não dava mais para voltar atrás, tampouco poderia seguir agindo como se seu marido não existisse - algo que ela desejava profundamente -, pois ele de fato existia; e mais: a casa era dele, era tudo dele. Aline tinha que pensar em alguma coisa bem rápido. Bastava um pequeno deslize e ela estaria colocando em risco seu trabalho, o contrato que havia assinado, e até mesmo a carreira de Cícero.
Isso não poderia ficar assim.
Ivete falava alguma coisa, mas Aline estava distante, absorta.
A saudade faz coisas, pensava. Sim, com certeza, ela andou nostálgica e sentimental, deixou seu coração falar mais alto. O que ela faria?
O que ela faria?
- E então eu disse a ela que poderia pegar minha turma se quisesse, e eu ficaria com a turma dela - tagarelava Ivete, trazendo Aline de volta à realidade. - Eu daria um jeito naquelas crianças dentro de duas semanas - afirmou com orgulho. - Disso eu não tenho dúvida. O que está faltando é pulso firme com elas; essas professoras novatas são tão frouxas... Aline, você está me ouvindo?
- Ah... Sim, sim, claro. A senhora conseguiria, com certeza.
Aline terminou de empilhar a louça limpa e apoiou as mãos nos quadris, seu olhar perdido no mármore da pia e nos azulejos da parede.
- Bem, eu vou... Com licença.
Aline se retirou antes que sua mãe pudesse protestar, temendo que ela conseguisse enxergar através de sua alma naquele momento.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro